Os presidentes e a Constituição: Fernando Henrique Cardoso
Ainda antes da promulgação da Constituição de 1988, as dúvidas sobre suas conseqüências para a governabilidade do País começaram a crepitar. Diziam os críticos que o capítulo dos deveres excedia de muito o das obrigações; que a repartição tributária em benefício dos municípios e dos Estados transformaria a União em pedinte; que dispositivos progressistas, como tornar a saúde dever do Estado e direito do cidadão, resultariam em impossibilidades práticas; que a introdução de mecanismos inovadores, como o mandado de injunção, e a ampliação da titularidade para ingressar com ações diretas de inconstitucionalidade poriam em risco o sistema jurídico a toda hora. E assim por diante.
Também pelo lado da esquerda se duvidava das conseqüências positivas de uma “Constituição burguesa”. O PT tergiversou muito antes de assinar o texto, temendo pôr em dúvida as credenciais, que naquele tempo tinha, de partido mais inclinado à “Revolução”, pouco disposto a endossar idéias reformistas...
Apesar das críticas, celebramos 20 anos de uma Constituição que, a despeito de imperfeições, permitiu um período de tranqüilidade democrática como poucas vezes, se é que alguma, houve em nossa História, principalmente depois que o Brasil, na segunda metade do século 20, se tornou cada vez mais populoso, urbano, reivindicativo e interconectado. Mais ainda, se é certo que a Constituição foi pródiga em determinar obrigações ao Estado, não menos verdade é que, ao ser exigente nesse sentido, permitiu desenharmos o horizonte de um Brasil mais decente, menos desigual e mais afinado com as social-democracias contemporâneas, dêem-se a elas ou não esse epíteto.
Com isso, não quero dizer que tenha sido fácil governar sob a nova Constituição. A queda do Muro de Berlim e a globalização mostraram quanto de obsoleto havia nas limitações impostas pela preservação de monopólios onde eles já não tinham mais cabimento, a despeito da utilidade que haviam tido na construção das bases do Brasil industrializado. Pagamos o preço de demoradas e difíceis reformas constitucionais para dar dinamismo à economia. Reformas tão necessárias que o governo, do partido que mais se opôs a elas, não só aproveita de suas boas conseqüências, como ensaia lhes dar continuidade, caso da concessão de rodovias e da recém-anunciada decisão de privatizar parte da estrutura aeroviária.
No esforço de adaptar a Constituição a um mundo cambiante, muito resta por fazer. A escolha, à última hora, do presidencialismo como forma de governo, sem revisão completa do texto, deixou-nos um tanto capengas. As medidas provisórias, copiadas da Constituição parlamentarista italiana, sobraram num texto de inspiração parlamentarista, no qual o presidencialismo foi justaposto. O Congresso manteve atribuições que deveria ter passado ao Executivo, depois de rejeitado o parlamentarismo. Resultado: o presidente, no início, valeu-se de medidas provisórias para aprovar matérias que poderiam ser objeto de meros decretos. Com o tempo, inverteu-se a situação: o que deveria ser lei sob controle do Congresso passou a ser medida provisória da lavra do presidente e de valia imediata. Vemos hoje uma macrocefalia executiva e uma atrofia congressual.
Ao mesmo tempo, a salutar independência do Ministério Público deu lugar a abusos, até recentemente incontidos, e o acesso amplo ao Judiciário levou à judicialização da política, a tal ponto que este último Poder, dado o esvaziamento do Legislativo pela exacerbação do Executivo, se vê na contingência de atuar no limite entre o julgamento e a deliberação. Para não mencionar a precipitação com a qual nós constituintes revitalizamos um sistema de voto quase tão exclusivo a nossos costumes como as jabuticabas ao nosso solo: o do voto proporcional e uninominal, terreno infértil para o fortalecimento dos partidos.
Isso para não falar das contorções feitas para evitar o desequilíbrio fiscal da União. Defendendo-se da repartição dos impostos, ela extrapolou na criação de contribuições, a mais retumbante das quais foi a CPMF, sem a qual não seria possível implantar o SUS e dar conseqüência prática ao que a Constituição determina, a gratuidade e universalidade do acesso à saúde, tampouco para pagar a conta crescente da Previdência. Das contorções por necessidade ao hábito por vício, o passo é pequeno. Agora é hora de deter o impulso de impor mais e mais tributos para sufragar maiores gastos fiscais. Para tanto, o mínimo é não desfazer o que já foi feito, como o fator previdenciário.
Em suma, dá para governar com a Constituição, mas suas virtudes democráticas, garantias dos inalienáveis direitos, e a consecução de seus ideais de justiça social requerem capacidade administrativa, bom senso e, sobretudo, coragem para, sem deixar de gabar o que há de bom no texto constitucional, continuar a modificá-lo para melhorá-lo: preço que pagamos por termos escolhido fazer uma Constituição tão detalhista quanto principista.
