Valor Econômico
O congelamento do mínimo e o corte de gastos com o Bolsa Família e outros programas sociais dariam alívio imediato aos cofres da Previdência e às contas públicas, mas é cruel querer resolver o problema fiscal empurrando a conta do ajuste para idosos, deficientes e pobres
A batalha do IOF fez brotar nas redes sociais
o que o presidente da Câmara, Hugo Motta, chamou de polarização social. Na
definição governista, “ricos x pobres”.
Ao impor seguidas derrotas ao governo, entre
elas a do IOF, a oposição, inclusive a interna, adotou a óbvia estratégia
pré-eleitoral da extrema direita: ir sangrando Lula para que continue perdendo
popularidade até o pleito de 2026.
Ao revidar com o “ricos x pobres”, duas palavras que políticos e analistas evitam usar, o governo escancarou sua contraestratégia: colocar a extrema direita na situação desconfortável de quem pretende tirar renda dos pobres e impedir a taxação das classes mais favorecidas da sociedade.
O revide é de alto risco político-eleitoral.
Pode envenenar ainda mais a relação com o Congresso. E, embora possa angariar o
apoio de superpobres, onde já tem muito, o governo arrisca perder o de outras
camadas da sociedade, inclusive de eleitores da classe média, que jamais se
considerariam pobres. Por isso, as duas partes parecem interessadas na
conciliação proposta pelo STF.
Deixando de lado a batalha pré-eleitoral,
vale avaliar pontos específicos. O aumento do IOF incidiria sobre operações
financeiras como câmbio, compra com cartões internacionais e crédito para
empresas. Embora argumente-se que essas taxações iriam atingir indiretamente
toda a sociedade, é óbvio seu impacto direto mais importante na parte que o
jornalista Elio Gaspari costuma chamar de “andar de cima”, expressão ajustada
pelo ministro Fernando Haddad para “morador da cobertura”.
O revide governista tornou desconfortável
para congressistas a protelação de medidas que tributem as altas rendas e
desonerem as baixas, como a que isenta de IR os contribuintes que ganham até R$
5 mil por mês. Para compensar a perda de receita, a medida taxa o pessoal da
“cobertura”, cerca de 140 mil pessoas, com uma alíquota mínima de IR de 10%.
Essa camada social paga de 30% a 50% em países desenvolvidos.
Entre parêntesis, vale lembrar que os dados
macroeconômicos brasileiros, apesar dos juros cavalares, são muito bons:
crescimento, inflação em queda, inclusive de alimentos, baixo desemprego,
desigualdade caindo, renda aumentando, bolsa batendo recorde, safra também
recorde, lucros de empresas em alta etc.
Todo o debate, portanto, situa-se na
necessidade de ajustar as contas públicas. E esse ajuste, segundo o pensamento
dominante do mercado, deveria ser feito com corte de despesas, sem poupar
benefícios sociais, dos pobres. O principal visado é o salário mínimo, que nos
últimos 20 anos teve aumentos reais em quase todos os anos, com uma exceção
(-1,1% em 2018). Outro é o Bolsa Família, que também vem tendo ganhos reais.
É difícil contestar os resultados desses
benefícios à sociedade. A desigualdade de renda mantém tendência de queda neste
século, como indica o Índice de Gini. O número de pessoas que passam fome,
segundo relatório da ONU, caiu de 21 milhões no início do século para 2,5
milhões hoje.
Perdoem leitores, mas é necessário chamar de
cruéis as iniciativas que consideram erradas ou exageradas essas políticas e
sustentam que elas são populistas ou demagógicas e estariam levando o país para
o colapso fiscal.
Um grande empresário, por exemplo, sugere que
a transferência de renda deve ser apenas indexada à inflação. Outro acha que as
pessoas estão viciadas no Bolsa Família e não querem trabalhar com carteira
assinada. Ignora que o país criou 1.051.249 empregos formais de janeiro a maio
deste ano e que 71% dos contratados para novas vagas de janeiro de 2023 a
setembro de 2024 são ex-beneficiários do Bolsa Família. Provavelmente o
empresário está fora do mercado de trabalho por causa do baixo salário pago a
seus funcionários.
Um economista sugere que o salário mínimo
seja congelado, reajustado apenas com a inflação do ano anterior. Outro propõe
que as aposentadorias não acompanhem o mínimo.
Atualmente, o mínimo aumenta com base na
inflação (INPC) mais a variação do PIB limitada a 2,5% ao ano. As
aposentadorias de um mínimo acompanham o próprio mínimo e as demais, mais
altas, seguem apenas a inflação. Ao longo do tempo, portanto, todas tendem a
cair para um mínimo - em 2004, o teto do INSS era 9,3 SM e hoje está em 5,3 SM.
Ou seja, idosos que contribuíram no teto por 40 a 50 anos para a Previdência,
já têm seus benefícios reduzidos ano após ano. Note-se que a inflação deles é
sistematicamente maior que a média nacional, porque seus principais custos são
alimentos, medicamentos e outros gastos com saúde, que sobem sempre acima da
inflação média - os reajustes dos planos de saúde são cavalares.
O congelamento do mínimo e o corte de gastos
com o Bolsa Família e outros programas sociais dariam, sem dúvida, alívio
imediato aos cofres da Previdência e às contas públicas em geral. Mas é cruel
querer resolver o problema fiscal empurrando a conta do ajuste para idosos,
deficientes e pobres.
Há caminhos menos cruéis, como o aumento do
IR dos super-ricos, cortes nos gastos tributários, aquelas reduções de impostos
que somam mais de R$ 600 bilhões por ano, fim dos supersalários, choque de
realidade nas emendas parlamentares, IOF maior para algumas operações etc.
Com criatividade e cuidado, será possível
fazer um ajuste fiscal gradual que corte despesas e aumente receitas na direção
da justiça tributária e sem crueldades abruptas.
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