sábado, 14 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Repatriação de brasileiros tem sido exemplar

O Globo

Itamaraty e FAB são impecáveis ao retirar da zona de conflito cidadãos que desejam voltar ao Brasil

A marca da Operação Voltando em Paz, coordenada pelos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, tem sido a agilidade. Até o fim da tarde de ontem, menos de uma semana depois do ataque do grupo terrorista Hamas a Israel, quatro voos do governo brasileiro já haviam resgatado 701 brasileiros de Tel Aviv. O primeiro saiu na terça-feira e levou 211 passageiros a Brasília. O segundo, com 214, chegou ao Rio na madrugada de quinta. O terceiro, com 69, aterrissou no Recife ontem e seguiu para São Paulo. O quarto, com 207, decolou de Tel Aviv no final da tarde. Dois outros voos deverão partir de Israel até domingo.

Na Faixa de Gaza, 22 brasileiros, a maioria mulheres e crianças, também querem voltar ao Brasil. Um avião presidencial, com capacidade para 40 passageiros, decolou na quinta-feira com destino a Roma, onde espera o desenrolar da situação. O plano é que os brasileiros de Gaza cheguem ao Egito por terra. O governo já contratou transporte terrestre e aguardava ontem permissão de israelenses e egípcios para que a viagem ocorresse em segurança. Enquanto esperavam, parte estava reunida na Rosary Sisters School, escola católica local alvejada por Israel em 2021. Lá, tinham colchões e alimentos. Em meio aos ataques, o governo brasileiro solicitou formalmente ao israelense que não a bombardeasse. Outros 12 brasileiros que desejam voltar moram em Khan Younis, sul da Faixa de Gaza.

Mais de 2.500 brasileiros pediram repatriação a funcionários da Embaixada do Brasil em Tel Aviv, a maior parte turistas. Acertadamente, as autoridades vêm insistindo para que quem tenha voo comercial marcado ou condições financeiras de pagar passagem não ocupe o lugar de quem realmente precisa de ajuda para retornar ao Brasil. Os passageiros prioritários são os residentes no país sem passagem aérea.

Na repatriação, o governo brasileiro foi até agora impecável. No front diplomático, o desempenho é mais problemático. No primeiro comunicado do Itamaraty sobre o ataque do Hamas, o grupo terrorista nem é citado. As notas lamentando o assassinato de brasileiros falam em “falecimento” e “morte” (palavra usada ontem, quando confirmado o assassinato de outra brasileira).

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido mais preciso. Por meio de sua conta numa rede social, se disse chocado com os “ataques terroristas”. Na quinta-feira, conversou por telefone com o presidente de Israel, Isaac Herzog, voltou a condenar o terrorismo e reafirmou solidariedade aos familiares das vítimas. Faltou apenas uma condenação explícita ao Hamas, cuja barbárie tem sido repudiada em termos duros por todas as democracias.

Como o Brasil ocupa a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU, as manifestações oficiais reverberam. Seria um erro enxergar o ataque por uma lente ideológica. Não é de hoje que setores da esquerda justificam atrocidades cometidas por terroristas e esquecem que o Hamas não representa o povo palestino. Felizmente Lula parece ciente de que não há, nem nunca houve, justificativa para a barbárie.

O governo não deve medir esforços para continuar a retirar da zona de conflito, de ambos os lados da fronteira, os brasileiros que desejarem voltar ao Brasil. Ao mesmo tempo, deve trabalhar com a comunidade internacional para evitar a morte de civis e uma escalada do conflito. Uma guerra que envolva as potências regionais seria um desastre de consequências globais.

Brasil continua despreparado para reagir a eventos climáticos extremos

O Globo

Cientistas constataram que calorão na primavera resultou do aquecimento global — e se tornará mais frequente

Embora a ciência das mudanças climáticas esteja consolidada, nem sempre é capaz de fazer previsões precisas. É certo que o planeta está aquecendo em razão da emissão de gases pela ação humana. Mas os cientistas têm dificuldades para atribuir ao aquecimento global um evento específico — como a onda de calor que atingiu Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil no início da primavera ou a seca que tem propiciado queimadas na Amazônia. Tudo o que podem é falar em probabilidades e, embora isso seja insuficiente para haver certezas, é mais que suficiente para avaliar os riscos.

Havia dúvida sobre quanto da onda de calor recente pode ser atribuído ao aquecimento global e quanto ao aquecimento das águas do Pacífico pelo fenômeno climático El Niño. Não há mais. De acordo com estudo do consórcio internacional World Weather Attribution (WWA), a maior parte do calorão — ao redor de 90% —foi responsabilidade do efeito estufa, não do El Niño. “Constatamos pelas observações um aumento de cerca de 5% na temperatura, para o qual o El Niño teria contribuído com 0,5%”, afirmou Sara Kew, do Instituto Real de Meteorologia da Holanda, coordenadora do WWA.

