Valor Econômico
Como é possível um reajuste de um plano de saúde mais de cinco vezes acima da inflação?
Francisco e Amélia estão em apuros. Na semana
passada, o casal recebeu o boleto do plano de saúde com uma surpresa de tirar o
sono: a mensalidade aumentou 22%. Ambos têm mais de 70 anos e acompanham os
telejornais que, quase diariamente, falam em uma inflação anual na casa dos 3%
a 4%. Como é possível um reajuste de um plano de saúde mais de cinco vezes
acima da inflação?
Francisco trabalhou no comércio por 40 anos e encerrou a carreira em 2021 como gerente. Sempre teve um salário razoável, com carteira assinada, contribuiu para a Previdência e aposentou-se com benefício integral. Em meados de 2021, quando começou a receber a aposentadoria, o valor era de R$ 6.433,57 mensais. Hoje está em R$ 7.786,02, com reajuste de 21% em três anos, que mais ou menos acompanhou a inflação oficial (IPCA) do período.
O plano de saúde, porém, atropelou a
inflação. Ao aposentar-se, Francisco perdeu o convênio que tinha na empresa em
que trabalhava e foi obrigado a contratar um plano para ele e a mulher. Não
conseguiu um individual, escasso e de baixa qualidade de atendimento. Abriu
então uma microempresa e contratou um plano empresarial, que tem liberdade para
elevar o preço anualmente quanto quiser. Em junho de 2021, a mensalidade
inicial foi de R$ 6.680,00. Hoje, depois de três reajustes, incluindo o de 22%,
está nos R$ 10.030,00. Aumento em três anos: 50%.
Na prática, aconteceu o seguinte: em 2021, o
casal praticamente conseguia pagar o plano de saúde com a aposentadoria de
Francisco. Hoje, precisa usar também a de Amélia e não sobra quase nada. O
jeito é apelar para um crédito consignado.
Francisco diz não entender nada de economia,
mas, por ter trabalhado no comércio, sabe que preço alto afasta clientes e
reduz vendas. Nesse ritmo, pensa, as empresas de planos vão quebrar pelo
cancelamento de contratos ou pela inadimplência dos segurados. As próprias
empresas se dizem em situação crítica (prejuízos) desde a pandemia, por causa
do aumento de custos da saúde, ações judiciais perdidas e fraudes. No ano
passado, porém, tiveram um lucro conjunto de quase R$ 3 bilhões, graças a
aplicações financeiras. Na operação de saúde, contabilizaram prejuízo.
O quadro relatado acima, da vida real com
nomes fictícios, captado pelo colunista atinge milhões de outros clientes de
planos de saúde. São vítimas da financeirização da economia, uma tendência
amplamente analisada na extraordinária coletânea de artigos acadêmicos (66
economistas e pesquisadores em 1.338 páginas) intitulada “Financeirização,
Crise, Estagnação e Desigualdade”, trabalho organizado sob a liderança da
economista Lena Lavinas (UFRJ). No capítulo 14 do livro, os professores e
pesquisadores Guita Grin Debert e Jorge Félix discorrem sobre a financeirização
da velhice e sugerem que os planos de saúde, no Brasil, “estão levando as
pessoas idosas à situação de ‘gasto catastrófico’”. Exatamente o que sentem na
pele o casal Francisco e Amélia.
A financeirização da velhice se dá de forma
ampla, segundo os pesquisadores.
Primeiro, pelos planos de saúde e seus
constantes reajustes acima da inflação, que levam as famílias ao endividamento
para manter o seguro - se é que se pode chamar de seguro um contrato passível
de rescisão unilateral pela seguradora. Na sexta-feira, o Conselho Nacional do
Consumidor notificou 20 operadoras para que expliquem em dez dias as razões dos
cancelamentos.
Segundo, pelo avanço das operadoras de
Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), que pertencem a “private
equities” e fundos de pensão e buscam mais o resultado financeiro do que o
cuidado - os autores relatam um escândalo ocorrido na França nesse setor
envolvendo uma empresa que já opera no Brasil.
Terceiro, pelo crédito consignado, invenção
brasileira que incluiu corretamente os idosos no mercado financeiro, mas que,
em razão dos juros elevados cobrados pelas instituições financeiras, os leva ao
endividamento e à perda dos valores das aposentadorias e pensões.
A financeirização da velhice não é um
problema exclusivamente brasileiro. Mas tanto o caso do casal de idosos do
Brasil quanto o escândalo da França ilustram a ineficácia de se delegar ao
setor privado o desafio de atender às demandas de uma ampla camada
superenvelhecida da sociedade e expõem falhas de mercado irreparáveis, assim
como limitações do terceiro setor (filantropia).
Guita e Félix entendem que a financeirização
da velhice resulta dessa mutação do papel do Estado, saindo do modelo de
bem-estar-social para o que eles definem como “Estado-fiador”. Como não
consegue prover saúde, cuidados e medicamentos, o Estado se oferece como
avalista para que o cidadão tome empréstimos no mercado financeiro. Empréstimos
impagáveis, com juros de até 1,68% ao mês no caso do consignado (teto oficial).
Traduzido para um quase-economês, a opinião
de Francisco e Amélia sobre tudo isso é mais ou menos a seguinte: o sistema de
planos de saúde no Brasil, em fase de elevadíssima judicialização e
dificuldades financeiras, precisa de reformas, antes que provoque uma corrida
capaz de inviabilizar o SUS ou uma catástrofe para “segurados” e “seguradores”.
“Financeirização - Crise, Estagnação e
Desigualdade”
Editora Conta Corrente. Organizadores: Lena Lavinas, Norberto Montani Martins,
Guilherme Leite Gonçalves e Elisa Van Waeyenberge.
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