Transparência nas decisões do STF é inegociável
O Globo
Sugestão de sigilo feita por Lula é
incompatível com o papel dos tribunais numa democracia
Recém-empossado no Supremo Tribunal Federal
(STF),
o ministro Cristiano
Zanin se tornou alvo de críticas do PT e de setores da esquerda
em razão de seus primeiros votos na Corte. Em pelo menos quatro casos, ele
adotou posições contrárias à agenda tida como progressista. É curioso notar
que, antes da sabatina no Senado, opositores do governo diziam que Zanin faria
o que o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva mandasse. Para o bem da Corte, nem uma coisa nem outra. Certo ou errado,
ele agiu segundo o que as suas convicções apontavam como ditames da
Constituição. Em vez de críticas, os votos de Zanin merecem no mínimo elogios
pela independência.
Cobrado por aliados pela indicação de Zanin, Lula chegou a defender votos sigilosos no Supremo, como forma de deter a “animosidade” contra a Corte. “Se eu pudesse dar um conselho, é o seguinte: a sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte”, disse Lula. “Eu acho que o cara tem que votar, e ninguém precisa saber.”
A sugestão de Lula não merece prosperar.
Não é remédio para ataques e pode até acirrá-los, na hipótese remota de que vá
adiante. A transparência nas decisões do Supremo é um valor que deve ser
inegociável. Cada país tem sua forma de lidar com ela, mas nenhuma democracia
pode pôr em questão a essência desse valor. A sociedade tem direito a saber
como pensa e como vota cada ministro do Supremo. Nos Estados Unidos, as
decisões da Suprema Corte são tomadas em reuniões fechadas, mas seus votos são
públicos. No Brasil, as sessões do STF são abertas, e a leitura dos votos é
transmitida pela TV Justiça.
É evidente que exposição excessiva traz
consequências indesejadas, tanto para a imagem da Corte quanto para a de cada
ministro. Cabe aos juízes encontrar a melhor maneira de dosá-la para que não
venham a se tornar vítimas dela. Nossa Constituição abarca múltiplos temas de
impacto direto na vida dos cidadãos — somente para citar alguns: saúde,
educação, previdência social, assistência social, meio ambiente, direitos dos
povos originários, até mesmo a licença-paternidade constam de nossa Lei Maior.
Por isso o trabalho do Supremo é maior que o de cortes mundo afora que tratam
apenas de questões constitucionais. Isso exige, é certo, presença mais
frequente dos ministros em certos ambientes, não para falar do que julgarão —
algo inaceitável —, mas para tornar mais claro o papel da Corte no trato desses
temas. Mais autocontrole e comedimento sempre são bem-vindos. Não é preciso
cassar a transparência ou limitá-la.
Ainda há, é certo, um longo aprendizado no
uso do meio televisivo pelos tribunais, que poderia servir de base para
melhorias. Considerados, porém, todo o ônus da exposição excessiva e todo o
bônus da transparência, a TV Justiça tem saldo positivo. A sugestão de Lula — o
sigilo dos votos — vai muito além de tentar preservar a imagem do Supremo ou de
impor regras para o uso da televisão. Ressalvados casos excepcionais em que
estejam em jogo a segurança dos próprios juízes, questões militares ou de
segurança nacional, é uma ideia incompatível com o papel dos tribunais numa
democracia.
Operações contra garimpo ilegal na Amazônia
trazem resultado positivo
O Globo
Para resolver a questão, porém, será
preciso, além de reprimir o crime, incentivar as atividades legais
Na maior operação contra o garimpo ilegal
na Amazônia, Polícia
Federal e Ibama queimaram 302 balsas que faziam extração irregular no Rio
Madeira. Algumas estavam escondidas em reservas indígenas.
Batizada de Draga Zero, a ação foi encerrada depois de 12 dias, em que
percorreu 1.500 quilômetros ao longo de cinco municípios, quase a distância
entre Salvador e Rio de Janeiro.