O consórcio estimou que um evento do tipo ocorre uma vez a cada 30 anos e deduziu que, não fosse a mudança climática produzida pelo homem, a temperatura teria sido entre 1,4 °C e 4,3 °C mais baixa. A conclusão mais inquietante é que a ação humana aumentou a probabilidade de um evento do tipo em pelo menos cem vezes. O WWA constatou também que a temperatura na região já subiu mais que o 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais — objetivo fixado pelo Acordo de Paris para até o fim deste século. Se subir 2 °C, eventos do tipo ocorrerão a cada cinco anos.

Nem tudo cai na conta do aquecimento global. A seca na Amazônia e as chuvas na Bacia do Prata estão, segundo os cientistas, ligadas ao El Niño. Claro que, do ponto de vista da população, nada muda se a enxurrada que arrastou sua casa foi causada por um ou por outro. Cabe ao poder público protegê-la.

No caso do calor, as cidades precisarão de infraestrutura para fornecer água e plantar árvores. No caso dos incêndios ou tempestades cada vez mais violentas, governos têm de trabalhar na prevenção. Estima-se que 10 milhões de brasileiros vivam em áreas de risco. “Menos de 15% dos municípios têm sistemas próprios de alerta de desastres e menos de 10% contam com Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil”, diz Victor Marchezini, pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Dos 1.580 municípios cadastrados no Serviço Geológico do Brasil-CPRM, só 729 têm Plano Municipal de Redução de Riscos.

O país tem um sistema de monitoramento sofisticado e poderia dar resposta rápida a eventos extremos, mas falha na comunicação e na coordenação. Não haverá como enfrentar o problema sem ação federal. Visitar áreas afetadas para se solidarizar com os moradores atingidos não adianta. Brasília precisa agir na prevenção. Não basta liberar verbas depois da tragédia.

PGR às avessas

Folha de S. Paulo

Lula e senadores querem travar ação criminal e desprezam ampla função do órgão

É notável o descompasso entre o que o mundo político hoje enxerga na Procuradoria-Geral da República e aquilo que os constituintes imaginaram para o órgão.

Na visão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e dos senadores, tudo parece se dar como se a única função relevante da PGR fosse a atuação na esfera penal, com a capacidade de oferecer denúncias criminais contra quem só pode ser julgado no Supremo Tribunal Federal. É esse o caso do presidente da República e dos congressistas.

A Constituição, contudo, espera muito mais desse órgão responsável por chefiar o Ministério Público Federal. Sua missão inclui zelar pelos interesses da população como um todo e fiscalizar o cumprimento das leis, além de vigiar o poder e defender o regime democrático —duas atribuições ignoradas na gestão de Augusto Aras.

Cabe à PGR, ademais, tocar processos no Tribunal Superior Eleitoral e no Superior Tribunal de Justiça, onde sua caneta permite, por exemplo, federalizar graves violações de direitos humanos.

Gama tão ampla de poderes deveria ser tratada com a máxima seriedade, mas Lula tomou outro rumo.

Mesmo sabendo quando terminaria o mandato de Aras, não se antecipou para definir a sucessão; agora que aliados lhe mostraram alguns nomes, o presidente não gostou de nenhum e julgou aceitável manter um comando interino.

Hesita não por querer conhecer as aptidões jurídicas dos candidatos, mas por estar inseguro quanto ao alinhamento político deles. Leia-se: por não saber como vão se comportar diante de eventuais investigações criminais que envolvam membros do atual governo.

Lula joga fora a chance de retomar tradição que ele próprio inaugurou ao pinçar pessoas dentro de uma lista tríplice elaborada pelos pares. Prefere se guiar pelos maus exemplos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Jair Bolsonaro (PL), que nomearam um proverbial engavetador-geral da República.

Senado, que poderia melhorar esse quadro, não o faz. Tendo o dever de aprovar a seleção do presidente, essa Casa exerce um controle mesmo antes de sabatinar o indicado —afinal, ninguém quer correr o risco de lançar alguém que será rejeitado no Congresso.

O senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) sabe disso muito bem. À frente da Comissão de Constituição e Justiça, ele tem travado a votação de nomes para outros cargos no intuito de elevar sua influência na sucessão da PGR.

