Crise relacionada com a presidência de José Sarney no Senado, compondo-se com as pressões trazidas pela aproximação das eleições de 2010, desemboca em novo momento negativo para o PT, com tensão, defecções e renúncias (e renúncias a renúncias...). E o foco desse momento negativo é dado por questões de ética e consistência programática de grande importância na visão convencional da política - e, obviamente e com boas razões, na visão dos próprios líderes partidários envolvidos.
Cabe indagar sobre o efeito disso junto aos eleitores, e eu mesmo tenho sido chamado a opinar a respeito. Uma ponderação inicial se refere a algo que de que já falei anteriormente: o reduzido grau de identificação partidária estável no Brasil, que as pesquisas situam no nível de 35% dos eleitores, em grande parte identificados justamente com o PT. Compare-se esse número com o que temos agora nos EUA, por exemplo: nas informações atualizadas do portal Rasmussen Reports, 36,8% dos adultos estadunidenses se consideravam democratas em julho e 33,3% se diziam republicanos. Sem embargo das oscilações nas proporções de identificados com um partido ou outro ou de "independentes", o total de identificados gira há anos em torno dos 70%.
Mas qual o significado das identificações partidárias em diferentes casos? Em particular, como se relacionarão com os temas importantes do debate programático ou de posições a serem adotadas em circunstâncias diversas?
A observação mais geral aqui é a de que essas "identificações" se ligam, naturalmente, com a redefinição em termos de identidade política de fatores envolvidos no compartilhamento de interesses, mobilizando-os e tornando-os politicamente relevantes. Mas há várias nuances de importância.
É clássica a constatação a respeito dos partidos socialistas originalmente revolucionários, em que a solução representada pelo partido para o problema da identidade pessoal de seus membros acaba por preponderar sobre os objetivos "instrumentais" da ideologia revolucionária e por dar a esta última uma feição ritualística. Torna-se então possível a convivência pragmática com o capitalismo que supostamente se tratava de superar, embora isso não permita desqualificar o importante papel cumprido pelos partidos em questão na socialdemocracia tal como veio a institucionalizar-se em formas variadas.
Mas estudos recentes sobre identificação partidária nos Estados Unidos (revisados, por exemplo, em "An Institutional Theory of Political Choice", de Paul Sniderman e Matthew Levendusky, 2007) revelam matizes na relação entre a identidade e a postura perante questões diversas, com relevância direta para a eventual "reavaliação" dos partidos pelos eleitores. Entre outras coisas, eles mostram experimentalmente que as pessoas identificadas com um partido tenderão a perceber suas próprias posições sobre um assunto como sendo expressas pelo candidato de seu partido mesmo quando ele se opõe a ela sem ambiguidades e o candidato do outro partido tem posições inequivocamente mais próximas; ou que, convidados a avaliar um candidato republicano com base em informações falsas fornecidas pelo autor do experimento, esclarecidos em seguida sobre o caráter falso das informações e convidados a reexaminar sua avaliação inicial, apenas parte dos eleitores democratas envolvidos no estudo de fato fazem tal reavaliação, enquanto a totalidade dos republicanos simplesmente reafirmam a primeira avaliação - ou seja, as simpatias ou antipatias ditadas pela identificação partidária fazem que os efeitos da informação falsa persistam mesmo depois de desvendada sua falsidade.
Mas velhos dados de pesquisas brasileiras referidos ao confronto entre MDB e Arena durante o regime autoritário de 1964 são também de interesse, mostrando com clareza, e dando até a aparência de banalidade às constatações permitidas, os limites de considerações programáticas relativas a questões diversas. Assim, nos casos em que as pessoas, de maior ou menor informação, declaravam identificar-se com um partido ou outro, a congruência ou incongruência percebida por elas entre as suas posições pessoais e as dos partidos sobre os temas supostamente "quentes" do momento era quase inteiramente irrelevante no condicionamento de sua decisão de voto. Quer atribuíssem à Arena, por exemplo, posição contrária ou a favor de eleições populares diretas para os cargos políticos, quer tal posição correspondesse ou não à sua própria, quer simplesmente desconhecessem a posição do partido a respeito, os eleitores estudados concentravam maciçamente seus votos no partido de sua preferência, fosse MDB ou Arena - e só entre os que não declaravam identificação com algum dos partidos é que temas diversos produziam dispersão no voto.
Tudo isso deixa ver a força da identificação partidária, que conforma vigorosamente - ao ponto da irracionalidade - as disposições políticas em contextos diferenciados. Mas os dados brasileiros citados sugerem algo talvez especial. Se nos outros casos se pode falar de longa efervescência ideológica em torno de partidos socialistas ou da atual "guerra cultural" nos EUA, de que os partidos têm sido atores destacados, no caso de Arena e MDB se trata da mera invenção institucional de uma ditadura. E a sugestão é de que é fácil, de certo modo, produzir a identificação partidária e seus efeitos: basta que o sistema partidário se superponha "adequadamente" (como providenciaram inadvertidamente os ditadores) ao fosso social do país e à simplicidade com que surge na consciência popular.
Quanto à elite política, que sempre define o jogo, e seus temas complicados aos olhos populares, cabe esperar que ela termine por encontrar o equilíbrio entre as muitas possibilidades de manipulação que as pesquisas mencionadas indicam e a agregação consistente de identidades e interesses importantes. Como construir um MDB socialdemocrático?
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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