Fernando Filgueiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Não é novo, no Brasil, a questão da politização do Judiciário, e nem, necessariamente, esse papel é negativo
Tem sido uma marca do Judiciário brasileiro, nos últimos tempos, a enunciação de sentenças atreladas à necessidade clara de se fazer justiça. Não apenas na esfera da política, em que os juízes procuram corrigir as históricas delinquências do homem público brasileiro, mas nas esferas penal, empresarial ou até mesmo cível. O argumento da justiça entrou no léxico do Judiciário brasileiro de maneira muito forte, em contraste com nossa tradição positivista e legalista, que sempre julgou as questões políticas na letra fria da lei.
A princípio, não há nenhum problema em o Judiciário assumir um discurso marcado pela ideia de justiça, em especial pela ideia de justiça social, tendo em vista o fato de que o Brasil é um país marcado por desigualdades estruturais que organizam nossa sociedade. De certa maneira, isso representa um enorme avanço, uma vez que um Judiciário passivo e atrelado apenas aos ritos processuais e à letra fria da lei pode ser instrumento da legitimação das desigualdades, sendo, portanto, pouco eficiente em seus meios.
Esse avanço veio com a Constituição de 1988, que atribuiu princípios gerais que determinam os valores básicos de nosso mundo público. Princípios estes que estão enunciados de forma clara em nossos direitos fundamentais e têm o condão de servir como um teste moral para nossa sociedade, num sentido de democratização da esfera pública, tais como os princípios de liberdade, igualdade, publicidade e outros.
Dada nossa formação histórica patriarcal, o Direito, agenciado pelo Judiciário, contribuiu de maneira ímpar para a formação de nosso mundo público, no sentido de se contrapor ao privatismo que sempre foi nossa marca histórica. O mundo público brasileiro, de certa forma, ganhou plasticidade e um caráter orgânico não pela via da política representativa em si, que sempre esteve ligada ao mundo privado e aos interesses paroquiais, mas pelo Direito e seus procedimentos. Nesse sentido, o Judiciário e o mundo corporativo do Direito, por meio da OAB, sempre tiveram um papel central em nossa vida pública, sendo esse papel, portanto, político.
Dessa forma, não é novo no Brasil o debate sobre a politização do Judiciário, e nem necessariamente é negativo esse papel político. O Judiciário tem, sim, um papel político nas ordens democráticas, uma vez que ele tenha um papel na vida pública e não apenas a finalidade de adjudicar conflitos na esfera privada. Existe uma razão pública que move o Judiciário e estabelece seus fins, já que, na vida pública, cabe a ele não permitir que uma maioria ou uma minoria, na ordem democrática, utilize dos preceitos constitucionais para favorecer interesses privados ou de eventuais facções. Cabe ao Judiciário zelar pela Constituição, tendo ele, por conseguinte, um papel de protagonista na vida pública que é típico de qualquer ordem democrática.
No que tange à ideia de justiça, ela é um claro fim normativo que está expresso em nossa Constituição. É um fim normativo que pretende estabelecer uma capilaridade de nossa vida pública, determinando o horizonte para o qual o Estado e suas políticas públicas devem seguir. A justiça é o horizonte para o qual nossa democratização deve caminhar, sendo o Judiciário, junto com os demais poderes da República, o porta-voz desses valores que estão enunciados na Constituição. Por conseguinte, esses valores caminham no sentido de construção de uma sociedade democrática, tendo em vista uma concepção de cidadania aberta ao público. Em direção a uma sociedade democrática, que está no horizonte normativo da Constituição de 1988, cabe a afirmação de que a justiça, como princípio geral, deve ser a razão que organiza essa sociedade.
A justiça não é, portanto, a razão do Judiciário, mas a razão do próprio cidadão, que não aceita qualquer tipo de arbitrariedade existente em nosso mundo público. Contudo, para que essa justiça seja realizada, é fundamental a constitucionalização de procedimentos e garantias que impeçam a instrumentalização dos ideais de justiça e da própria Constituição. A justiça, dessa forma, é um fim e não um meio para a resolução de problemas do mundo público. Pela realização da justiça, muitas democracias já estiveram em situações difíceis, como, por exemplo, em diferentes situações de guerras civis e revoluções. As revoluções comunistas foram realizadas com o claro fim de realizar justiça social, mas produziram formas de totalitarismo por não se aterem aos procedimentos democráticos.