Em que pesem a extensão territorial e o
desmonte deliberado dos organismos ambientais no governo passado, há pelo menos
oito meses PF e Ibama têm feito seguidas operações do tipo para combater o
garimpo ilegal, atividade que se alastrou pela Amazônia contribuindo para
desmatamento, contaminação dos rios, violência e introdução de doenças nas
comunidades indígenas. Um dos exemplos mais eloquentes foi a tragédia do povo
ianomâmi, em cujas terras havia 20 mil garimpeiros ilegais até o fim do ano
passado. As cenas de crianças desnutridas e doentes chocaram o país e o mundo.
A quantidade de balsas destruídas na última
operação não encontra paralelo noutras e traduz a mudança de atitude do governo
atual na repressão ao crime na região. Como mostrou
reportagem do GLOBO, 1.997 máquinas foram retiradas de operação neste ano, ou
oito por dia. Outras 402 foram destruídas. É evidente que esse
tipo de ação tem relação inequívoca com a queda notável verificada nos índices
de desmatamento da Amazônia — 42,5% nos primeiros sete meses do ano em relação
ao mesmo período de 2022.
Não há dúvida de que as operações do Ibama
e da PF impõem prejuízos ao garimpo ilegal, por isso mesmo devem ser encorajadas
para coibir o crime. Elas atingem tanto os barões, que dispõem de aviões,
balsas, maquinário, combustível e infraestrutura, quanto milhares de pequenos e
médios garimpeiros, muitos deles moradores de comunidades ribeirinhas.
As cenas de balsas destruídas parecem se repetir.
Em dezembro de 2021, a despeito da má vontade do governo Jair Bolsonaro para
reprimir os garimpeiros ilegais, PF e Ibama inutilizaram mais de cem
embarcações nas imediações de Autazes, no mesmo Rio Madeira. Quanto mais balsas
se destroem, mais aparecem, mostrando que o garimpo ilegal tem um fôlego que
desafia o governo.
Está claro que, para resolver a questão, é
preciso fazer mais que apenas reprimir os criminosos. Governos federal,
estaduais e municipais terão de desenvolver políticas públicas que resultem em
projetos sustentáveis para absorver a mão de obra hoje a serviço do garimpo
clandestino, que tira seu sustento da atividade ilegal.
Gradativamente, será preciso substituir o
ilegal pelo legal. Projetos de atividades sustentáveis existem. Universidades,
ONGs e empresas estão cheias deles. Dinheiro também não parece faltar. O Fundo
Amazônia foi reativado, e há a cada dia mais doadores interessados em preservar
a floresta. O injustificável é aceitar atividades ilegais só porque geram
ocupação para a população. Elas geram também desmatamento, contaminação e
morte.
Mais benesses aos partidos na minirreforma
eleitoral
Valor Econômico
Mulheres e negros, pela reforma em
gestação, serão ainda mais discriminados do que já são
As regras eleitorais mudam a cada eleição e
a do ano que vem, que escolherá prefeitos e vereadores dos 5.568 municípios,
não foge ao figurino. A Câmara dos Deputados prepara às pressas uma
minirreforma eleitoral, com temíveis resultados. Ela é feita em um ambiente no
qual confluem pressões variadas, desde o aumento do fundo eleitoral, que bateu
recorde em 2022 (R$ 4,9 bilhões), até uma anistia geral, ampla e irrestrita
para crimes eleitorais cometidos até hoje por partidos e suas lideranças.
O Congresso conseguiu fazer boas mudanças,
como a criação das cláusulas de barreira na reforma de 2017, na sequência da
proibição, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015, de financiamento privado de
campanhas eleitorais. Foi criado um patamar mínimo de representatividade para
que os partidos políticos tenham acesso ao fundo partidário e participem de
comissões das Casas. As exigências são crescentes, e hoje 16 partidos não podem
mais usá-lo, o que os torna candidatos à extinção ou a recorrer à tábua de
salvação das federações.
Desde então, sob esse manto restritivo, as
sucessivas reformas eleitorais visam a ampliar as chances dos partidos que
sobreviveram, tanto fazendo mudanças, até os limites da permissividade das
regras para a prestação de contas de gastos eleitorais, como burlando as
obrigações, votadas pelo próprio Congresso, de destinação de recursos para
mulheres e negros que disputem cargos eletivos.
