terça-feira, 8 de julho de 2025

Ajuste fiscal não precisa ser cruel nem abrupto - Pedro Cafardo

Valor Econômico

O congelamento do mínimo e o corte de gastos com o Bolsa Família e outros programas sociais dariam alívio imediato aos cofres da Previdência e às contas públicas, mas é cruel querer resolver o problema fiscal empurrando a conta do ajuste para idosos, deficientes e pobres

A batalha do IOF fez brotar nas redes sociais o que o presidente da Câmara, Hugo Motta, chamou de polarização social. Na definição governista, “ricos x pobres”.

Ao impor seguidas derrotas ao governo, entre elas a do IOF, a oposição, inclusive a interna, adotou a óbvia estratégia pré-eleitoral da extrema direita: ir sangrando Lula para que continue perdendo popularidade até o pleito de 2026.

Ao revidar com o “ricos x pobres”, duas palavras que políticos e analistas evitam usar, o governo escancarou sua contraestratégia: colocar a extrema direita na situação desconfortável de quem pretende tirar renda dos pobres e impedir a taxação das classes mais favorecidas da sociedade.

O revide é de alto risco político-eleitoral. Pode envenenar ainda mais a relação com o Congresso. E, embora possa angariar o apoio de superpobres, onde já tem muito, o governo arrisca perder o de outras camadas da sociedade, inclusive de eleitores da classe média, que jamais se considerariam pobres. Por isso, as duas partes parecem interessadas na conciliação proposta pelo STF.

Deixando de lado a batalha pré-eleitoral, vale avaliar pontos específicos. O aumento do IOF incidiria sobre operações financeiras como câmbio, compra com cartões internacionais e crédito para empresas. Embora argumente-se que essas taxações iriam atingir indiretamente toda a sociedade, é óbvio seu impacto direto mais importante na parte que o jornalista Elio Gaspari costuma chamar de “andar de cima”, expressão ajustada pelo ministro Fernando Haddad para “morador da cobertura”.

O revide governista tornou desconfortável para congressistas a protelação de medidas que tributem as altas rendas e desonerem as baixas, como a que isenta de IR os contribuintes que ganham até R$ 5 mil por mês. Para compensar a perda de receita, a medida taxa o pessoal da “cobertura”, cerca de 140 mil pessoas, com uma alíquota mínima de IR de 10%. Essa camada social paga de 30% a 50% em países desenvolvidos.

Entre parêntesis, vale lembrar que os dados macroeconômicos brasileiros, apesar dos juros cavalares, são muito bons: crescimento, inflação em queda, inclusive de alimentos, baixo desemprego, desigualdade caindo, renda aumentando, bolsa batendo recorde, safra também recorde, lucros de empresas em alta etc.

Todo o debate, portanto, situa-se na necessidade de ajustar as contas públicas. E esse ajuste, segundo o pensamento dominante do mercado, deveria ser feito com corte de despesas, sem poupar benefícios sociais, dos pobres. O principal visado é o salário mínimo, que nos últimos 20 anos teve aumentos reais em quase todos os anos, com uma exceção (-1,1% em 2018). Outro é o Bolsa Família, que também vem tendo ganhos reais.

É difícil contestar os resultados desses benefícios à sociedade. A desigualdade de renda mantém tendência de queda neste século, como indica o Índice de Gini. O número de pessoas que passam fome, segundo relatório da ONU, caiu de 21 milhões no início do século para 2,5 milhões hoje.

Perdoem leitores, mas é necessário chamar de cruéis as iniciativas que consideram erradas ou exageradas essas políticas e sustentam que elas são populistas ou demagógicas e estariam levando o país para o colapso fiscal.

Um grande empresário, por exemplo, sugere que a transferência de renda deve ser apenas indexada à inflação. Outro acha que as pessoas estão viciadas no Bolsa Família e não querem trabalhar com carteira assinada. Ignora que o país criou 1.051.249 empregos formais de janeiro a maio deste ano e que 71% dos contratados para novas vagas de janeiro de 2023 a setembro de 2024 são ex-beneficiários do Bolsa Família. Provavelmente o empresário está fora do mercado de trabalho por causa do baixo salário pago a seus funcionários.

Um economista sugere que o salário mínimo seja congelado, reajustado apenas com a inflação do ano anterior. Outro propõe que as aposentadorias não acompanhem o mínimo.

Atualmente, o mínimo aumenta com base na inflação (INPC) mais a variação do PIB limitada a 2,5% ao ano. As aposentadorias de um mínimo acompanham o próprio mínimo e as demais, mais altas, seguem apenas a inflação. Ao longo do tempo, portanto, todas tendem a cair para um mínimo - em 2004, o teto do INSS era 9,3 SM e hoje está em 5,3 SM. Ou seja, idosos que contribuíram no teto por 40 a 50 anos para a Previdência, já têm seus benefícios reduzidos ano após ano. Note-se que a inflação deles é sistematicamente maior que a média nacional, porque seus principais custos são alimentos, medicamentos e outros gastos com saúde, que sobem sempre acima da inflação média - os reajustes dos planos de saúde são cavalares.

O congelamento do mínimo e o corte de gastos com o Bolsa Família e outros programas sociais dariam, sem dúvida, alívio imediato aos cofres da Previdência e às contas públicas em geral. Mas é cruel querer resolver o problema fiscal empurrando a conta do ajuste para idosos, deficientes e pobres.

Há caminhos menos cruéis, como o aumento do IR dos super-ricos, cortes nos gastos tributários, aquelas reduções de impostos que somam mais de R$ 600 bilhões por ano, fim dos supersalários, choque de realidade nas emendas parlamentares, IOF maior para algumas operações etc.

Com criatividade e cuidado, será possível fazer um ajuste fiscal gradual que corte despesas e aumente receitas na direção da justiça tributária e sem crueldades abruptas.

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