Raphael Di Cunto e Marcelo Ribeiro / Valor Econômico
Em 2023, de cada R$ 10 destinados a esse instrumento, apenas R$ 1 foi usado em projetos de infraestrutura e investimentos de vulto
Criadas para viabilizar grandes projetos de
infraestrutura e investimentos de vulto nos Estados, as emendas de bancadas
estaduais ao Orçamento foram desvirtuadas e se tornaram mais uma forma de
deputados e senadores ampliarem a destinação de verbas para aliados,
especialmente após o pagamento ter virado obrigatório em 2019. Ano passado, de
cada R$ 10 alocados por esse mecanismo, menos de R$ 1 visou grandes obras que
promovessem mudanças estruturantes nessas regiões, segundo estudo da
Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conorf) da própria Câmara.
Foram apenas R$ 692 milhões para obras estruturantes, enquanto R$ 2,9 bilhões acabaram destinados para investimentos mais fragmentados - e passíveis de maior direcionamento político para aliados de cada deputado ou senador- e R$ 4 bilhões para custeio em 2023 - rubrica que também costuma ser usada para esse varejo político. E, pior, sem que o real responsável pela indicação seja divulgado, já que o autor nos sites de transparência é a bancada do Estado por se tratar de uma emenda “coletiva”.
Outro fato a comprovar a fragmentação e uso
político dessas emendas é a quantidade de municípios beneficiados anualmente.
Em 2022, por exemplo, quase metade das cidades do país recebeu verba deste tipo
de emenda - foram 2.607 municípios favorecidos dos 5.570 do Brasil. A avaliação
e que essas tendências se mantiveram em 2024
A prática entrou na mira do Supremo Tribunal
Federal (STF) junto com a falta de transparência das demais emendas
parlamentares ao Orçamento e seguidas operações policiais sobre desvios de
dinheiro e corrupção. A execução desses recursos está paralisada por decisão do
ministro Flávio Dino até que novos procedimentos sejam adotados.
O modelo das emendas parlamentares ao
Orçamento, estabelecido há 30 anos, tem três modalidades com função
complementar: as individuais, para atendimento de demandas locais; as de
comissão, para prioridades nacionais dentro das políticas públicas do governo;
e as de bancada estadual, para obras estruturantes de interesse regional.
“As emendas de bancada estadual
experimentaram grande prestígio, dada sua relevância na definição de projetos e
empreendimentos estruturantes em cada Estado, especialmente no período de 1996
a 2000. Eram objeto de intenso debate durante a fase de apreciação do projeto
de lei orçamentária, com a presença constante de governadores e secretários de
Estado na sede do Congresso Nacional”, apontam os consultores da Conorf Eugênio
Greggianin, Dayson Almeida, Mário Gurgel, Tiago Almeida, os autores do estudo
elaborado a pedido da deputada Adriana Ventura (Novo-SP).
O uso começou a se tornar mais genérico já
nos anos 2000, para permitir o partilhamento dos recursos entre os
parlamentares, o que fez com que o Congresso aprovasse resolução que
estabelecia critérios e exigências para que os recursos fossem direcionados a
obras maiores. “Mesmo assim, boa parte das emendas de bancada passou a
contemplar ações que podem ser desdobradas em inúmeras indicações de
beneficiários, configurando-se, materialmente, como uma forma de ampliação das
cotas individuais”, informa o estudo.
Parte dessas vedações foi transposta agora
para um projeto de lei complementar aprovado na Câmara dos Deputados na
terça-feira e que depende de avaliação do Senado Federal para atender à decisão
do STF por mais transparência. O texto deixa clara, já em seu início, a
proibição explícita desta prática. “É vedada a individualização de emenda ou
programação para atender a demanda ou a indicação de cada membro da bancada”,
diz o projeto de lei.