Grandes princípios e miudezas da disputa de poder eleitoral se misturam na minirreforma. O Congresso pressiona para elevar os recursos do fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões do último pleito. A ideia é, no mínimo, reajustá-lo pela inflação, para R$ 5,5 bilhões. O orçamento de 2024 prevê R$ 1 bilhão, fora outro bilhão do fundo partidário. Além de criar mais despesas em um orçamento estreitíssimo, esses gastos não se justificam. As eleições nacionais, como as de 2022, com distritos muito grandes (os Estados), exigem logística e comunicação muito mais dispendiosas que em colégios restritos, como os municípios. Há apenas 278 deles com mais de 100 mil habitantes - a maioria do eleitorado pode ser alcançada com menos recursos.
A minirreforma quer mexer também na Lei da
Ficha Limpa, já que modificações propostas para aliviar suas punições estão
paradas no Senado. O objetivo é abreviar o período de inelegibilidade vigente.
Os oito anos da pena seriam contados a partir da sentença de condenação e não
após o cumprimento da sanção pela qual o candidato passou a ter a ficha “suja”.
As exigências de prestação de contas estão
evaporando a cada reforma. Os partidos já não têm nada a ver com eventuais
ilicitudes cometidas por seus filiados que se candidatam há muito tempo. O
prazo para a prestações de contas vai ser ampliado de três para cinco dias.
Mesmo assim, eventuais omissões durante a campanha não seriam mais objeto de
sanções do Tribunal Superior Eleitoral até o fechamento da contabilidade da
campanha, quando então todos os gastos teriam de ser informados com precisão.
Mulheres e negros (a soma dos que se
declaram pretos e pardos, na definição hoje em uso), pela reforma em gestação,
serão ainda mais sub-representados do que já são. Pela Justiça Eleitoral, as
verbas de campanha têm de ser proporcionais ao número de candidatos negros -
mais de 50% em 2022 - e de candidatas mulheres, para as quais se fixou um
mínimo de 30%. No caso dos negros, cogita-se fixar um mínimo de 20%, inferior à
fatia dos que já costumam concorrer. Já os gastos que contam para integrar a
verba mínima estipulada para candidaturas femininas foram ampliados para
incluir tudo, até cuidados que “as mulheres têm de desenvolver” (Folha de S.
Paulo, ontem).
Esses dispositivos podem ser inócuos até,
caso o Congresso aprove um projeto de emenda constitucional, a caminho de ser
votado, que anistia os partidos de todos os crimes eleitorais cometidos, seja
qual for sua gravidade ou natureza. Essa PEC, porém, não depende dos prazos
eleitorais - a reforma tem de ser sancionada pelo presidente da República até 5
de outubro, um ano antes do pleito.
A coordenadora do grupo de trabalho da
minirreforma eleitoral é a novata deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ), filha
do ex-deputado Eduardo Cunha, recém-saído da prisão. Ela também é autora de
projeto de lei que pune instituições financeiras que discriminem pessoas
politicamente expostas que respondam a inquéritos - por exemplo, negando-lhes
crédito. Outro projeto seu busca atender à exigência do Supremo de adequação
das bancadas da Câmara ao resultado do Censo. Em vez de fazer isso (o Estado do
Rio perde 4 vagas), Dani simplesmente propôs aumentar o número de deputados
(hoje são 513).
Sob reação da opinião pública, o Congresso tem podado as propostas mais extravagantes, aprovando outras mais discretas que alargam a margem de manobra de caciques partidários, em especial em relação ao uso de recursos públicos. É esse dinheiro que contribui para que o sistema partidário seja hoje a geleia geral que é. Não é preciso aos partidos arregimentar adeptos e angariar contribuições. Cumpridas exigências burocráticas, verbas públicas passam a sustentá-los - sua existência depende do Estado, contrariando o espírito da representação política genuína.
Clube dividido
Folha de S. Paulo
Cenário global dificulta desejo de Lula de
usar G20 para elevar status do Brasil
Criado em 1999 numa tentativa de dinamizar
o diálogo multilateral após uma série de crises econômicas com repercussões
globais, o G20 chega a este 2023 como um clube bastante dividido.