Quando o Judiciário, no Brasil, assume em seu discurso a necessidade de produzir justiça, a toma como um meio para a solução de nossos problemas históricos, como a corrupção, a violência e as desigualdades, sem se ater a procedimentos democráticos fundamentais, como a presunção de inocência, por exemplo. Quando toma a justiça como meio, o Judiciário necessita afirmar seu poder, usurpando funções dos outros poderes republicanos. Quando toma a justiça como meio, o Judiciário não produz sentenças melhores, mas corre o risco de se corromper em poder arbitrário, mesmo que queira tomar a justiça como fim normativo.
O ideal de justiça não é, dessa forma, a razão dos juízes, mas a razão do público, a qual os juízes devem representar. A justiça não é um meio para a solução de problemas, mas um fim para o qual essa solução de problemas deve caminhar. A justiça, em uma democracia, não deve estar no Judiciário, mas na sociedade, que a toma como horizonte normativo para a construção de uma sociedade democrática. O perigo do discurso por maior justiça, tão presente no Judiciário brasileiro, é sua instrumentalização, fazendo com que ela sirva a qualquer propósito moral ou político. Não precisamos de um Judiciário em que os juízes sejam tutores da moral da sociedade, mas de um Judiciário que seja responsável diante do público. É isso que permite aos juízes exercerem seu poder sem que ele se corrompa em poder arbitrário, sem que o Judiciário seja instrumento de um grupo ou facção, num claro sentido de criação de uma sociedade democrática.
Dessa maneira, é interessante a existência de um pacto republicano para a criação de uma justiça mais ágil no Brasil, em que a mudança nas leis reflita não apenas a razão de juízes ou de qualquer outro ator político relevante, mas um esforço conjunto dos três Poderes para torná-la mais acessível ao cidadão comum. É de se esperar que esse pacto dê um sentido público para o Judiciário, tomando a justiça como um fim normativo e não um instrumento para o exercício do poder.
Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público dessa mesma Universidade.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Não é novo, no Brasil, a questão da politização do Judiciário, e nem, necessariamente, esse papel é negativo
Tem sido uma marca do Judiciário brasileiro, nos últimos tempos, a enunciação de sentenças atreladas à necessidade clara de se fazer justiça. Não apenas na esfera da política, em que os juízes procuram corrigir as históricas delinquências do homem público brasileiro, mas nas esferas penal, empresarial ou até mesmo cível. O argumento da justiça entrou no léxico do Judiciário brasileiro de maneira muito forte, em contraste com nossa tradição positivista e legalista, que sempre julgou as questões políticas na letra fria da lei.
A princípio, não há nenhum problema em o Judiciário assumir um discurso marcado pela ideia de justiça, em especial pela ideia de justiça social, tendo em vista o fato de que o Brasil é um país marcado por desigualdades estruturais que organizam nossa sociedade. De certa maneira, isso representa um enorme avanço, uma vez que um Judiciário passivo e atrelado apenas aos ritos processuais e à letra fria da lei pode ser instrumento da legitimação das desigualdades, sendo, portanto, pouco eficiente em seus meios.
Esse avanço veio com a Constituição de 1988, que atribuiu princípios gerais que determinam os valores básicos de nosso mundo público. Princípios estes que estão enunciados de forma clara em nossos direitos fundamentais e têm o condão de servir como um teste moral para nossa sociedade, num sentido de democratização da esfera pública, tais como os princípios de liberdade, igualdade, publicidade e outros.
Dada nossa formação histórica patriarcal, o Direito, agenciado pelo Judiciário, contribuiu de maneira ímpar para a formação de nosso mundo público, no sentido de se contrapor ao privatismo que sempre foi nossa marca histórica. O mundo público brasileiro, de certa forma, ganhou plasticidade e um caráter orgânico não pela via da política representativa em si, que sempre esteve ligada ao mundo privado e aos interesses paroquiais, mas pelo Direito e seus procedimentos. Nesse sentido, o Judiciário e o mundo corporativo do Direito, por meio da OAB, sempre tiveram um papel central em nossa vida pública, sendo esse papel, portanto, político.
