O Estado de S. Paulo
Após anos de inércia do Congresso, o STF decidiu enfrentar a questão da constitucionalidade ou não do disposto no artigo 19 do Marco Civil da Internet
Tudo começou em Piracicaba, no ano de 2018,
quando a moradora Lourdes Laranjeira ajuizou contra o Facebook uma Ação de
Obrigação de Fazer acumulada com pedido de indenização, por não se haver
suprimido perfil falso criado em seu nome, apesar de extrajudicial notificação.
O Facebook, em resposta, argumentou que, nos termos do artigo 19 do Marco Civil
da Internet (MCI), Lei n.º 12.965/18, aguardou ordem judicial específica para
retirada da página.
Com efeito, o artigo 19 do Marco Civil estabelece a responsabilidade civil das plataformas, com relação a conteúdos de terceiros, apenas na hipótese de descumprimento de ordem judicial de remoção. É exatamente este o ponto: é constitucional limitar-se à obrigação de exclusão de matéria nociva à sociedade ou a alguém apenas por ordem judicial ou, pelo contrário, bastaria notificação extrajudicial?
Em segundo grau, o Colégio Recursal de
Piracicaba bem decidiu que condicionar a retirada do perfil falso à ordem
judicial seria fragilizar a proteção da pessoa humana, obrigando o lesado a
ingressar em juízo para ver atendida sua demanda, quando “seguramente poderia
ser levada a cabo pelo próprio provedor”.
A esta decisão foi interposto Recurso
Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF), que reputou a questão
constitucional em debate relevante, qualificando-a como de Repercussão Geral.
Esta matéria foi objeto do Projeto de Lei n.º
2630, aprovado em meados de 2020 pelo Senado Federal, que, após 13 audiências
públicas na Câmara dos Deputados, permanece, contudo, à espera de ser votado.
Disciplina legislativa sobre os deveres dos
provedores, em face de matéria de terceiros, foi bem tratada pelo Parlamento
Europeu ao aprovar o Regulamento 2022/2065, DSA ( Digital Services Act),
estatuindo, com relação a informações em desconformidade com o direito da União
ou de seus Estadosmembro, deveres de cuidado por parte das grandes plataformas,
que devem moderar conteúdos por meio de código de conduta e tomada de medidas
que os limitem, de forma urgente.
Sem perspectiva de elaboração legislativa,
após anos de inércia do Congresso Nacional, o STF decidiu enfrentar a questão
da constitucionalidade ou não do disposto no artigo 19 do acima mencionado,
solicitando que o Legislativo venha logo a disciplinar a matéria.
A força alcançada pelas redes sociais,
especialmente por meio dos grandes provedores, como meios de desinformação e de
discurso do ódio, justifica que a Corte Suprema, em defesa do Estado de Direito
e dos direitos da personalidade, normatize a matéria com cuidadosa ponderação.
Assim, ao tomar conhecimento de matéria que
configure crimes graves, deve o provedor, de imediato, indisponibilizar seu
conteúdo.
Dessa maneira, o provedor de aplicações de
internet será responsável quando não promover a indisponibilização imediata de
conteúdos que configurem práticas de crimes graves como: atos antidemocráticos;
terrorismo; instigação ou auxílio a suicídio; incitação à discriminação em
razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade, ódio ou
aversão às mulheres; crimes sexuais contra pessoas vulneráveis; e pornografia
infantil.
Cumpre, então, em face de conteúdos que
propaguem tais delitos ou que configurem discriminação, o dever de atuar de
forma responsável e cautelosa, sendo bastante para a proteção eficiente de
valores fundamentais a notificação extrajudicial. Todavia, nas hipóteses de
crime contra a honra, a indisponibilização dependerá de ordem judicial.
Ademais, segundo a decisão, para garantia dos
usuários e dos próprios provedores, propõe-se que estes tenham código de
conduta fixando regras de autorregulação, com especificação do devido processo
relativo às notificações extrajudiciais. De outra parte, visando à eficácia do
sistema de comunicação entre os usuários e a empresa, devem ser colocados à
disposição canais eletrônicos de atendimento plenamente acessíveis.
Como diz o ministro Luís Roberto Barroso, o
artigo 19 do MCI é só parcialmente inconstitucional, pois a exigência de ordem
judicial para remoção de conteúdo continua a valer, mas é insuficiente. Cumpre,
então, ao STF indicar a moldura constitucional mínima que deverá ser observada
futuramente pelo legislador para a proteção suficiente da dignidade humana.
Quando a proteção é incipiente, como destaca o ministro Luiz Fux, o Estado “tem
o dever de proteger suficientemente os direitos fundamentais contra violações”.
No caso dessa violação ocorrer por meio da
internet, como diz o ministro Fux, se a proteção fornecida é insuficiente, cabe
ao Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, declarar a omissão e
ordenar a medida adequada para que os direitos fundamentais potencialmente
vulnerados sejam protegidos.
Desse modo, em casos de grave abuso da
liberdade de expressão, supre-se a inconstitucionalidade da proteção
insuficiente com soluções em boa parte corretas, sendo a principal erronia não
diferenciar o tratamento dos provedores em vista de seu tamanho.
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