Vinte e cinco anos depois de promulgada a “Constituição cidadã”, o brasileiro cobra na ruas o cumprimentos de garantias inscritas na Carta Magna
Por Bárbara Pombo e Viana de Oliveira
A Constituição em dois momentos: em 1988, aprovada, com Ulysses; em junho, com manifestante
BRASÍLIA e SÃO PAULO - Enquanto eram só alguns milhares de jovens a protestar contra a tarifa do transporte, quase não se atentava para o papel democrático de manifestações em espaços públicos: parecia tratar-se de só mais um estorvo ao trânsito. De uma hora para outra, a cidadania tomou a frente como problema central de manifestações que se espalharam por centenas de cidades e levaram brasileiros às ruas. No meio de cartazes e faixas, as falhas da democracia brasileira se revelavam: o país se via às voltas com a constatação de que as demandas da maior parte da população não são atendidas, com a incapacidade do poder público em responder a reivindicações e com a violência policial arbitrária. Tudo isso, quando o texto fundamental da ordem política e social do país, sua "Constituição Cidadã", estava às portas de completar 25 anos em vigor.
"Numa passeata, achei interessante como vários cartazes faziam referência a trechos da Constituição", afirma o cientista político José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo (USP). Para ele, as manifestações estão embebidas na própria lógica da Carta Magna, que recebeu seu apelido de "Constituição Cidadã" do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, quando foi promulgada, em 5 de outubro de 1988.
Por um lado, os manifestantes exigem a aplicação plena dos amplos direitos sociais previstos na Carta. Afinal, diz Moisés, os direitos sociais à saúde e educação, presenças constantes nas faixas, são garantidos constitucionalmente no Brasil e de responsabilidade conjunta da União, Estados e municípios. Ou seja, 25 anos depois de promulgada a Constituição, foi em busca dessas garantias que os brasileiros tomaram as ruas. Foram, em grande parte, jovens já criados sob a égide da Carta de 1988 que, ao monopolizar as cidades, o noticiário, as conversas cotidianas e as decisões dos governos nas últimas três semanas, reivindicaram a quitação da dívida constituída na Constituição. Por outro lado, os manifestantes exigem a transformação do sistema político, para acomodar o desejo de civilidade que o Brasil nunca exerceu plenamente.
"A cultura política brasileira está mudando, lentamente, desde a resistência democrática contra a ditadura, passando pelas greves do ABC, a campanha pelas Diretas Já e os cara-pintadas", diz Moisés. Para ele, as constituições do Brasil herdaram de tempos coloniais a ideia de que a sociedade civil não tomava iniciativa. "As pessoas não se organizavam. Ao verem que podem pressionar o Congresso e o governo quando se organizam, incluem um novo elemento cultural na política."
O texto constitucional aprovado em 1988 foi posto à prova. Os protestos, à parte as depredações e a intolerância a partidos, escancararam, para constitucionalistas, uma grande conquista da Carta: a estabilidade institucional. É a própria Constituição, como reação aos 21 anos de ditadura e marca do regime democrático mais longo da história do Brasil, que garante manifestações livres. "A Constituição foi o meio ambiente que viabilizou as manifestações", diz o professor de direito constitucional Oscar Vilhena, diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). "Ao traçar uma agenda de demandas sociais e conceder direitos antes que sejam efetivados, cria-se um ambiente propício para a luta política."
Brasileiro inclui novo elemento cultural na política ao ver que, quando se organiza, pode pressionar governo e Congresso, diz cientista político
O momento de forte carga emocional do Brasil de meados da década de 1980 atravessa a Constituição do começo ao fim, naquilo que a torna uma carta cidadã: a garantia profunda e extensa dos direitos sociais. Moisés relembra que, no período, o chamado Centrão conseguiu se articular para bloquear transformações do sistema político que poderiam lhe conferir agilidade e maior poder de representação. Só para lembrar: Centrão é o apelido dado ao grupo denominado Centro Democrático, formado por parlamentares do PMDB, PFL, PDS e PTB, além de outros partidos menores, que formavam a base de apoio do governo Sarney. "Mas nos direitos sociais, exigência da sociedade civil, o Centrão não conseguiu tocar", diz Moisés.
