Há
uma boa chance de que o radicalismo volte para os rincões de onde nunca deveria
ter saído
Com
a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais americanas, a grande pergunta
para os Estados Unidos, que interessa também ao Brasil e a muitos outros
países, é se o radicalismo de extrema direita de Donald Trump, Jair Bolsonaro e
semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao
contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi esse o tema de
recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a
jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que
deve ser publicado no Brasil proximamente.
O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos, e os costumes que defendem –, mas o ataque que fazem às normas e às instituições do Estado de Direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais. É o respeito a essas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chávez, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram.
Foi
esse o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e
jogar seus militantes contra o Congresso. E tem sido esse também o caminho
buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as Forças Armadas contra o Supremo
Tribunal Federal e o Congresso Nacional, quando eles anda pareciam
independentes, e ameaçar desde já não reconhecer os resultados de uma futura
eleição da qual eventualmente saia derrotado.
Impressiona,
ao ver essa lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem,
uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder,
graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos
intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm
problema em jogar seus escrúpulos às favas em nome de seus interesses práticos
mais imediatos. É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo a
sociedade e afeta não só os valores mais abstratos do Estado de Direito e da
democracia, mas coisas muito mais concretas, como a tolerância à corrupção, à
discriminação social e à violência. Isso talvez se explique pela noção, dada
como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de
princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um
dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo
do homem.
Se
isso é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e
a permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de
regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são
moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, essa superioridade
é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso
também ver se, e em que medida, o Estado de Direito e os regimes democráticos
também podem trazer benefícios práticos para a população que os tornem mais
interessantes do que os autoritários. Com raras exceções, basta comparar as
sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais
vantajosas. Nelas as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser
oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e
empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia
floresce e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são
preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são
conduzidas pelas pessoas mais competentes e os conflitos de interesses, em vez
de serem disputas sangrentas e sem limites, se resolvem de forma civilizada,
segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita.
Mas
as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem e
padecem da “tragédia dos comuns”, que acontece sempre que os interesses
individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo
prazo. Por isso elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas
por elites capazes de pensar no longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar
resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os
interesses individuais e o interesse coletivo.
Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo de direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética, também construtiva, ao bolsonarismo.
*Sociólogo,
é membro da Academia Brasileira de Ciências
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