Não o faz com a finalidade de aperfeiçoar o processo; assim como Lula, Alcolumbre e outros senadores só querem manter no cabresto a pessoa com o poder de denunciá-los —o que já diz muito sobre suas intenções de cumprir a lei.

Tributar múltis

Folha de S. Paulo

Acordo global para a cobrança de impostos sobre gigantes pode mitigar injustiças

Avançam as tratativas para a adoção de critérios internacionais mais justos para a tributação de multinacionais. Nas últimas décadas, uma das principais falhas de coordenação global se deu justamente nessa área, com a consequente exploração de brechas por parte das empresas e a progressiva erosão da base tributária.

Desde 2013 há alinhamento no G20 para reformar as regras de cobrança, no sentido de diminuir espaços predatórios de paraísos fiscais e obter maior justiça tributária —algo especialmente relevante para países em desenvolvimento.

A OCDE, que reúne países de renda mais alta, tem liderado as tratativas. Em 2020, foi obtido acordo inicial em torno de dois pilares. O primeiro diz respeito a regras de divisão de certos lucros de multinacionais com base no local em que são obtidos e não na jurisdição em que a empresa se situa.

No caso do comércio digital, por exemplo, a territorialidade é pouco clara, e as corporações têm maior espaço para minimizar impostos. Agora, com a divulgação dos termos que devem reger esse fundamento, pode haver alta de até US$ 32 bilhões na coleta.

O tratado abrangeria 140 países e precisa abarcar pelo menos 60% das empresas afetadas, o que implica a adesão dos EUA, sede de boa parte delas. Teria a contrapartida de proibir, doravante, a imposição unilateral de impostos sobre o comércio digital, mecanismo que tem sido cada vez mais utilizados por outros países —e que tem como alvo as gigantes americanas.

Ainda há objeções de alguns países, como Brasil, Índia e Colômbia, que expressam preocupação com o risco de perda de capacidade tributária. Os princípios, contudo, são apoiados por todos, e esses obstáculos devem ser superados.

O segundo pilar dispõe sobre um imposto global mínimo de 15%, medida necessária para coibir a concorrência predatória de nações que se aproveitam de condições fiscais privilegiadas, como a Irlanda.

Nesse caso, o interesse dos EUA é alto, porque são justamente suas empresas que têm direcionado propriedade intelectual e lucros para esses destinos. Mesmo assim, dada a importância das grandes companhias para que os dois pilares do acordo tenham abrangência suficiente, será necessária a ratificação do arranjo pelo Congresso.

Não se espera que isso ocorra antes de 2025, o que sugere que a trajetória para maior justiça tributária mundial ainda deve ser longa.

O Brasil real, com seus problemas reais

O Estado de S. Paulo

Dias atrás, o Estadão trouxe um dado que não é a rigor uma novidade, mas é sempre inquietante – e deve fazer pensar. De acordo com o Critério Brasil, da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), três quartos da população – mais exatamente, 76,2% – são de classe C e D: 28,7% classe D, 26,4% classe C2 e 21,1% classe C1. Ou seja, a grande maioria da população do País é pobre.

Entre outros pontos, esse dado mostra que o Estado tem um papel importante a cumprir. Dito de outra forma, a política não tem o direito de ser disfuncional. Não pode ficar tratando de questões imaginárias, de falsas polêmicas, de meros embates ideológicos. Há problemas reais sérios que precisam ser enfrentados.

O Brasil não é propriamente um país pobre. Tem muitas riquezas, produz muitas coisas, apresenta muitas potencialidades. Mas, mesmo não sendo pobre, tem – eis a realidade – uma população majoritariamente pobre, com várias e sérias vulnerabilidades, a começar pela própria questão alimentar e educativa das novas gerações.

Essa realidade socioeconômica do País deve levar a um profundo realismo na vida pública. Especialmente porque as pessoas que exercem o poder, seja em que esfera for, raramente pertencem às faixas mais pobres da população. É fácil, portanto, que os problemas reais que afetam a imensa maioria dos brasileiros sejam ignorados ou relegados.

Caso nítido dessa desconexão entre quem detém o poder e a realidade social é o contínuo reconhecimento pelo Judiciário de novos direitos e novas equiparações – novas regalias – às elites do funcionalismo público, em especial às carreiras jurídicas públicas. Exemplo chocante ocorreu entre 2014 e 2018, quando, num período de grave crise social e econômica no País, uma decisão liminar concedeu auxílio-moradia a todos os juízes e membros do Ministério Público.

A política deve cuidar de todos, atender todos. Mas deve, sobretudo, cuidar, atender e zelar pelos que mais necessitam. Infelizmente, não é o que ocorre muitas vezes, revelando, entre outros problemas, uma grave deficiência de representatividade. Há um regime democrático – todo o poder emana do povo –, a maioria da população é pobre, mas o poder parece servir a outros interesses, a um outro público.