Reunindo as 19 principais economias do
mundo mais a União Europeia, ao longo dos anos o grupo ganhou destaque como
instrumento de diálogo que se prometia mais eficaz do que o combalido arcabouço
desenhado pelas estruturas de Bretton Woods no pós-guerra, como o FMI e o Banco
Mundial.
Mais importante, o G20 se lançava como uma agremiação
de maior pluralidade, ante o exclusivismo do G7 das nações ricas.
O sucesso foi parcial, dada a falta de
instrumentos de implementação de políticas e a queixa de países que ficaram de
fora. Para piorar, quando começar sua reunião anual no sábado (9) na Índia, o
G20 irá expor suas divisões cada vez mais acentuadas, uma decorrência de seu
formato pouco rígido.
Para começar, a Guerra da Ucrânia
impossibilita fotos conjuntas ou consensos amplos em suas atas.
Em termos simples, quando o assunto é a
invasão russa, o mundo hoje se divide entre o Ocidente liderado pelos EUA, que
apoia Kiev, e a China ao lado de Moscou —além de alguns países com peso
suficiente para não se alinhar a um dos lados e buscar vantagens na crise, como
os anfitriões e o Brasil.
Porém há mais nuvens no horizonte,
decorrência do embate global entre Pequim e Washington, no qual por exemplo os
indianos são rivais de Pequim. Com efeito, o líder
chinês Xi Jinping não comparecerá ao evento para evitar elevar
o status do premiê Narendra Modi, aplicando um duro golpe no G20.
No mês passado, eles estiveram na cúpula do
Brics, onde a China engoliu pretensões de parceiros como o Brasil e saiu
vitoriosa com uma expansão duvidosa do grupo.
Tudo isso dificulta os planos de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), que receberá simbolicamente a presidência rotativa
do G20 de Modi, para um mandato que começa de fato em dezembro e dura um ano. A
coincidência seria ideal para o petista lustrar sua imagem externa após o
ostracismo bolsonarista.
A visibilidade permitiria, no ideal governista,
fazer avançar agendas como a ambiental e a de reforma de estruturas com poder
um pouco mais real, como o Conselho de Segurança da ONU.
A opção de Lula por bater de frente com os
países ricos no tema do clima parece travar o debate, no qual o Brasil tem voz.
Quanto às Nações Unidas, o desejo, que já era quixotesco, ganha ares de
quimera.
Caso haja melhora do cenário global, o
Brasil ainda poderá fazer bom uso de seu ano em evidência. Todavia a realidade,
até aqui, apresenta poucas oportunidades a Lula.
Falar salva vidas
Folha de S. Paulo
É necessário política preventiva para lidar
com alta de suicídio entre jovens
O suicídio é um problema de saúde pública
que não recebe atenção proporcional a sua gravidade. Segundo estimativas da
Organização Mundial de Saúde, cerca de 700 mil pessoas tiram a própria vida
todos os anos. São mais mortes devido a suicídio do que a malária, HIV/Aids,
câncer de mama ou guerras.
Por isso, o último relatório sobre o tema
da OMS, de 2019, alerta para a importância de políticas de prevenção, com foco
nos estratos mais vulneráveis, como os jovens.
Dentre as principais causas de óbito de
indivíduos entre 15 e 19 anos, o suicídio ocupa o quarto lugar, atrás de
acidentes de carro, tuberculose e violência interpessoal. Países de baixa e
média renda são mais afetados: desse tipo de morte, 77% ocorrem neles, que
concentram 88% dos adolescentes que se matam.
A média global é de 9 por 100 mil
habitantes. De 2010 a 2019, a taxa caiu 36%. As Américas foram a única região
com alta (17%). No Brasil, o índice em 2019 foi de 6,4 (2,8 entre mulheres e
10,3 entre homens).
Aqui, os números do Ministério da Saúde
mostram aumento preocupante no estrato mais jovem. Entre 2016 e 2021, a taxa na
faixa etária de 10 a 14 anos subiu de 0,92 para 1,33 (alta de 45%) e,
na de 15 a 19 anos, de 4,40 para 6,56 (49,3%) —avanços superiores ao verificado
na população em geral (17,8%).
