O tempo não perdoa o que se faz sem ele, costumava dizer Ulysses Guimarães, citando Joaquim Nabuco. Desse modo ensinava a importância na política do apropriado discernimento do momento oportuno. Não é fácil a identificação desse momento, pois, entre outras coisas, requer conjugar o tempo individual de um ator político com o tempo coletivo de um sistema político e de uma sociedade. Além disso, o tempo flui e é instável no seu movimento, e não só na política. É o caso do tempo da meteorologia, cada vez menos previsível por obra das mudanças climáticas provocadas pela ação humana.
A vasta reflexão dos pensadores, dos poetas e cientistas sobre o estatuto do tempo e seu entendimento aponta para uma complexidade que carrega no seu bojo o desafio de múltiplos significados, cabendo lembrar que a função da orientação é inerente à busca do saber a respeito do tempo. Assim, uma coisa é conhecer o tempo do relógio, que molda o mensurável de uma jornada de trabalho. Outra coisa é lidar com a não mensurável duração do tempo vivido, que perdura na consciência e não se confunde, por sua vez, com o tempo do Direito, que é o tempo normatizado dos prazos, dos recursos, da prescrição, da coisa julgada, da vigência das leis e do drama cotidiano da lentidão da Justiça.
Faço estas considerações lembrando que em 1999, quando fui ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, elaborei uma reflexão sobre os tempos com que estava lidando - o da mídia, o financeiro, o econômico e o político - para me orientar e, ao mesmo tempo, justificar os desafios que estava enfrentando.
O tempo da mídia já era naquela época, e continua sendo cada vez mais, um tempo online, caracterizado pela instantaneidade e pela fragmentação que a revolução digital magnifica pela atuação das redes. A instantaneidade provoca, no Brasil e no exterior, a repercussão imediata dos eventos nas percepções coletivas. Leva a uma concentração no momento presente, afasta a atenção em relação ao passado e contribui para moldar o futuro em função de avaliações, frequentemente precárias, das expectativas.
O tempo financeiro é também um tempo online, de escopo internacional, que lida com a confiança inerente ao crédito. Passa pelas percepções a respeito da consistência das políticas macroeconômicas dos países e da solidez das instituições financeiras. Transita pela volatilidade dos fluxos financeiros, exponencialmente ampliada pela sua desregulação no plano internacional. Isso levou, na época, ao contágio irradiador das crises financeiras nas economias emergentes - entre elas, a do Brasil. Esse contágio irradiador do tempo financeiro é um dos dados da crise de 2008 nos EUA, que se aprofundou este ano com a crise do euro.
Tem outras características o tempo político. É mais lento e menos internacional que o da mídia e o financeiro, pois é condicionado pela territorialidade das instituições e, no caso do Brasil, pelos dilemas do equilíbrio federativo. Estes dificultam a solução de temas como o da guerra fiscal entre os Estados, e hoje afloram no debate sobre os royalties do pré-sal. O tempo político está voltado para dentro do País e o seu horizonte transita pelo calendário das eleições, pelos interesses dos partidos e pelas aspirações e ambições de suas lideranças.
O tempo econômico, que é do ciclo do investimento, da produção e da distribuição, é mais lento que o da mídia e o das finanças e não tem, como o da política, um horizonte marcado pelo calendário eleitoral. É um tempo que requer tempo e não comporta a instantaneidade de soluções. É o que eu apontava naquela época para explicar, sem maior sucesso, as minhas dificuldades no atendimento das expectativas geradas pelos outros tempos com os quais me confrontava.
Lograr sincronizar os diversos tempos, foi a conclusão a que cheguei, é o grande desafio de um ator político e a chave para a condução de políticas públicas no mundo contemporâneo. Estes tempos, cabe realçar, são simultâneos e assimétricos, e não sucessivos, como os tempos evocados pelo Eclesiastes (o de nascer, o de morrer, o de plantar, o de colher, o de guardar, o de jogar fora, etc.).
Acrescentei novos elementos a esta reflexão sobre o tempo na política quando, em 2001-2002, chefiei o Itamaraty e me confrontei com o desafio representado pela sincronização de outros tipos de tempo. Refiro-me ao tempo da globalização e ao tempo da diplomacia.
O tempo da globalização é um tempo rápido, facilitado pelo fim da rigidez da guerra fria e propiciado pelo encurtamento dos espaços e pela porosidade das fronteiras, que internaliza o mundo na vida dos países. O tempo da globalização passou a exigir do Brasil uma diplomacia de participação ativa na vida internacional, posto que deixou de ser possível operar por um relativo distanciamento do mundo e, assim, contar com um tempo mais distendido.
Por sua vez, o tempo da diplomacia, no mundo contemporâneo, é, paradoxalmente, tanto o da urgência das crises e das dificuldades de seu encaminhamento quanto o da lentidão das negociações, como as comerciais ou as do meio ambiente, que resultam das dificuldades de construir consensos lastreados na identificação de interesses compartilhados.
A busca do saber sobre o tempo tem, como mencionei, uma função de orientação. Neste século 21, é preciso parar para pensar a vertiginosa instantaneidade dos tempos e os problemas da sua sincronização, que a revolução digital vem intensificando.
A tradicional sabedoria dos provérbios portugueses diferencia o tempo do falcão e o tempo da coruja. O tempo do falcão é o da rapidez e da violência. É este tempo que nos cerca. O tempo da coruja é o da sabedoria - a sabedoria que nos falta para lidar com a estrutura de possibilidades do tempo no mundo em que estamos inseridos.
Professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no Governo FHC
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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