A Constituição seria, por isso, o retrato de um país que se redemocratizava com sede de justiça social e desenvolvimento humano, ainda que esse caráter abrisse o caminho para críticas de que se trataria de um apanhado de direitos difíceis de aplicar e custosos demais. "Temos de olhar a Carta em dois níveis. No conceitual, prefiro, pessoalmente, uma Constituição mais enxuta, que deixasse de fora temas que poderiam estar na legislação ordinária", diz Moisés. "Na prática, a Constituição foi feita com os olhos na tradição brasileira de leis desligadas dos interesses da população e quiseram garantir esses temas desde o início. Pensando na história, temos uma Constituição que atacou os problemas reais do país."
As manifestações parecem refletir um abismo entre o dia a dia e as expectativas do brasileiro. "Antes de 1988, a reclamação era a falta de acesso aos serviços. Hoje, é sua qualidade. A pauta é legítima e não está distante do pacto constitucional", diz o cientista político Fernando Abrucio, da FGV. "Apesar do conjunto de expectativas juridicamente estabelecidas, a situação está aquém do prometido. Além disso, um discurso político intenso nos últimos anos dizia que a vida do brasileiro melhorou. Agora ele é cidadão de classe média com emprego de boa qualidade; o Brasil se tornou um dos grandes do mundo", observa Vilhena. "O discurso político ficou aquém das nossas capacidades."
Durante sabatina no Senado, Luís Roberto Barroso, recém-empossado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que a Constituição "só não prometeu trazer a mulher amada". "O documento da liberdade, da dignidade e da justiça social", como definiu Ulysses, tem 250 artigos que tratam desde a organização do Estado, o direito dos índios e o dever da família até regras específicas de interesse de magistrados, policiais e cartórios.
Apesar desse excesso de detalhes, 142 dispositivos ainda não são aplicados plenamente, por falta de regulamentação. Dentre eles, a greve dos funcionários públicos. Apenas o capítulo das garantias fundamentais possui 78 incisos, que asseguram o direito à vida e a igualdade de todos perante a lei, mas também a obtenção gratuita de certidões em órgãos públicos para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal. "As sociedades que não têm consciência social forte precisam de freios e regras, porque é a maneira de fazer a sociedade andar", diz o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Para alguns pesquisadores, embora tenha sido objeto de interesse de diferentes grupos que influenciaram na sua elaboração, desde lideranças sindicais a empresários, a Constituição tornou-se elemento-chave para tornar o país "ingovernável", por trazer mais direitos do que obrigações. Além disso, constituintes teriam pecado pelo excesso ao redigi-la: há uma descrição das principais políticas públicas a serem executadas pelo Estado, com suas diretrizes, mas também um detalhamento de como devem ser feitas, o que é entendido como uma forma de engessamento para colocá-las em prática.
A Constituição de 1988 é repleta de dispositivos simbólicos, fixados a partir da necessidade "inconsciente" e "sem intenção" dos constituintes de "vender" um país democrático e preocupado com valores após os 21 anos da ditadura, observa Marcelo Neves, professor de direito público da Universidade de Brasília (UnB). Talvez por isso, 76% dos 559 parlamentares constituintes classificassem sua orientação política como de centro ou centro-esquerda, segundo pesquisa do jornal "Folha de S. Paulo", de março de 1987. "A produção textual, as emendas, a Constituição cidadã são formas de apresentar um cenário de pessoas envolvidas com a transformação real do país. Socialmente, era uma exigência em relação aos políticos da época."
Do ponto de vista de ativistas e estudiosos que lidam com os direitos sociais e humanos, o resultado é uma tabela de princípios para o que a sociedade quer ser no longo prazo, na descrição da jurista Ester Rizzo, da organização não governamental Ação Educativa. Esse documento não chega a empalidecer diante da "enorme discrepância entre os direitos escritos e o dia a dia", no dizer do cientista político Maurício Santoro, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional. Ao contrário, é a discrepância que justifica a amplitude dos direitos presentes na Carta. "A tensão entre direito e realidade é constante. Existindo a lei, o desafio é fazê-la valer", diz Ester.
Em outras palavras, ao garantir mais cidadania do que o brasileiro jamais teve, a Constituição faz de si o campo de batalha para o avanço e o retrocesso dos direitos sociais e humanos no Brasil. Dois exemplos em que a Constituição ou uma de suas emendas alterou a maneira como a educação foi tratada são citados por Ester. Até 1988, a educação infantil era considerada direito não da criança, mas dos pais que trabalhavam, graças a esforços do movimento feminista na ditadura. Hoje, é direito tanto dos pais quanto da criança, cuja implantação efetiva não foi imediata. "Só em torno de 2004 a maioria das prefeituras transferiu a educação infantil das secretarias de Assistência Social para as de Educação. Foi preciso recurso à Justiça para isso." Hoje, mesmo filhos de pais desempregados têm garantido o direito a creches e pré-escolas.