Na cidade de São Paulo, dados da Secretaria
Municipal de Saúde indicam salto de
46,5% nos casos de autoagressão e suicídio em pessoas de até 19 anos entre
2019 e 2022. Só no primeiro semestre deste ano, já foram 1.863 ocorrências, o
que supera em 87% o número verificado no mesmo período de 2019.
Tal cenário torna urgente a implementação
de políticas focadas nessa faixa etária. O SUS já segue orientações da portaria
de Diretrizes Nacionais para a Prevenção do Suicídio, de 2006, que inclui
treinamento para detecção precoce, avaliação e tratamento de pessoas que
apresentam comportamento suicida. É preciso mantê-la, reforçá-la e, talvez,
expandi-la.
Já as escolas precisam atuar no combate ao
bullying e com projetos de desenvolvimento de competências socioemocionais dos
alunos.
Por último, é fundamental que transtornos mentais e suicídio não sejam tabus. No meio familiar e social, é preciso conversar abertamente sobre o assunto, para que jovens se sintam à vontade para relatar problemas e buscar ajuda. É mais fácil administrar aquilo que conseguimos verbalizar.
O dever de cortar gastos
O Estado de S. Paulo
Regra do arcabouço fiscal já acomoda
necessidades da saúde e da educação. Se quiser aumentá-las ainda mais, governo
Lula tem de fazer escolhas, cortando gastos de outras áreas
A aprovação do arcabouço fiscal
proporcionou ao governo uma folga temporária para elaborar o Orçamento de 2024
com mais flexibilidade. Com o antigo teto de gastos, o Executivo não teria
espaço para garantir um aumento real de despesas e seria obrigado a promover
severo corte nos dispêndios discricionários, com riscos para o funcionamento da
máquina pública.
O enterro definitivo do teto, por outro
lado, ressuscitou os pisos constitucionais de educação e saúde. Entre 2016 e
2023, essas despesas vinham sendo reajustadas pela variação da inflação. Agora,
volta a valer o mecanismo de correção definido na Constituição. No caso da
saúde, os gastos precisam corresponder a, no mínimo, 15% da Receita Corrente
Líquida (RCL); para a educação, o equivalente a 18% da Receita Líquida de
Impostos (RLI).
No curto prazo, a pressão já será
considerável. De forma imediata, as duas áreas teriam de ter as despesas
majoradas em R$ 18 bilhões neste ano. Este seria o valor proporcional dos
pisos, equivalente ao período entre setembro e dezembro, uma vez que o teto de
gastos deixou de existir em 31 de agosto – controvérsia a ser discutida com o
Tribunal de Contas da União (TCU).
Já para o ano que vem, não há dúvidas.
Saúde e educação vão consumir R$ 58,8 bilhões do espaço para ampliação dos
gastos no Orçamento, que será de R$ 129 bilhões. Como mostrou o Estadão, o
valor reservado para saúde e educação equivale a 35% da arrecadação adicional
de R$ 168 bilhões necessária para zerar o déficit fiscal em 2024.
Isso, por si só, já seria um problema, uma
vez que parte do pacote de medidas tributárias anunciado pelo governo ainda não
está em vigor. É o caso da taxação dos fundos exclusivos e offshore e das
apostas esportivas, que dependem da aprovação do Congresso Nacional. Há outras
implicações mais sérias no retorno dos pisos constitucionais de saúde e
educação no médio e longo prazos. Ao se vincularem às receitas, e não às
despesas, os pisos tendem a crescer de forma mais acelerada do que o restante
dos gastos.
Ciente do problema, o próprio governo
afirmou que pretende enviar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para
corrigir esses pisos de outra forma, ainda não definida. O Tesouro Nacional
recomendou, por sua vez, que os dispêndios com saúde e educação acompanhem a
regra do arcabouço, de forma a impedir o aumento da rigidez orçamentária e a
compressão do espaço das demais despesas.