Ainda antes da promulgação da Constituição de 1988, as dúvidas sobre suas conseqüências para a governabilidade do País começaram a crepitar. Diziam os críticos que o capítulo dos deveres excedia de muito o das obrigações; que a repartição tributária em benefício dos municípios e dos Estados transformaria a União em pedinte; que dispositivos progressistas, como tornar a saúde dever do Estado e direito do cidadão, resultariam em impossibilidades práticas; que a introdução de mecanismos inovadores, como o mandado de injunção, e a ampliação da titularidade para ingressar com ações diretas de inconstitucionalidade poriam em risco o sistema jurídico a toda hora. E assim por diante.
Também pelo lado da esquerda se duvidava das conseqüências positivas de uma “Constituição burguesa”. O PT tergiversou muito antes de assinar o texto, temendo pôr em dúvida as credenciais, que naquele tempo tinha, de partido mais inclinado à “Revolução”, pouco disposto a endossar idéias reformistas...
Apesar das críticas, celebramos 20 anos de uma Constituição que, a despeito de imperfeições, permitiu um período de tranqüilidade democrática como poucas vezes, se é que alguma, houve em nossa História, principalmente depois que o Brasil, na segunda metade do século 20, se tornou cada vez mais populoso, urbano, reivindicativo e interconectado. Mais ainda, se é certo que a Constituição foi pródiga em determinar obrigações ao Estado, não menos verdade é que, ao ser exigente nesse sentido, permitiu desenharmos o horizonte de um Brasil mais decente, menos desigual e mais afinado com as social-democracias contemporâneas, dêem-se a elas ou não esse epíteto.
Com isso, não quero dizer que tenha sido fácil governar sob a nova Constituição. A queda do Muro de Berlim e a globalização mostraram quanto de obsoleto havia nas limitações impostas pela preservação de monopólios onde eles já não tinham mais cabimento, a despeito da utilidade que haviam tido na construção das bases do Brasil industrializado. Pagamos o preço de demoradas e difíceis reformas constitucionais para dar dinamismo à economia. Reformas tão necessárias que o governo, do partido que mais se opôs a elas, não só aproveita de suas boas conseqüências, como ensaia lhes dar continuidade, caso da concessão de rodovias e da recém-anunciada decisão de privatizar parte da estrutura aeroviária.
No esforço de adaptar a Constituição a um mundo cambiante, muito resta por fazer. A escolha, à última hora, do presidencialismo como forma de governo, sem revisão completa do texto, deixou-nos um tanto capengas. As medidas provisórias, copiadas da Constituição parlamentarista italiana, sobraram num texto de inspiração parlamentarista, no qual o presidencialismo foi justaposto. O Congresso manteve atribuições que deveria ter passado ao Executivo, depois de rejeitado o parlamentarismo. Resultado: o presidente, no início, valeu-se de medidas provisórias para aprovar matérias que poderiam ser objeto de meros decretos. Com o tempo, inverteu-se a situação: o que deveria ser lei sob controle do Congresso passou a ser medida provisória da lavra do presidente e de valia imediata. Vemos hoje uma macrocefalia executiva e uma atrofia congressual.
Ao mesmo tempo, a salutar independência do Ministério Público deu lugar a abusos, até recentemente incontidos, e o acesso amplo ao Judiciário levou à judicialização da política, a tal ponto que este último Poder, dado o esvaziamento do Legislativo pela exacerbação do Executivo, se vê na contingência de atuar no limite entre o julgamento e a deliberação. Para não mencionar a precipitação com a qual nós constituintes revitalizamos um sistema de voto quase tão exclusivo a nossos costumes como as jabuticabas ao nosso solo: o do voto proporcional e uninominal, terreno infértil para o fortalecimento dos partidos.
Isso para não falar das contorções feitas para evitar o desequilíbrio fiscal da União. Defendendo-se da repartição dos impostos, ela extrapolou na criação de contribuições, a mais retumbante das quais foi a CPMF, sem a qual não seria possível implantar o SUS e dar conseqüência prática ao que a Constituição determina, a gratuidade e universalidade do acesso à saúde, tampouco para pagar a conta crescente da Previdência. Das contorções por necessidade ao hábito por vício, o passo é pequeno. Agora é hora de deter o impulso de impor mais e mais tributos para sufragar maiores gastos fiscais. Para tanto, o mínimo é não desfazer o que já foi feito, como o fator previdenciário.
Em suma, dá para governar com a Constituição, mas suas virtudes democráticas, garantias dos inalienáveis direitos, e a consecução de seus ideais de justiça social requerem capacidade administrativa, bom senso e, sobretudo, coragem para, sem deixar de gabar o que há de bom no texto constitucional, continuar a modificá-lo para melhorá-lo: preço que pagamos por termos escolhido fazer uma Constituição tão detalhista quanto principista.
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