Folha de S. Paulo
Não fosse a Corte, não se teria avançado
nada na agenda de direitos na última década
Parece estranho, mas o brasileiro agora se
preocupa mais com a escalação do Supremo Tribunal Federal do que com a
composição da seleção de futebol. Exagero, claro, pois a massa está mais
preocupada com coisas menos sublimes, tais como sobreviver todo dia à pandemia
de homicídios que infesta o país ou como fazer caber em um salário infame um
longo mês de despesas e aflições.
Mas as redações, os setores intelectuais médios, os hiperpolitizados que junho de 2013 nos deixou como legado, a classe política, o governo, os neoconservadores, a chamada "opinião pública", enfim, não pensa em outra coisa a não ser em quem Lula indicará para a próxima vaga no STF. E o efeito Zanin certamente tornou a coisa ainda mais candente.
Faz sentido. Primeiro, é um fenômeno
mundial: em democracias que comportam grandes e indefinidos desacordos, o
Judiciário finda por representar uma saída para os grandes impasses morais e
políticos em que a política empaca e o consenso parece impossível.
Segundo, há que se acrescentar um tempero
brasileiro: não só vem diminuindo por aqui o poder do governo no Congresso como
também crescem exponencialmente as bancadas conservadoras e de direita, ao
mesmo tempo em que sociedade se dividiu numa polarização que parece incurável. O
centro político virou pó e a esquerda perdeu a comunicação com a base, deixou
de ter a capacidade de apontar votos e está rachada, ao que parece,
irremediavelmente, entre "classistas", com a sua opção preferencial
pelos pobres, e "identitários", com a sua luta exclusiva pelo que
Flávia Oliveira chamou de "direitos identitários".
Para os progressistas, o horizonte parece
preocupante. Cada legislatura tem sido mais conservadora que a anterior há mais
de cinco ciclos eleitorais e o avanço vertiginoso do bolsonarismo mostrou que,
quando um progressista perde a Presidência, é um deus nos acuda, pois tudo o
que a política de movimentos leva anos para conseguir a política institucional
pode derrubar em uma votação numa madrugada qualquer ou numa canetada de um
presidente autoritário.
Os progressistas, nesse momento, estão a sotavento,
os conservadores, com o vento a favor, mas há um impasse: os conservadores
tomaram a hegemonia nos movimentos sociais, na base difusa da sociedade e nas
casas legislativas; os progressistas ficaram com a Presidência da República e
fizeram das redações dos jornais de referência, dos setores intelectuais médios
e das universidades o seu bastião.
O STF tornou-se decisivo. Não fosse o
Supremo, não se teria avançado um milímetro na agenda de direitos e
reconhecimento social de minorias na última década, apesar de toda a
autocomplacência dos movimentos identitários e do louvor à própria
"potência". Direitos ambientais e digitais, limites constitucionais
ao autoritarismo, defesa mais elementar de garantias constitucionais, tudo hoje
passou a depender do Supremo. No fundo, todo progressista pressente que se
perder o STF, adeus, viola.
Como em Estados medievais que levavam a sua
causa ao Sumo Pontífice, toda semana os brasileiros voltam as cabeças e os
corações para o Sumo Tribunal, pois certamente uma decisão política crucial
emanará daquela veneranda casa. Aliás, a casa legislativa mais importante do
país.
Uma intelectual progressista que respeito
muito disse nesta semana achar "complicado que temas como aborto e drogas
sejam deixados nas mãos do STF. Parece um atalho para nossa incapacidade de
ganhar apoio na sociedade. Ou seja, uma substituição da política". Tem
razão. Mas é que estamos no território dos desacordos e nenhum dos lados tem
força parlamentar ou apoio social para vencer o outro e impor um novo consenso.
Então vai-se aguentando como pode, encontrando atalhos, comendo pelas beiradas,
apegando-se a Deus e ao Supremo.
Os democratas torcem as mãos, em uma
mistura de angústia e desespero com algum alívio e resignação. A sensação geral
é que esse negócio de redesenhar as funções de um dos Três Poderes da República
assim, no vai da valsa, na improvisação por força das necessidades e segundo a
inspiração dos juízes de turno, não é um modo lá muito seguro de modificação do
design institucional ou da cultura política de qualquer democracia.
Por outro lado, numa sociedade
politicamente empacada em conflitos, com apetites vorazes avançando sobre os
direitos dos outros e grupos influentes se aproveitando da confusão para
esculpir o Estado conforme os próprios interesses, quem pode subestimar a
batalha pelo STF?
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
Perfeito
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