Tal debate impõe um novo desafio ao
governo, uma vez que impacta gastos considerados sensíveis para apoiadores e o
Congresso. Na discussão do arcabouço fiscal, essa pressão acabou por garantir a
exclusão, do alcance da norma, dos pisos salariais dos professores da rede
pública e da enfermagem – pressão que certamente voltará quando a discussão dos
pisos constitucionais se apresentar.
Há, portanto, excelentes motivos, de ordem
fiscal e política, para o governo se antecipar a esse movimento. Como já
dissemos neste espaço, gastos com saúde e educação não são mais meritórios que
os de outras áreas. Se uma despesa, independentemente de sua natureza, foi
incluída no Orçamento-Geral da União, parte-se do princípio de que ela é
necessária. A regra do arcabouço, por sua vez, já permite o crescimento dos
gastos acima da inflação, o que deveria ser mais do que suficiente para
acomodar as despesas das duas áreas.
O empoçamento de gastos, que ocorre todos
os anos, é sinal de que há mais recursos para saúde e educação do que
capacidade de desembolsá-los. Cumprir a norma e aplicá-los mal, sem vinculação
a uma política pública consistente, seria jogar dinheiro fora, verdadeiro desrespeito
com a sociedade.
Se ainda assim julgar que é preciso
conceder tratamento privilegiado para saúde e educação, ou seja, um reajuste
das despesas acima da inflação, o governo terá de fazer escolhas, reduzindo os
gastos de outras áreas e revendo subsídios e renúncias fiscais – e pagar o
preço por elas. Essa é a forma adequada de preservar as rubricas que considera
prioritárias e a essência do arcabouço fiscal.
Fim de uma omissão de 26 anos
O Estado de S. Paulo
STF determina que Câmara cumpra a
Constituição, ajustando o tamanho das bancadas estaduais de acordo com Censo.
Princípio da proporcionalidade é fundamental para representação
O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou
por unanimidade que a Câmara dos Deputados atualize o número de integrantes das
bancadas dos Estados e do Distrito Federal com base nos dados populacionais do
Censo de 2022. A relevância do julgamento vai, porém, muito além do rearranjo
para as eleições de 2026. A rigor, a decisão da Corte confronta a omissão de 26
anos da Casa em seu papel constitucional de garantir a justa representação da
população em seu plenário.
A democracia e o princípio federativo da
República ganharão com a decisão do STF sobre questão tão basilar. O artigo 45
da Constituição Federal estabeleceu que a representação dos Estados e do
Distrito Federal, proporcional às suas populações e dentro dos limites de 8 a
70 deputados, fosse definida pela Câmara por meio de lei complementar. O texto
previu ainda “ajustes necessários” a serem adotados até o ano anterior de cada
eleição. Nada ocorreu, porém, desde 1993, quando a única lei sobre o tema
versou sobre o aumento do total de parlamentares de 503 para 513, ainda
vigente, e determinou a adequação das bancadas estaduais de acordo com dados
demográficos.
Em seu relatório, confirmado pelos votos de
seus dez colegas da Corte, o ministro Luiz Fux fixou prazo até 30 de junho de
2025 para a Câmara aprovar uma lei complementar fixando o número de integrantes
das bancadas dos Estados e do Distrito Federal proporcionalmente aos dados do
Censo 2022. Em caso de nova negligência da Câmara, a definição caberá ao
Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Conforme concluiu Fux, a “omissão
legislativa identificada no caso concreto gera um evidente mau funcionamento do
sistema democrático, relacionado à sub-representação das populações em alguns
Estados na Câmara dos Deputados em grau não admitido pela Constituição”. Seu relatório
resgata o princípio da proporcionalidade, lastreado na população, para reger a
distribuição das cadeiras. Fux ponderou ainda que o constituinte de 1988 estava
ciente de que sua escolha provocaria “a inevitabilidade da distorção federativa
na representação”. De fato, o limite de 70 deputados para as bancadas tornou a
população do Estado de São Paulo sub-representada na Câmara até os dias de
hoje.
