terça-feira, 28 de maio de 2024

Pedro Cafardo - Gastos catastróficos e dívidas põem idosos em apuros

Valor Econômico

Como é possível um reajuste de um plano de saúde mais de cinco vezes acima da inflação?

Francisco e Amélia estão em apuros. Na semana passada, o casal recebeu o boleto do plano de saúde com uma surpresa de tirar o sono: a mensalidade aumentou 22%. Ambos têm mais de 70 anos e acompanham os telejornais que, quase diariamente, falam em uma inflação anual na casa dos 3% a 4%. Como é possível um reajuste de um plano de saúde mais de cinco vezes acima da inflação?

Francisco trabalhou no comércio por 40 anos e encerrou a carreira em 2021 como gerente. Sempre teve um salário razoável, com carteira assinada, contribuiu para a Previdência e aposentou-se com benefício integral. Em meados de 2021, quando começou a receber a aposentadoria, o valor era de R$ 6.433,57 mensais. Hoje está em R$ 7.786,02, com reajuste de 21% em três anos, que mais ou menos acompanhou a inflação oficial (IPCA) do período.

O plano de saúde, porém, atropelou a inflação. Ao aposentar-se, Francisco perdeu o convênio que tinha na empresa em que trabalhava e foi obrigado a contratar um plano para ele e a mulher. Não conseguiu um individual, escasso e de baixa qualidade de atendimento. Abriu então uma microempresa e contratou um plano empresarial, que tem liberdade para elevar o preço anualmente quanto quiser. Em junho de 2021, a mensalidade inicial foi de R$ 6.680,00. Hoje, depois de três reajustes, incluindo o de 22%, está nos R$ 10.030,00. Aumento em três anos: 50%.

Na prática, aconteceu o seguinte: em 2021, o casal praticamente conseguia pagar o plano de saúde com a aposentadoria de Francisco. Hoje, precisa usar também a de Amélia e não sobra quase nada. O jeito é apelar para um crédito consignado.

Francisco diz não entender nada de economia, mas, por ter trabalhado no comércio, sabe que preço alto afasta clientes e reduz vendas. Nesse ritmo, pensa, as empresas de planos vão quebrar pelo cancelamento de contratos ou pela inadimplência dos segurados. As próprias empresas se dizem em situação crítica (prejuízos) desde a pandemia, por causa do aumento de custos da saúde, ações judiciais perdidas e fraudes. No ano passado, porém, tiveram um lucro conjunto de quase R$ 3 bilhões, graças a aplicações financeiras. Na operação de saúde, contabilizaram prejuízo.

O quadro relatado acima, da vida real com nomes fictícios, captado pelo colunista atinge milhões de outros clientes de planos de saúde. São vítimas da financeirização da economia, uma tendência amplamente analisada na extraordinária coletânea de artigos acadêmicos (66 economistas e pesquisadores em 1.338 páginas) intitulada “Financeirização, Crise, Estagnação e Desigualdade”, trabalho organizado sob a liderança da economista Lena Lavinas (UFRJ). No capítulo 14 do livro, os professores e pesquisadores Guita Grin Debert e Jorge Félix discorrem sobre a financeirização da velhice e sugerem que os planos de saúde, no Brasil, “estão levando as pessoas idosas à situação de ‘gasto catastrófico’”. Exatamente o que sentem na pele o casal Francisco e Amélia.

A financeirização da velhice se dá de forma ampla, segundo os pesquisadores.

Primeiro, pelos planos de saúde e seus constantes reajustes acima da inflação, que levam as famílias ao endividamento para manter o seguro - se é que se pode chamar de seguro um contrato passível de rescisão unilateral pela seguradora. Na sexta-feira, o Conselho Nacional do Consumidor notificou 20 operadoras para que expliquem em dez dias as razões dos cancelamentos.

Segundo, pelo avanço das operadoras de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), que pertencem a “private equities” e fundos de pensão e buscam mais o resultado financeiro do que o cuidado - os autores relatam um escândalo ocorrido na França nesse setor envolvendo uma empresa que já opera no Brasil.

Terceiro, pelo crédito consignado, invenção brasileira que incluiu corretamente os idosos no mercado financeiro, mas que, em razão dos juros elevados cobrados pelas instituições financeiras, os leva ao endividamento e à perda dos valores das aposentadorias e pensões.

A financeirização da velhice não é um problema exclusivamente brasileiro. Mas tanto o caso do casal de idosos do Brasil quanto o escândalo da França ilustram a ineficácia de se delegar ao setor privado o desafio de atender às demandas de uma ampla camada superenvelhecida da sociedade e expõem falhas de mercado irreparáveis, assim como limitações do terceiro setor (filantropia).

Guita e Félix entendem que a financeirização da velhice resulta dessa mutação do papel do Estado, saindo do modelo de bem-estar-social para o que eles definem como “Estado-fiador”. Como não consegue prover saúde, cuidados e medicamentos, o Estado se oferece como avalista para que o cidadão tome empréstimos no mercado financeiro. Empréstimos impagáveis, com juros de até 1,68% ao mês no caso do consignado (teto oficial).

Traduzido para um quase-economês, a opinião de Francisco e Amélia sobre tudo isso é mais ou menos a seguinte: o sistema de planos de saúde no Brasil, em fase de elevadíssima judicialização e dificuldades financeiras, precisa de reformas, antes que provoque uma corrida capaz de inviabilizar o SUS ou uma catástrofe para “segurados” e “seguradores”.

“Financeirização - Crise, Estagnação e Desigualdade”
Editora Conta Corrente. Organizadores: Lena Lavinas, Norberto Montani Martins, Guilherme Leite Gonçalves e Elisa Van Waeyenberge.


 

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