Mas é preciso discutir mais detidamente de qual
esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a
degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de
representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a
participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de
clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política
de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e
em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por
sistema eleitoral majoritário.
Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os
fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um
capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e
importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do
setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo,
semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar
e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua
cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros,
impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o
endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais
e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média
e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o
pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor
hegemônico do bloco
histórico em crise.
Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo – para não falar do ótimo.
O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de
mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de
um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a
extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder
pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população
apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas
mudanças políticas.
Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas
idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com
Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade
de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora
tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso
social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria
sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi “salvo” pela pandemia, que se
transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto
seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal
“segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas
é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.
Não se pode descartar que o liberalismo radical de
Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a
“nova” coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por
meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e
convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo
nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em
contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão,
inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via
prussiana em nosso longo processo de modernização.
O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar,
tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos
atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não
demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não
obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta
pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se
observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será
preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho
após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores.
Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no
Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país,
a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da
pandemia, como a indústria farmacêutica.
Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico
da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária,
ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de
justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar
se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de
neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus
representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado
com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas
“vítimas” de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida
aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta
da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível
sobre mata ressecada.
A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em
função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos
efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no
pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do
bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe”, que, no caso do
bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico
“exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.
Diante disso e da incrível capacidade interpelatória
das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às
narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade
assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da
coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de
escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas
costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar
pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por
conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS – sob
o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros
apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.
Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de
2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas
sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com
a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta
sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto,
naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá
conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com
desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho
para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para
a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.
Um conflito desta envergadura não só é possível, como
pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de
seu “novo” governo. Outra variável importante a considerar, é como a
radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se
manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou
José Murilo de Carvalho[i],
as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura
vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de
Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do
baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e
incerto.
Fator decisivo para tal evolução da situação é como as
massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um
descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das
metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais
e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue
sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência,
a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não
acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força
ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a
politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral
de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por
parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO).
Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia
de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias
que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a
República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo
militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um
arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada
da nacionalidade, em cuja sombra poderiam “se organizar as demais forças
da nacionalidade”[ii].
À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro
não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos
colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e
buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia
(clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída
democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.
De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em
meio aos perigos que se avizinham.
*Hamilton Garcia de Lima, Cientista Político,
UENF/DR[iii])
[i] Forças
Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.
[ii] Apud Carvalho,
p. 120.
[iii] Universidade
Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
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