A decisão de agora do STF busca enfrentar
as sucessivas omissões a respeito da formação das bancadas estaduais com base
na distribuição demográfica nos Estados. A defasagem na representação existe
desde 1997, quando uma lei deveria ter ajustado o tamanho das bancadas para o
pleito do ano seguinte com base na atualização dos dados demográficos. A Câmara
não aprovou a legislação e repetiu a inação nas eleições que se seguiram, mesmo
depois dos Censos de 2000 e 2010. Coube ao governo do Pará provocar o STF, em
2017, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO). É
de lamentar, no entanto, que a Corte tenha tardado cinco anos para avaliar
questão flagrantemente contrária à Carta de 1988.
As mudanças demográficas evidenciadas pelo
Censo 2022 deverão corrigir as bancadas de 13 Estados na próxima legislatura da
Câmara. Estudo do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap)
indica que seis Estados – Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Paraíba,
Piauí e Pernambuco – sofrerão reduções em suas bancadas. A expansão
populacional em Santa Catarina, Pará, Amazonas, Minas Gerais, Ceará, Goiás e
Mato Grosso será refletida no aumento de suas representações. Autor da ADO, o
Pará contará com mais quatro deputados.
A complexidade política do tema certamente
pode explicar a omissão da Câmara ao longo de 26 anos. A redução dos
integrantes de uma bancada estadual não só dificulta a reeleição de seus
deputados, como diminui o peso daquele Estado na Câmara. A regra do jogo,
entretanto, foi dada pela Constituição. Cabe ao Congresso cumpri-la. O número
das cadeiras de cada Estado em relação à sua população não é um dado estático.
Demanda atualização. Só assim a Câmara terá condições de exercer, sem
distorções, seu papel representativo da população.
À procura de R$ 1 tri para o clima
O Estado de S. Paulo
Investimento necessário para País cumprir
metas ambientais demanda compromisso do poder público e da sociedade
Para cumprir as metas de combate às mudanças
climáticas firmadas no Acordo de Paris, o Brasil precisará investir R$ 1
trilhão nos próximos sete anos. Calculada em estudo do Fórum Econômico Mundial
(FEM) com a consultoria Oliver Wyman, a cifra dá a medida do esforço necessário
para o País chegar a 2030 dentro de um novo patamar de responsabilidade
ambiental, com emissões de gases causadores do efeito estufa reduzidas à
metade.
Não é pouca coisa. Mas é factível, desde
que o empenho seja efetivo, tanto por parte do Estado quanto da sociedade. O
relatório do FEM cita o recente Plano de Transformação Ecológica (PTE) como uma
evidência de que o compromisso brasileiro com a descarbonização está se
fortalecendo.
De fato, o Brasil tem emitido sinais de que
a busca por soluções sustentáveis é uma prioridade na lista de políticas
públicas. Ao governo cabe viabilizar políticas que deem ao setor privado o
caminho para o investimento. Com este planejamento, os setores produtivos podem
também traçar estratégias para alcançar metas individuais de descarbonização.
Um exemplo é a elaboração de regras para
tirar do papel projetos de produção de hidrogênio verde, uma das principais
apostas como fonte de energia limpa no mundo. No Brasil, o hidrogênio verde
pode ser produzido por meio de fontes limpas, com numerosos parques de geração
eólica e solar, o que é mais uma vantagem.
Mas há que ser estruturada uma política que
envolva todos os elos da cadeia, que inclui demanda, garantias para contratos,
definição de uma rota tecnológica. Especialistas garantem que o País tem potencial
para não apenas abastecer o mercado interno – nas indústrias siderúrgica e de
fertilizantes, por exemplo –, como para exportar hidrogênio de baixo carbono.
Principal vilão brasileiro em relação à
emissão de carbono, o desmatamento registrou recorde em 2022. A queda de quase
34% do desmate na Amazônia no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo
período do ano passado, como revelou o Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), sinaliza uma importante mudança de postura, sem conivência com
atividades ilegais que degradam o bioma.
Na busca pelos recursos necessários para
frear o aquecimento global, todos os esforços são bem-vindos. Por exemplo, o
presidente Lula da Silva vem falando do compromisso firmado pelos países
desenvolvidos, em 2009, na Cúpula do Clima da Organização das Nações Unidas
(ONU), de investir US$ 100 bilhões no Fundo Amazônia. O pedido é razoável. Se a
região de maior biodiversidade do planeta é hoje o centro da preocupação
ambiental do mundo, deve poder contar com a ajuda financeira dos países ricos.