Não são questões teóricas. Agora, por exemplo, o Congresso discute a reforma tributária. Todos os dias há notícias de grupos de interesse tentando alguma regalia, algum regime diferenciado, algum tratamento privilegiado. É patente a existência de um esforço para desvirtuar a reforma, fazendo com que as regras tributárias sejam indutoras de desigualdade – o que representa um desvirtuamento do próprio Estado.

A funcionalidade da política é um assunto muito sério. Não cabe ignorar os problemas reais da imensa maioria da população. Tome-se o exemplo da questão do saneamento básico: depois de uma batalha política de anos, o Congresso aprovou o marco do saneamento básico (Lei 14.026/2020), como medida para reverter uma situação absolutamente lamentável e desumana, e, no entanto, há ainda hoje gente com poder tentando impedir a implementação do novo regime, com o objetivo de defender os interesses de empresas estatais ineficientes, que não atendem minimamente às necessidades básicas da população, como água encanada e esgoto tratado.

Não basta um partido ou grupo político dizer que defende os pobres ou declarar-se progressista se, depois, sua atuação prática é em defesa de interesses corporativos ou de determinados grupos mobilizados politicamente. Fenômeno frequente no País, essa incoerência é certamente uma das causas para que o exercício do poder no regime democrático seja tão indiferente às necessidades reais da população.

A política é cuidar de quem mais precisa. Isso é democracia, compromisso com o interesse público. E esse deve ser o grande critério de avaliação da atuação do Estado, de suas políticas públicas e das reformas legislativas. Essas medidas estão efetivamente melhorando a vida das pessoas mais pobres, que são no Brasil a grande maioria?

Um Estado eficiente, nem grande nem mínimo

O Estado de S. Paulo

O momento é oportuno para a sociedade refletir sobre o Estado que deseja. Hoje, é generalizada a percepção de que o Estado falha ao prover as condições mínimas para uma vida digna

Tende a não terminar bem, isto é, a não gerar bons resultados para a sociedade, qualquer debate sobre o “tamanho ideal” do Estado que acabe poluído pela falsa dicotomia entre “Estado grande” e “Estado mínimo”. Em geral, os defensores da ideia segundo a qual o Estado é o dínamo por excelência do desenvolvimento do País – e por isso deve ter uma estrutura igualmente ambiciosa – e aqueles que advogam que ao Estado caberia cuidar apenas do mínimo necessário para que a iniciativa privada possa florescer disputam um jogo de soma zero.

Como este jornal há muito defende, o caminho mais promissor para levar o País de volta aos trilhos do desenvolvimento econômico e social passa longe desses extremos. Passa, sim, pela construção de um consenso em torno do que seja um Estado eficiente na gestão dos recursos públicos. E por eficiência, na prática, entenda-se a capacidade do Estado para atender às necessidades dos cidadãos por serviços públicos elementares para uma vida digna gerindo o Orçamento de forma racional e absolutamente transparente.

Sabe-se que o Estado é grande demais porque não perde uma oportunidade de se fazer notar, das mais diversas formas, na vida dos cidadãos e das empresas. Sabe-se também que o Estado gasta muito – 12% do Produto Interno Bruto (PIB) apenas com servidores –, o que resulta em uma das mais altas cargas tributárias do mundo. Entretanto, nem uma coisa nem outra levam os cidadãos a perceber que têm sido bem atendidos quando precisam do Estado. E a razão para isso é simples: de fato, não estão. O Estado é ineficiente na medida exata de seu gigantismo, sorvedouro de recursos públicos que é para a sua manutenção – incluindo um rol de privilégios para a nata do funcionalismo –, não para a prestação de serviços públicos com qualidade.

Desde ao menos 1930, esse modelo de desenvolvimento que dá primazia ao Estado como vetor do crescimento nacional tem se mostrado falho, como bem notou o sociólogo Bolívar Lamounier em recente artigo neste jornal (O jeito cubano de Lula, 7/10/2023). Na Presidência da República, convém lembrar, está alguém que ainda acredita firmemente nessa ideia que não só é anacrônica, como também é altamente prejudicial ao País. Só isso basta para mostrar quão difícil é a tarefa dos que se dispõem a resistir às forças políticas estatizantes que fazem do Estado refém de suas agendas particulares.

Não haveria momento mais oportuno para os diversos setores da sociedade se dedicarem à reflexão sobre a eficiência do Estado – um tema que não é novo, mas que poucas vezes foi tão urgente, dados os inauditos desafios econômicos, sociais, ambientais e geopolíticos que se põem diante do País.