Mas, logo em seguida, abre brechas para a
chamada “rachadinha” dos recursos, como é conhecido o rateio entre os
parlamentares - o termo não tem relação com o crime de desvio de dinheiro de
salários de funcionários também conhecido por esse nome. E autoriza que cada
emenda seja “divisível” em até dez ações menores, desde que nenhuma ultrapasse
menos de 10% do valor total da rubrica.
No caso da saúde, nem esse piso existe e a
fragmentação pode ser geral. O valor chegará a R$ 528 milhões por Estado em
2025 - e sem divulgar quem é o deputado ou senador que decidiu por aquele uso
específico da verba.
Outra análise elaborada por solicitação da
deputada Adriana Ventura e publicada pela Conorf na segunda-feira, véspera da
votação, já apontava o problema. Segundo o documento, a proposta de lei define
“quaisquer projetos e ações” que pertençam a determinada política pública, como
saúde e segurança, como “estruturantes”. “A qualidade de ‘estruturante’ foi
empregada de uma forma que diverge do uso corrente, [...] que são aquelas
caracterizadas como mais relevantes e de maior vulto, possuindo impacto transformador]”,
alertam. O projeto aprovado lista 20 áreas como “prioritárias”, como turismo e
direitos humanos, e ainda permite que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)
de cada ano amplie esse rol de setores.
Os consultores também avisam que a redução no
número de emendas por bancada estadual, de até 23 por ano para 11, não
significa vedação à rachadinha. “Haverá a tendência de alocação em programações
genéricas na LOA [Lei Orçamentária Anual], com objeto amplo e impreciso, o que
reduz o quesito da transparência. Com programações genéricas na LOA, aumenta a
chance de os recursos serem pulverizados na execução”, advertem.
Especialista em orçamento público, Hélio
Tollini diz que o projeto listou duas dezenas de áreas que serão “prioridade” -
o que na prática torna quase tudo “prioridade” - e deixou de estabelecer o
conceito, mesmo que genérico, sobre o que é considerado uma obra estruturante.
No lugar, remeteu a definição para a LDO, que é modificada anualmente. “Se
fosse uma coisa séria, teria algum nível de detalhamento desse conceito. Mas
não, jogaram tudo para a LDO”, critica.
Para ele, um ponto positivo é a redução no
número de emendas por bancada, mas mesmo isso foi desvirtuado. O acordo com o
Supremo previa apenas quatro emendas por Estado e a Câmara elevou a 11. “Será
que esse número é só coincidência com o fato de a maioria das bancadas ter oito
deputados e três senadores? E aí vem falar que não tem rachadinha?”, questiona.
Tollini destaca também que os parlamentares
criaram um piso que permitirá dividir a emenda de bancada em até dez obras ou
ações menores, como compra de equipamentos. “Nunca houve isso”, pontua.
“Tentaram dar um verniz de que haveria restrição e depois liberaram geral. É
mais uma tentativa de enganar o Supremo. Infelizmente esta é a realidade”,
opina.
Diretora de programas da Transparência
Brasil, Marina Atoji cita essa regra de divisão das emendas como comprovação de
que o projeto não evitará a rachadinha. “Não vai. Nada impede que um ente
federativo compre equipamentos e os doe ou repasse a outros. Por exemplo, um
Estado compra tratores e distribui para vários municípios.”
Segundo ela, isso dificulta ainda mais a
fiscalização e transparência sobre os reais beneficiados do dinheiro. “Já
acontece hoje no caso de várias emendas de execução direta, como algumas que
vão para a Codevasf [Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e
do Parnaíba] para que o órgão compre veículos e tratores e repasse aos
municípios. O rastreamento dessa execução é péssimo. Só dá para conectar a
emenda com a despesa da Codevasf e a consequente doação do equipamento ‘na
unha’, passando por umas três fontes de informação diferentes”, diz.
O Valor procurou o deputado Elmar Nascimento (União-BA), que foi relator do projeto, para que comentasse sobre as críticas ao texto, mas não teve retorno até o fechamento desta edição. A Codevasf não quis comentar.
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