Mas a ajuda internacional é apenas um dos caminhos. Há muito a ser feito dentro de casa. Com regras claras e estímulo aos investimentos e incentivos a soluções tecnológicas, além de repressão às infrações ambientais. A soma de R$ 1 trilhão em investimentos intimida à primeira vista. Mas é uma questão de prioridade e engajamento do poder público e da sociedade.
Alerta na indústria
Correio Braziliense
É preciso que se definam diretrizes para
aproveitar o potencial brasileiro nos processos de transição energética e de
desenvolvimento sustentável
O governo precisa estar atento para não
perder tempo na adoção das medidas do programa de revitalização do setor
industrial, ou de reindustrialização, como vem sendo chamado. E certamente esse
é o termo, uma vez que o Brasil passou por um processo de desindustrialização
com perda de participação do setor no PIB, sobretudo da indústria de
transformação, nas últimas décadas. O curtíssimo prazo mostra os efeitos que o
setor pode trazer para a economia. Com os incentivos à venda de veículos no
segundo trimestre, foi a indústria que sustentou — com o consumo das famílias —
o crescimento de 0,9% do Produto Interno Bruto de abril a junho deste ano. Sem
o incentivo, o setor não terá tração para ancorar o crescimento no terceiro
trimestre, mesmo sendo este um período de encomendas do varejo para o fim do
ano.
A produção industrial teve queda de 0,6% em
julho em relação a junho e de 1,1% na comparação com o mesmo mês do ano
passado. O destaque na retração foi a fabricação de bens de capital e de bens
duráveis, com recuo 7,4% e 4,1%, respectivamente. Nos dois casos, que acumulam,
cada um, perda de 9,5% em dois meses, o resultado é reflexo das altas taxas de
juros cobradas no Brasil, com a Selic em 13,25%. Bens semiduráveis, com
crescimento de 1,5%, puxaram para cima a produção de bens de consumo (1,4%).
Com juros altos, empresas postergam
investimentos em aumento de capacidade, reduzindo a demanda por máquinas e
equipamentos, enquanto consumidores freiam a demanda por itens duráveis, como
carros, móveis e eletrodomésticos, entre outros. Nesse cenário, a indústria de
transformação, que agrega valor a insumos básicos, recuou 0,4% em julho.
Ressentindo-se de uma conjuntura global de desaceleração, a indústria extrativa
brasileira fechou o mês de julho com queda de 1,4%, completando o quadro de
estagnação do setor.
A queda da produção industrial em julho
veio depois de estabilidade em junho e crescimento de 0,3% em maio. A indústria
brasileira vem rodando em ritmo lento ao longo do ano, com pequenas altas ou
quedas a cada mês. No ano, a queda é 0,4% e em 12 meses o setor está estagnado.
É preciso lembrar que no setor industrial estão os melhores salários e o maior
potencial de investimento em inovação, o que por si justifica o estabelecimento
de uma política específica para o setor. Desde a posse do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva se fala em um projeto de reindustrialização, que ainda não
foi oficialmente lançado.
O vice-presidente e ministro do
Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, sinalizou que
serão destinados mais de R$ 100 bilhões nos próximos quatro anos, entre
financiamentos e recursos não reembolsáveis, para fomentar a indústria
brasileira. Recursos são necessários para um parque que vem sendo sucateado ao
longo dos anos, mas não é suficiente para pôr de pé um setor que, nos anos
1980, respondeu por cerca de 30% da geração de riqueza do país e hoje
representa menos de 20%. A indústria de transformação, que já respondia por 27%
do PIB, atualmente corresponde a pouco mais de 10%.
É preciso que se definam diretrizes para aproveitar o potencial brasileiro nos processos de transição energética e de desenvolvimento sustentável, assim como para dotar o país de tecnologia de ponta. Se por um lado as transformações globais, com disputas tecnológicas e geopolíticas e mudanças climáticas, tornam mais difícil a tarefa de reindustrializar o país, é preciso ver nesse cenário as oportunidades para tirar o segmento do marasmo que viveu nos últimos anos.
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