A
morte equilibra as contas: esse tem sido um cálculo cruel subjacente a falas e
decisões de responsáveis por nossos dilemas políticos
Em
menos de um ano, mais de 200 mil mortos no Brasil, em decorrência da covid-19,
são mais do que os mortos de Hiroshima em decorrência da bomba atômica que os
americanos explodiram sobre a cidade.
Ao
colocar o presidente da República um general da ativa, especialista em
logística, como ministro da Saúde, está ele dando status militar ao combate à
pandemia. Justifica-se, pois, a comparação que faço.
Estamos
diante de uma guerra - e guerra que, em consequência de seus efeitos
socialmente colaterais, estamos perdendo. E o estamos porque até aqui fizemos e
conseguimos menos do que teríamos feito e conseguido se tivessem prevalecido a
ciência e os critérios e recomendações científicos na administração do problema
sanitário.
Em alguma medida, o número das mortes decorrentes da pandemia reflete efeitos das recomendações de medicação sabidamente equivocada e dos maus exemplos do próprio governante nas atitudes em relação à doença.
Os
que se sentiram estimulados, pelos maus exemplos vindos de cima, a violar os
critérios de segurança pessoal e coletiva e preferiram peitar o vírus
amontoando-se em praias, ruas e restaurantes, tornaram-se elos na cadeia de
disseminação do agente da pandemia.
Os
desvios de conduta têm sua raiz na contraditória concepção de genocídio
subjacente ao cálculo político que aqui se pratica desde as origens do Brasil.
País formado pela junção à força, própria da conquista, de etnias e raças
culturalmente diferentes, acabou marcado pelo pressuposto de que o conquistador
era gente e o conquistado não.
Nos
tempos coloniais, nas estatísticas oficiais e nas definições da diversidade dos
habitantes da época, se vê claramente a dúvida dos escrivães, na classificação
da população da colônia, em relação a quem era gente ou não era. Seres de
servidão ou de escravidão, suas vidas eram consideradas provisórias, limitadas
à utilidade do servir e a no servir esgotar-se. As diferenças sociais indicavam
diferenças na possibilidade de viver: os que viveriam tudo que tinham direito e
os que viveriam apenas o que as condições lhes permitissem.
O
fato de que quase tudo no país, até hoje, é insuficiente para todos decorre de
que tudo está distribuído desigualmente: a suficiência para a minoria e a
insuficiência para a maioria. Aqui, nem as suficiências nem as insuficiências
estão democraticamente distribuídas. Nesse sentido, a própria vida não está
democraticamente distribuída. De certo modo, socialmente, a economia brasileira
é a economia dos restos. Gente sobrante vivendo do que sobra.
Essa
cultura limitante e genocida de referência formativa do nosso comportamento se
nutre de uma dificuldade estrutural própria do nosso modelo de acumulação. Para
se equiparar aos países ricos, atenua os benefícios do desenvolvimento
econômico ao reduzi-los ao menos do que o necessário ao nosso desenvolvimento
social.
Na
cultura do menos, a morte equilibra as contas. Esse tem sido um cálculo cruel
subjacente a falas e decisões de responsáveis por nossos dilemas políticos.
Especialmente agora. Falar, hoje, em fatalidade da morte, em face justamente de
ser ela uma fatalidade administrável, mas não controlada aqui, mostra-nos o
quanto está situado nas profundezas de nossa consciência o conformismo
brasileiro com essa modalidade de morte.
Cultura
disseminada na população, acabou se caracterizando, quando muito, pela
preocupação com a vida dos próximos e apenas vaga preocupação com a vida dos
distantes. Em tese, porque a deformação abrange a crença descabida de que em
casa e entre parentes próximos a doença não se espalha.
Na
verdade, as informações mais recentes mostram que essa imprudência é
responsável pela maior incidência de contaminação no interior das famílias,
devido à falta dos cuidados recomendados: distanciamento, máscara e
higienização das mãos.
O
caos que tomou conta do país e vai se tornando tragédia nas mortes decorrentes
da covid e das públicas manifestações de competente produção da circunstância
da desordem. A falta de previsão e planejamento logístico, como no caso
doloroso das mortes de pacientes por falta de ar em Manaus, é fruto da omissão
que tem sentido nessa mentalidade.
Na
perspectiva da igualdade jurídica, dos direitos sociais e da cidadania, é
incômodo, porque é muito revelador, ouvir um presidente da República dizer, em
relação à peste: “Fiz a minha parte”. É afirmação de quem a boca fala apenas a
língua limitada de uma sociedade de alguns, e não de uma sociedade de todos. É
a língua de um burocrata, e não a língua de um governante. Não é língua de
estadista, de quem vê, compreende e personifica o todo. Coisa de quem concebe o
mandato como aquilo que o mandato não é.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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