sábado, 5 de julho de 2025

Por que devemos continuar falando mal do Congresso Nacional - Paulo Baía

Falar mal do Congresso Nacional não é apenas um direito conquistado com suor histórico e cicatrizes democráticas. É, sobretudo, uma necessidade ética e civilizatória. Não se trata de crítica gratuita, ressentida ou panfletária. Trata-se de uma prática crítica que emerge do espanto contínuo diante de um poder que deixou de cumprir sua função representativa e passou a se comportar como se fosse senhor absoluto da República. Um poder que se ergue com arrogância e se desloca acima da Constituição, agindo como se os freios e contrapesos que organizam o Estado Democrático de Direito fossem adereços descartáveis da formalidade jurídica. É preciso falar mal do Congresso enquanto ele persistir na lógica de se fazer superior aos outros poderes, arrogando-se o lugar de poder supremo da nação.

O que vivemos, na atualidade, é a instauração de um parlamentarismo informal, à margem da Constituição Federal. Um parlamentarismo de fato, não de direito, instaurado por práticas que atropelam a soberania popular expressa em dois plebiscitos nacionais que reafirmaram o presidencialismo como regime escolhido pelo povo brasileiro. O que se vê hoje é a tentativa obstinada de forçar a implantação de um regime político sem a devida consulta democrática, um sequestro da vontade coletiva promovido por arranjos de poder, barganhas internas e uma cultura legislativa que tornou o Congresso refém de si mesmo.

É uma cultura antiga, mas hoje profundamente exacerbada: a cultura do patrimonialismo. Aquela forma de governar e legislar em que o público e o privado não se distinguem, onde os interesses do Estado se confundem com os interesses familiares, pessoais, corporativos e eleitorais. No patrimonialismo, o mandato legislativo é tratado como patrimônio individual, como extensão do poder privado de quem o exerce. As comissões, os gabinetes, os cargos, as emendas, os ministérios negociados, tudo se transforma em ativo de uma economia política de favores e vantagens, onde o cidadão comum desaparece como sujeito de direitos e ressurge apenas como objeto de manipulação eleitoral.

Esse patrimonialismo renascido no Congresso atual não é sutil nem discreto. Ele se exibe com orgulho, como se fosse virtude. Ostenta sua força na construção de um Estado paralelo de interesses fragmentários. É a marca visível de um Parlamento que se transformou num arquipélago de egos, isolado das necessidades reais da população, mas profundamente comprometido com a perpetuação dos seus próprios privilégios. Cada parlamentar age como se fosse senhor de um feudo. E cada feudo tem seus recursos, suas emendas, seus currais, seus pactos, suas fidelidades e suas chantagens.

Enquanto isso, as perguntas fundamentais seguem sem resposta. Os lobbies de minorias endinheiradas já não definem mais as pautas e o cotidiano das duas Casas legislativas? Onde estão as vozes da maioria? Onde estão os interesses públicos que deveriam guiar os votos, os relatórios, os projetos de lei? A captura das pautas legislativas por grandes conglomerados econômicos é a regra tácita da atividade parlamentar. E nada, absolutamente nada nesse processo, é submetido ao crivo transparente da deliberação popular. As decisões são tomadas nos bastidores, nos jantares, nos conluios entre setores do poder e agentes privados que operam como legisladores ocultos.

As emendas parlamentares já possuem nomes, identidades, origem, destino e caminhos visíveis e controlados? Ou seguem sendo moedas de troca, ferramentas de manutenção de poder e instrumentos de opacidade institucional? O que se vê é uma engenharia política de apropriação do erário, travestida de técnica orçamentária. Recursos públicos distribuídos não de acordo com prioridades nacionais, mas conforme alianças circunstanciais. Uma espécie de mercado paralelo da governabilidade, onde quem mais cede, mais recebe. O poder do Congresso transformado em poder de saque.

E a maioria da população? Os idosos, os pobres, os periféricos, os trabalhadores precarizados, as mulheres, as crianças, a juventude marginalizada pelas engrenagens do Estado? Estão sendo amparados por políticas públicas estruturantes ou seguem à deriva num país onde a desigualdade é norma? O Congresso, ao se fechar em sua bolha de privilégios, relega essa maioria à invisibilidade. Os projetos de inclusão são triturados pela máquina legislativa que prioriza benefícios concentrados em pequenos grupos influentes. A exclusão social, nesse contexto, não é acidente. É método.