Dessa forma, não é novo no Brasil o debate sobre a politização do Judiciário, e nem necessariamente é negativo esse papel político. O Judiciário tem, sim, um papel político nas ordens democráticas, uma vez que ele tenha um papel na vida pública e não apenas a finalidade de adjudicar conflitos na esfera privada. Existe uma razão pública que move o Judiciário e estabelece seus fins, já que, na vida pública, cabe a ele não permitir que uma maioria ou uma minoria, na ordem democrática, utilize dos preceitos constitucionais para favorecer interesses privados ou de eventuais facções. Cabe ao Judiciário zelar pela Constituição, tendo ele, por conseguinte, um papel de protagonista na vida pública que é típico de qualquer ordem democrática.
No que tange à ideia de justiça, ela é um claro fim normativo que está expresso em nossa Constituição. É um fim normativo que pretende estabelecer uma capilaridade de nossa vida pública, determinando o horizonte para o qual o Estado e suas políticas públicas devem seguir. A justiça é o horizonte para o qual nossa democratização deve caminhar, sendo o Judiciário, junto com os demais poderes da República, o porta-voz desses valores que estão enunciados na Constituição. Por conseguinte, esses valores caminham no sentido de construção de uma sociedade democrática, tendo em vista uma concepção de cidadania aberta ao público. Em direção a uma sociedade democrática, que está no horizonte normativo da Constituição de 1988, cabe a afirmação de que a justiça, como princípio geral, deve ser a razão que organiza essa sociedade.
A justiça não é, portanto, a razão do Judiciário, mas a razão do próprio cidadão, que não aceita qualquer tipo de arbitrariedade existente em nosso mundo público. Contudo, para que essa justiça seja realizada, é fundamental a constitucionalização de procedimentos e garantias que impeçam a instrumentalização dos ideais de justiça e da própria Constituição. A justiça, dessa forma, é um fim e não um meio para a resolução de problemas do mundo público. Pela realização da justiça, muitas democracias já estiveram em situações difíceis, como, por exemplo, em diferentes situações de guerras civis e revoluções. As revoluções comunistas foram realizadas com o claro fim de realizar justiça social, mas produziram formas de totalitarismo por não se aterem aos procedimentos democráticos.
Quando o Judiciário, no Brasil, assume em seu discurso a necessidade de produzir justiça, a toma como um meio para a solução de nossos problemas históricos, como a corrupção, a violência e as desigualdades, sem se ater a procedimentos democráticos fundamentais, como a presunção de inocência, por exemplo. Quando toma a justiça como meio, o Judiciário necessita afirmar seu poder, usurpando funções dos outros poderes republicanos. Quando toma a justiça como meio, o Judiciário não produz sentenças melhores, mas corre o risco de se corromper em poder arbitrário, mesmo que queira tomar a justiça como fim normativo.
O ideal de justiça não é, dessa forma, a razão dos juízes, mas a razão do público, a qual os juízes devem representar. A justiça não é um meio para a solução de problemas, mas um fim para o qual essa solução de problemas deve caminhar. A justiça, em uma democracia, não deve estar no Judiciário, mas na sociedade, que a toma como horizonte normativo para a construção de uma sociedade democrática. O perigo do discurso por maior justiça, tão presente no Judiciário brasileiro, é sua instrumentalização, fazendo com que ela sirva a qualquer propósito moral ou político. Não precisamos de um Judiciário em que os juízes sejam tutores da moral da sociedade, mas de um Judiciário que seja responsável diante do público. É isso que permite aos juízes exercerem seu poder sem que ele se corrompa em poder arbitrário, sem que o Judiciário seja instrumento de um grupo ou facção, num claro sentido de criação de uma sociedade democrática.
Dessa maneira, é interessante a existência de um pacto republicano para a criação de uma justiça mais ágil no Brasil, em que a mudança nas leis reflita não apenas a razão de juízes ou de qualquer outro ator político relevante, mas um esforço conjunto dos três Poderes para torná-la mais acessível ao cidadão comum. É de se esperar que esse pacto dê um sentido público para o Judiciário, tomando a justiça como um fim normativo e não um instrumento para o exercício do poder.
Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público dessa mesma Universidade.
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