Intelectuais se manifestaram contra a ditadura em 1964 e criaram obras-primas na cadeia
Sérgio Augusto / O Estado de S.Paulo / Aliás, 14/1/2018
Agora só resta o poeta Thiago de Mello. Ele é o último dos moicanos do Glória. Ou, mais precisamente, o último dos “Oito do Glória”. Que, na ponta do lápis, somavam nove. O penúltimo moicano, o jornalista, escritor e acadêmico Carlos Heitor Cony, morreu nove dias atrás, aos 91 anos, a mesma idade do único sobrevivente da primeira manifestação pública contra o golpe de 1964 e a repressão imposta pelo governo do general Castelo Branco.
Haveria uma conferência extraordinária da OEA (Organização dos Estados Americanos), no Hotel Glória, no Rio, e o escritor Antonio Callado teve a ideia de juntar intelectuais, jornalistas, artistas e líderes sindicais num protesto diante do hotel, no dia em que Castelo Branco estivesse presente. Contava-se com uma multidão de indignados, mas no fim da tarde de 17 de novembro de 1965 apenas nove intelectuais compareceram ao ato, empunhando faixas e aos gritos de “abaixo a ditadura” e “viva a liberdade”.
Além de presos e levados para o quartel do 1.º Exército, Callado, Cony, Thiago, mais os cineastas Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, o diretor de teatro Flávio Rangel, o diretor de fotografia Mário Carneiro, o jornalista Márcio Moreira Alves e o embaixador Jaime Rodrigues foram reduzidos pela reportagem de O Globo a “um grupo de esquerdistas arruaceiros”.
Dividindo a mesma cela durante quase um mês, Callado, Cony e Glauber criaram, simultaneamente, três obras maestras dos anos de chumbo: os romances Quarup (Callado) e Pessach: A Travessia (Cony) e o filme Terra em Transe (Glauber), que seriam finalizadas e lançadas em 1967. Cony começou os primeiros capítulos de seu romance, Callado tocou os derradeiros capítulos do seu, Glauber burilou o roteiro e adiantou os diálogos do filme. Noves fora o lampejo de Os Inconfidentes que Joaquim Pedro teve no mesmo cativeiro da rua Barão de Mesquita.
Desconheço coincidência similar nos anais da cultura. Foi como se, mutatis mutandis, François Villon, Cervantes e Oscar Wilde tivessem compartilhado a um só tempo a mesma cadeia e lá criado a poesia (Villon) e a prosa (D. Quixote, De Profundis) que em séculos diferentes produziram atrás das grades. Durante a ditadura do Estado Novo, houve apenas um Graciliano Ramos no presídio da Ilha Grande. E, mesmo contando todos os esgástulos do getulismo, de nenhum deles brotou algo sequer remotamente comparável, em importância e expressividade, a Memórias do Cárcere.
Pessach, a exemplo das memórias carcerárias do Velho Graça, enfrentou o patrulhamento do Partidão, que na época (anos 1950 e 60) ainda tinha alguma força política e, mesmo, editorial. No fim das contas não deu em nada, mas aporrinhou um bocado Cony e a família Ramos. Terra em Transe foi recebido com má vontade por setores da esquerda, que o acusaram de hermético e incompreensível pelo povão, mas não despertou polêmica entre os comunistas; Alex Viany, seu crítico mais representativo, gostou do filme. Quarup só incomodou os militares no poder.
Cony mexeu num vespeiro. Ao questionar a pureza ideológica e a estratégia de luta da esquerda tradicional contra a ditadura, ganhou a pecha de divisionista, dentro, inclusive, da editora Civilização Brasileira, cujo dono, Ênio Silveira, embora filiado ao PCB, respeitava como poucos a liberdade de expressão e era um dos maiores amigos de Cony. Graças ao altaneiro Ênio, Pessach logrou superar ileso a travessia entre a circulação dos originais nos bastidores da editora (Ferreira Gullar, por exemplo, não escondeu seu desagrado) e sua publicação.
A orelha da primeira edição, não de todo favorável, era assinada por Leandro Konder. Já na década seguinte traria outra, entusiástica, de Paulo Francis, mais de acordo com a qualidade do romance. A edição disponível, com o selo da Alfaguara, de 1997, não traz nenhuma das duas.
Ao contrário de Cony, Graciliano não pôde acompanhar a cizânia precipitada por suas memórias. Publicado em 1953, oito meses após sua morte e sem o último capítulo por ele previsto e sempre protelado, o livro provocou uma tremenda polêmica envolvendo dois filhos do escritor, dois próceres do PCB e vários críticos literários.
Astrogildo Pereira, apesar de desavindo com o sectarismo de Prestes, achava que o livro, por sua natureza política, necessitava da aprovação da cúpula do partido. Tomara por manifesto ou panfleto partidário uma obra memorialística, um testemunho pessoal, impermeável a intromissões de qualquer espécie. Agildo Barata, preso por sua participação na Intentona de 35, implicou com a maneira como Graciliano o retratou, baixinho e de voz fina. Um observador distante dessas desavenças, o crítico Wilson Martins, levantou a suspeita de uma intervenção do PCB nos originais de Graciliano, com base em sete manuscritos até então desconhecidos. Clara Ramos, filha do escritor, fechou com Martins. Seu irmão Ricardo refutou a conjetura e comprou uma briga sem reconciliação. Para Ricardo, os tais textos supostamente adulterados não faziam parte dos originais de Memórias do Cárcere. Sua irmã e Martins haviam sido induzidos ao erro por uma garimpagem capenga. O que afinal seria confirmado por uma pesquisa irrefutável do professor da PUC de São Paulo, Thiago Mio Salla.
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