Os lobbies dos planos de saúde continuam a ditar as regras do jogo. E os idosos são suas maiores vítimas. Após uma vida inteira de contribuição, milhares de brasileiros idosos são expulsos dos sistemas privados de saúde por força de mensalidades que sobem vertiginosamente com a idade. Não há critério de assistência, justiça ou solidariedade. Apenas um mecanismo cruel de expulsão silenciosa. Os reajustes são pensados não para cuidar, mas para eliminar os mais frágeis da cobertura em nome do lucro. O Congresso, em vez de enfrentar esse modelo predador, o reforça. Mantém a legislação submissa aos interesses das operadoras, nega a regulação efetiva e bloqueia qualquer tentativa de proteção aos que mais necessitam de cuidado no final da vida.

O mais grave, porém, é o processo de esgarçamento das relações institucionais entre os poderes. O Congresso se desloca do seu lugar constitucional e passa a invadir as competências do Executivo, além de confrontar o Judiciário. Interfere diretamente na formulação de políticas públicas, manipula a execução orçamentária, questiona decisões judiciais, ameaça direitos adquiridos e legisla para si mesmo. A harmonia entre os poderes foi substituída pela tensão constante. A República foi transformada num palco de disputas mesquinhas, onde o interesse nacional é apenas pano de fundo para a encenação de um poder que não reconhece limites.

Esse comportamento legislativo é sustentado por uma lógica individualista, particularista e profundamente autocrática. A maioria dos congressistas legisla para si, por si e em nome de seus próprios projetos de poder. Leis são formuladas como estratégias pessoais. Decretos legislativos emergem como gestos de força. O Parlamento abandonou a ideia de ser mediador de interesses coletivos. Tornou-se produtor de normas que protegem suas próprias estruturas, asseguram seus próprios fundos e blindam seus próprios integrantes. E tudo isso se faz com naturalidade, como se fosse normal. Como se a República tivesse sido construída para servir àqueles que a governam e não àqueles que dela deveriam usufruir.

Falar mal do Congresso Nacional, nesse cenário, é mais do que uma prática cidadã. É um gesto de resistência democrática. É o grito que recusa a domesticação do olhar. É o alerta que se antecipa à catástrofe. É o impulso ético de quem sabe que, sem crítica, não há mudança. Sem denúncia, não há reforma. Sem palavra, não há ação.

Não se trata de negar a importância do Parlamento enquanto instituição, mas de afirmar que sua importância é incompatível com o desvio que se naturalizou. Um Parlamento forte não é aquele que tudo pode, mas aquele que sabe os limites da sua força. Um Congresso legítimo não é o que se impõe aos demais poderes, mas o que se coloca a serviço da Constituição e do povo. Um Legislativo democrático não é o que se sustenta em pactos secretos e emendas silenciosas, mas o que se expõe ao debate, à fiscalização e à justiça.

O Brasil escolheu o presidencialismo duas vezes, em plebiscitos livres e soberanos. Se houver um terceiro, é certo que o reafirmará. Porque é esse o regime que melhor reflete nossa tradição institucional, nossa memória histórica e nossa sensibilidade política. O parlamentarismo informal que hoje se impõe por vias subterrâneas não tem legitimidade popular. Não é resultado de vontade coletiva, mas produto de arranjos patrimoniais e interesses velados.

Por isso, enquanto esse Congresso insistir em se colocar acima da República, enquanto transformar o bem público em extensão de seus projetos privados, enquanto legislar com arrogância e agir com impunidade, continuaremos a falar mal. E falaremos com firmeza, com clareza, com beleza e com convicção. Porque a crítica bem feita também é um ato de amor à democracia. Porque há beleza na palavra que se recusa a ser cúmplice. Porque há lucidez no olhar que insiste em ver, ainda que doa. E porque há esperança, sempre, de que a denúncia possa despertar aquilo que foi adormecido: a possibilidade de um Congresso à altura do povo que deveria representar.

* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

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