CartaCapital
A ação do Estado tem sido contestada pelo
intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do orçamento
equilibrado
A tendência marcante do nosso tempo é a
crescente submissão da política aos ditames dos mercados financeiros. Não se
trata do poder dos operadores, aqueles que se empenham na busca do melhor
resultado. Em suas opiniões econômicas, esses funcionários da finança exprimem
os consensos impessoais que os submetem aos mandamentos da sociedade de
massa. Não são agentes racionais, mas escravos das concepções que os
dominam.
Em delírio subpositivista, um economista do mainstream sugeriu que as narrativas (ideologias?) não podem desmentir os fatos, como se os “fatos” da vida social não fossem inseparáveis das narrativas sobre eles. Desgraçadamente para a matilha de cães raivosos que emitem latidos na economia, os humanos formulam narrativas para configurar a “realidade”. Escravos da linguagem, os bípedes falantes estão sempre diante de uma disputa de narrativas, significados, até quando escolhem instrumentos de comprovação empírica dos fatos que pretendem narrar.
Os consensos dos mercados deploram o peso
excessivo do Estado munificente e investem contra as tentativas de disciplinar
as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. A ação do
Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, tem sido contestada pelo
intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do orçamento
equilibrado. As massas enriquecidas contestam qualquer interferência no
processo de diferenciação da riqueza e da renda.
A visão coletiva que subordina a decantada
racionalidade dos servos das finanças afirma e reafirma a irracionalidade das
transferências fiscais e previdenciárias, ao mesmo tempo que ordena restrições
à capacidade impositiva e de endividamento do setor público. Isso porque é
imperioso tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos
mais abonados.
A ação do Estado é vista como
contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos
desmobilizados e desprotegidos. As duas percepções convergem na direção da
“deslegitimação” do poder administrativo e na desvalorização da política. A
resposta esperançosa às incertezas do futuro depende da capacidade de
mobilização democrática e radical dos deserdados, os perdedores na liça da
concorrência. Desgraçadamente, os espaços de informação e de formação da
consciência política e coletiva são ocupados por aparatos comprometidos com a
força dos mais fortes e controlados pela hegemonia das banalidades.
Um exemplo de procedimentos duvidosos está na
ideia de superávit fiscal estrutural que trata de eliminar os efeitos do ciclo
econômico nas receitas do governo. Nesse procedimento estão
embutidas ideias peregrinas. Nas catacumbas do pensamento mercadista
esconde-se o conceito de equilíbrio. Esse conceito dominante na teoria
econômica obscurece a compreensão do capitalismo como economia
monetário-financeira em permanente movimento.
Por rádio, televisão e jornal a população é
“informada” que precisa se sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais e
menos direitos e benefícios trabalhistas, ou encarar a destruição da economia,
tudo em nome da ciência econômica. Diante dessa configuração, a esfera
pública e democrática sucumbe descaradamente à degradação dos Parlamentos. No
Brasil de 2025, o Legislativo está contaminado pela peste dos interesses
abrigados nas emendas parlamentares, para não falar das vergonhas do orçamento
secreto. Esses processos visíveis e simultâneos de crescente
putrefação do “público” e de celebração do “privado” decorrem da sociabilidade
peculiar imposta pelo movimento “invisível” da mão que guia o curso dos
mercados.
Para o cidadão afetado, parece inteiramente
fantástica a ideia de controlar as causas desses golpes do destino. As
erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões das Bolsas de Valores ou as
misteriosas evoluções dos preços dos ativos e das moedas são capazes de
destruir suas condições de vida. Mas o consenso dominante trata de explicar que
se não for assim sua vida pode piorar ainda mais.
A formação desse consenso é, em si, um método
eficaz de bloquear o imaginário social, comprovação dolorosa das agruras que
martirizam as criaturas da história humana. As forças impessoais adquirem
dinâmicas próprias e passam a constranger a liberdade de homens e mulheres.
A boa sociedade deve tornar livres os seus
integrantes, não apenas de um ponto de vista negativo, no sentido de não serem
coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade, mas positivamente
livres, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria liberdade. Isto
significa, primordialmente, o poder de influenciar as condições da própria
existência, dar um significado para o bem comum e fazer as instituições sociais
funcionarem adequadamente. •
Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.
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