Duas das mais importantes reformas estruturantes para o Brasil, a tributária e a administrativa, ora tramitam no Congresso. E uma está intimamente ligada à outra. A reforma tributária, já aprovada pela Câmara e em discussão no Senado, trouxe avanços dos mais significativos para acabar com o manicômio tributário brasileiro. A reforma administrativa, embora ainda careça de um delineamento mais fino de seu escopo, também tem potencial para avançar sobre pontos considerados intocáveis até pouco tempo atrás, como a questão da avaliação de desempenho dos servidores e, quiçá, o fim da estabilidade no serviço público para cargos que não sejam típicos de Estado.

Mas, para ser bem-sucedida, a reforma administrativa não pode se circunscrever à mera modificação de um punhado de normas na gestão de recursos humanos no serviço público. A abordagem deve ser muito mais qualificada, orientada pela própria definição do Estado que a sociedade deseja quando fala, por meio de suas organizações ou de seus representantes eleitos, em Estado eficiente. E como o Estado não é composto apenas pelo Poder Executivo, por óbvio uma boa reforma administrativa há de contemplar, também, os Poderes Legislativo e Judiciário.

Não é assim, porém, que o tema tem sido conduzido pelo governo e pelo Congresso. Mas é como deve ser, caso a sociedade queira contar adiante com um Estado enxuto e eficiente sempre que precisar.

Receita velha para montadora nova

O Estado de S. Paulo

Autoridades reeditam benefícios fiscais para chinesa BYD assumir unidade que pertencia à Ford na Bahia

O  grupo chinês BYD assumiu as operações de uma fábrica que já havia pertencido à Ford, em Camaçari (BA). No complexo industrial abandonado pela montadora norte-americana em 2021, a BYD pretende investir R$ 3 bilhões para produzir três modelos da marca, sendo dois elétricos e um híbrido, além de caminhões e ônibus, e instalar uma unidade de processamento de lítio. A pretensão é transformar a localidade no “Vale do Silício” brasileiro.

Como costuma acontecer nessas ocasiões, o evento contou com a presença de autoridades, entre elas o vice-presidente Geraldo Alckmin e o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues. A cerimônia foi marcada pela instalação de uma pedra fundamental que simboliza novos tempos para a região e para mais de 5 mil empregados diretos e indiretos. Serão mesmo? Tomara, mas não é o que parece.

Antes mesmo de começar a produção, prevista para o fim de 2024, a BYD batalhou arduamente para garantir a concessão de benefícios fiscais, sem os quais muito provavelmente o investimento jamais seria realizado. A chinesa tem muito a comemorar: aos 45 minutos do segundo tempo, deve conseguir enquadramento no programa especial que oferece incentivos para montadoras no Nordeste, cuja vigência se encerra em 2025.

Tal benesse deve ser garantida na forma de uma emenda da reforma tributária que tramita no Senado, de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA). Um dos motes da proposta da reforma é justamente dar fim à nefasta guerra fiscal entre os Estados, na qual as montadoras – e a Ford, em particular – tiveram um papel preponderante na década de 1990. Seria irônico, não fosse trágico.

O governador da Bahia, por sua vez, enviou um projeto de lei à Assembleia Legislativa para isentar o IPVA de veículos elétricos com valor de até R$ 300 mil. Poucas vezes se viu um exemplo cristalino da famosa regressividade da carga tributária. Certamente, na avaliação dele, deve haver uma boa razão para garantir que proprietários com tamanha capacidade financeira fiquem isentos do imposto, enquanto os donos de veículos mais antigos e baratos tenham de contribuir com as finanças estaduais.

É de estarrecer a facilidade com que o Estado se dispõe a abrir mão de receitas próprias. Em ambos os casos, a arrecadação é compartilhada com municípios. Teriam os prefeitos concordado com as medidas? Não faltam estudos a questionar se as isenções de fato compensam os resultados efetivos desse tipo de iniciativa na economia.

Romper este ciclo de eterno retorno é uma das condições necessárias para o País reverter um histórico de resultados fiscais pífios e crescimento econômico baixo e claudicante. Não se trata de rejeitar a chegada de investimentos ou a geração de empregos, mas de parar de cometer os mesmos erros que marcam a relação entre o Estado e a indústria automotiva desde a década de 1920.

Um primeiro e importante passo seria levantar e avaliar os custos e benefícios dessas políticas antes de anunciá-las com pompa e circunstância. Foi, aliás, o cálculo que fez a Ford ao decidir deixar o País há dois anos.

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