quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Simon Johnson* - A competição das grandes potências

Valor Econômico

A fase mais recente da competição tem muito mais a ver com tecnologia do que com comércio

A cúpula recente do Brics na África do Sul marca o início de uma nova fase da competição de grandes potências. Aparentemente a pedido da China, o grupo Brics (que também inclui Brasil, Rússia, Índia e África do Sul) convidou seis outros países a se juntarem ao bloco: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Dependendo do critério usado, a produção econômica desse grupo ampliado rivalizará com a do G-7 (os principais países desenvolvidos: Estados Unidos, Canadá, Japão, Reino Unido, França, Alemanha e Itália).

Segundo declarações públicas do presidente russo, Vladimir Putin, e, mais importante, do presidente chinês, Xi Jinping, o objetivo é construir um grupo que possa fazer frente à influência ocidental e criar os pilares de uma ordem mundial alternativa, com menos dependência do dólar americano.

Sem dúvida, esse esforço chamará mais atenção no ano que vem, especialmente quando o bloco expandido se encontrar pela primeira vez em outubro de 2024 (em Cazã, na Rússia). Contudo, é improvável que o Brics+ redefina o mundo, por três motivos.

Primeiro, não se deve exagerar o alcance do interesse comum entre os integrantes do bloco. A Índia tem muitas razões (com base em grande parte da história recente) para não querer que a China se torne poderosa demais. Além disso, qualquer grupo que inclua produtores de petróleo e gás (Brasil, Rússia, Irã, Arábia Saudita e Emirados) e importadores de energia tem uma falha fundamental. Por exemplo, a África do Sul, onde a escassez de energia (e os apagões recorrentes) vem tendo efeitos negativos graves na economia, não tem interesse em pagar mais caro pela energia; porém, vender petróleo para o mundo é o que ajuda a fechar as contas públicas dos produtores de petróleo e gás.

Segundo, a ideia de substituir o dólar por outras moedas para o comércio e as transações financeiras existe há décadas. O problema é que não é possível trocar algo por nada. Se a alternativa envolver o renminbi chinês, isso exigirá botar bastante fé na economia chinesa, que hoje parece mais que um pouco abalada. Quando a situação apertar, será que as autoridades chinesas vão mesmo permitir aos estrangeiros vender suas participações em renminbi sem restrições?

Agora a China quer desafiar o Ocidente pela liderança em novas tecnologias, de olho em apertar o controle social por meio de uma combinação de inteligência artificial e vigilância. Isso, e não o Brics ampliado, é a verdadeira ameaça potencial ao Ocidente

Terceiro, qualquer aliança com a Rússia é obviamente repleta de riscos a essa altura do campeonato. A liderança da Rússia parece instável e imprevisível. Em vez de recuar de sua guerra de agressão à Ucrânia, Putin parece determinado a continuar atrapalhando os mercados globais de energia (o que é ruim para os importadores de energia) e os mercados de grãos (o que é muito ruim para países como o Egito).

A invasão total da Ucrânia pela Rússia tem sido um desastre para ambos os países, mas Putin é o tipo de ditador que não consegue admitir um erro. A enxurrada atual de golpes em toda a África é um lembrete para nós (e para ele) de como terminam tais regimes.

Durante séculos, a competição de grandes potências se baseou no império formal (governo de outros países) e no exercício do controle de fato por meios militares, suborno e relações comerciais desiguais. Do início dos anos 1700 até a década de 1940, o império britânico vem liderando o mundo com ambos os tipos de maquinações, mas outros países europeus também tiveram suas esferas de influência.

O sistema global mudou após a Segunda Guerra Mundial, porque os Estados Unidos assumiram o posto de principal potência industrial do Ocidente, determinados a substituir o império formal por relações comerciais muito mais iguais. Sem dúvida, continuam a haver várias reclamações sobre a justiça desse sistema. Mas a Europa Ocidental se saiu bem, e países como o Japão, Cingapura, Coreia do Sul e (nas últimas décadas) China prosperaram sob um sistema de comércio internacional relativamente aberto que incentivou as exportações de bens manufaturados de países de salários mais baixos para mercados de alta renda. O bloco alternativo do pós-guerra da União Soviética, baseado no controle militar sobre a Europa Oriental, desmoronou em 1989, dois anos antes do fim da própria União Soviética.

A fase mais recente da competição de grandes potências, contudo, tem muito mais a ver com tecnologia do que com comércio. Em retrospecto, essa mudança começou durante a Segunda Guerra Mundial, quando os britânicos compartilharam avanços-chave (em especial sobre radares e ideias iniciais sobre armas atômicas), e o Projeto Manhattan dos americanos foi mais longe e mais depressa do que qualquer um poderia imaginar. Computadores digitais, chips semicondutores, aviões a jato, medicamentos e vacinas que salvaram vidas, além da internet, vieram todos do Ocidente (impulsionados de modo significativo pelos investimentos do governo americano).

Em outubro de 1957, a União Soviética chocou o mundo ao lançar o primeiro satélite artificial, o Sputnik. Contudo, seu sistema rígido e repressivo não conseguiu manter a criatividade o suficiente ou transformar boas ideias em produtos que as pessoas quisessem (à exceção das armas).

Agora a China quer desafiar o Ocidente pela liderança em novas tecnologias, de olho em apertar o controle social por meio de uma combinação de inteligência artificial e vigilância. Isso, e não o Brics ampliado, é a verdadeira ameaça potencial ao Ocidente.

Há hoje uma discussão bipartidária ativa em Washington, encabeçada pelo líder da maioria no Senado dos EUA, Chuck Schumer, sobre quanta IA queremos desenvolver e com que salvaguardas. Isso é saudável e provavelmente levará a resultados melhores (embora sem dúvida vão existir imperfeições em termos de proteção ao consumidor, além de preocupações constantes sobre perdas de postos de trabalho).

Em comparação, uma discussão aberta sobre as tecnologias que a China quer desenvolver e o modo como o país direciona a inovação não são temas permitidos no país asiático. Assim como era verdadeiro durante a Guerra Fria, um sistema rígido e repressivo está disputando a liderança do mundo em criação, aplicação e disseminação de conhecimento.

Será que a China vai ter sucesso onde a União Soviética fracassou? Enquanto o Ocidente continuar a fomentar inovação - e administrar de modo responsável essa inovação -, é improvável que a China vença. Nesse sentido, o Ocidente controla seu próprio destino. (Tradução de Fabrício Calado Moreira)

*Simon Johnson, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, é professor da Sloan School of Management do MIT e coautor (com Daron Acemoglu) de “Power and Progress: Our Thousand-Year Struggle Over Technology and Prosperity”. Copyright: Project Syndicate, 2023. www.project-syndicate.org

 

Um comentário:

Daniel disse...

Muito bom! A visão americana está realmente bem apresentada. Uma visão chinesa ou indiana ou russa certamente não seria idêntica. Fico pensando qual seria a visão de Bolsonaro ou do seu grande "chanceler" Ernesto Araújo, que considerava Trump como salvador da civilização ocidental e se orgulhava de nos tornar pária na política global...