Diante
dos fatos daquele inferno amazônico, diante da crueldade, lágrimas correram
Há
pouco tempo, na lista de meios já utilizados por mim, faltavam o camburão e a
ambulância. Agora, só falta o camburão. Semanas atrás, incomodado por uma
constipação intestinal, belo eufemismo da medicina, e pelo que me parecia um
quisto em lugar incômodo, me vi no Pronto Atendimento, outra expressão mais
tênue, simpática, do que pronto-socorro, que nos dava a sensação de fim de
linha. Terminados alguns exames, me assustaram: “O senhor vai direto para o
hospital, a ambulância já está à espera”. Pronto, meu catastrofismo, herdado de
minha mãe, aflorou. A vida inteira dona Maria do Rosário, boa e piedosa, teve
medo de perder a casa, hipotecada à Caixa durante uma reforma. A casa está na
família até hoje. Colocaram-me em uma cadeira de rodas, apesar de eu poder
caminhar. Cadeira de rodas é boa nos aeroportos, principalmente no de
Guarulhos, com seus corredores quilométricos. O motorista da ambulância me
devolveu o humor. “Quer com emoção ou sem emoção? Ou seja, a toda velocidade
com sirenes abertas ou normal?” Não sabia se eu ia morrer logo ou se dava tempo
de chegar ao Einstein, respondi: “Sem emoção”.
Sem?
Quem disse? As ruas estropiadas desta cidade são um inferno para quem vai
deitado, sofrendo sacudidelas que não nos jogam no chão porque nos prendem com
cinturões. Eu me imaginava louco metido em camisa de força.
Por sorte (ou merecimento, não vá o psicoterapeuta Hiroshi Ushikusa dizer: pare com essa culpa), o convênio médico que a Academia Brasileira de Letras me concedeu cobre tudo e fui entregue ao doutor Alberto Goldenberg, que rápido correu com os procedimentos. Adoro esta palavra, é boa para tudo. E eu pensava o quê? Aqui terá oxigênio? Ou me angustiava: claro que não conseguirão um diagnóstico. Sou o paciente que não anima nenhum médico. Mas alguém lá em cima – pode ser até no andar superior – olha por mim.
Neste
momento, liguei a tevê. GloboNews. Por que fiz? Mergulhei no horror,
desumanidade, incompetência e desespero, achei que era a guerra civil,
ocasionada por um governador abobalhado e pela logística do Pazuello, o militar
que mais desonra as Forças Armadas, é só vexame. Tenebrosas e pungentes mortes
por asfixia começaram a saltar da telinha. Tentar respirar e o ar não existir
deve ser um horror. Isso de Manaus pode se repetir pelo Brasil, porque o
governo garante que está fazendo a sua parte. E, quando ele garante isso, é
melhor apanhar o passaporte. Falta de oxigênio deve ser uma morte tão horrorosa
quando a provocada pelo gás Zyklon.
Senti-me
mal, culpado (atenção Karnal), privilegiado. Estava preocupado com um coisa que
acabou sem drama nenhum. E naquele mesmo momento havia pessoas sem respirar e a
morrer, enquanto outras nem conseguiam enterrar seus mortos. Quantos Brasis
existem dentro de um? Quanta diversidade social e financeira. Eu, privilegiado.
Passei por tomografias em máquinas caríssimas, fiz exames laboratoriais cujos
resultados saíam em minutos, mas em Manaus – e em tantas outras partes – tinha
(e tem) gente sem respirar, sem atendimento, sem respirador e criminosamente
sem vacina. Ah, e os fura-filas?
Então,
pela primeira vez na minha vida, vi uma jornalista, Natuza Nery, não suportar e
explodir em choro, enquanto relatava os fatos daquele inferno amazônico. Diante
da crueldade, Natuza chorou. Lágrimas correram, ela parou de falar. Espectadores
choraram. Fiquei travado, nunca me esquecerei. Breve cena de poucos minutos.
Mas quem devia chorar, o presidente, os parlamentares, os ministros do Supremo,
os generais tão invocados a todo momento, estes pouco se davam, se deram, se
dão.
Agora,
estou em casa salvo, escrevendo este texto pelo qual posso ser processado pelo
ministro da Justiça. E a fila de mortos cresce, avoluma-se, é uma pilha, um
Himalaia de pessoas. Mas tudo bem, o procurador Aras está aí para salvar a
pátria, ou o presidente. Passamos dos 215 mil mortos. Toda a população de
Araraquara, onde nasci. Uma cidade inteira. Gente, seres humanos que vivem,
trabalham, amam, comem, bebem, se divertem, riem, choram, têm prazer e dor, são
felizes ou não. Gente que vive, quer viver, porque é bom, apesar de tudo.
Temos
medo. Estamos angustiados. Todos, de todas as cores e modos e religiões e
ideologias e fantasias e sonhos e desejos, estão na fila para morrer. Não
chegou a hora de fazer alguma coisa?
*É jornalista e escritor, autor 'Zero' e 'Não verás país nenhum'
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