O segundo exemplo é a obrigatoriedade do ensino, alterada em 2009 pela emenda constitucional 59. Passou-se da obrigatoriedade por etapa de estudos (o ensino fundamental) à obrigatoriedade por idade, dos 4 aos 17 anos. "Os movimentos pela educação viram que não bastava alterar a Lei de Diretrizes e Bases. Era preciso ir até a Constituição. Com essa luta, tornou-se consenso que a educação é um direito das crianças e as prefeituras do país se esforçam para expandir a pré-escola e o ensino médio. Se faltam vagas em escolas, hoje o Estado pode ser processado. Um prefeito pode ficar inelegível por não investir 25% do orçamento em educação. Os dispositivos existem e as ações acontecem", diz Ester.
Autor do livro "A Constitucionalização Simbólica", Neves afirma que a previsão constitucional dos direitos à saúde e à educação, do compromisso com a qualidade do ensino e com a erradicação da miséria e do analfabetismo tende a ser mais positiva. "A carga simbólica desses dispositivos é altíssima, mas são úteis para que governos sejam cobrados, para que sejam apontados como exigência constitucional e não valor de um grupo ideológico."
O caso da saúde é emblemático das tensões entre as intenções da Constituição e as circunstâncias do país. Apesar do espírito universalista na saúde pública, previsto nos artigos 196 a 200, o sistema de saúde é marcado pela fragmentação e por uma dualidade entre o setor público e o privado em que "o sucesso de um é o insucesso do outro", segundo o sociólogo Nilson do Rosário Costa, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz. Isso porque os planos de saúde avançam quanto mais o Sistema Único de Saúde (SUS) se mostra ineficiente para atender a demanda da sociedade. "Na saúde, embora haja um sistema público e universal [SUS], o gasto da sociedade se dá muito mais com um sistema privado. Ou seja, falta Estado no sistema de saúde geral. E o gasto que o Estado faz não fica apenas no serviço público. Vai também para o privado, porque ele compra serviços de hospitais privados, exames e remédios", afirma Geraldo Di Giovanni, professor do Instituto de Economia da Unicamp, referindo-se à dependência do SUS do uso também de rede privada para seu funcionamento.
Para Costa, as ruas explicitaram um desafio de conjuntura na saúde nacional. "As famílias mais pobres gastam uma proporção enorme de seu orçamento de saúde em medicamentos e isso é fruto das falhas no sistema." Sua estimativa é que seria necessário envolver a sociedade no debate sobre a saúde por meio de uma discussão da governança e dos papéis de cada ente público e do setor privado. "Fiquei decepcionado com as respostas da presidente Dilma sobre saúde. Ela falou em médicos estrangeiros, Unidades de Pronto Atendimento e Unidades Básicas de Saúde, mas deixou intacta a distorção que vem do texto constitucional."
Em comparação com as sete Cartas anteriores, é possível afirmar que a transposição do texto constitucional para a realidade avançou. Em estudo elaborado antes de sua indicação para o STF, o ministro Barroso afirma que a lógica dominante antes de 1988 era a "falta de seriedade em relação à lei fundamental, a indiferença com a distância entre o texto e a realidade". A Constituição de 1824, promulgada por d. Pedro I, previa que a lei seria igual para todos, mas, segundo Barroso, "conviveu, sem que se assinalassem perplexidade ou constrangimento, com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata". Com alguns avanços da Constituição, dizem especialistas, foi possível reduzir o que Ulysses apontou, no discurso da promulgação da Carta, como o maior obstáculo à cidadania - o elevado contingente de brasileiros que não sabiam ler e escrever.
De 1988 a 2011, a taxa de analfabetismo passou de 25% para 8,6%, segundo o IBGE. Mas ainda há 12,9 milhões de pessoas com mais de 15 anos que não sabem ler nem escrever. Há ainda 30,5 milhões de "analfabetos funcionais". Apesar de o acesso à escola estar quase universalizado dos 7 aos 14 anos, o IBGE vê falhas na qualidade do ensino. O dever do Estado com a universalização do ensino médio não foi plenamente efetivado. Segundo o IBGE, 1,72 milhão de jovens de 15 a 17 anos estão fora da escola.
Em grande medida, os avanços nos indicadores sociais foram obtidos pela constitucionalização das políticas públicas. O reflexo foi a corrida da população ao Judiciário. No STF, as 26 mil ações ajuizadas até junho já superam o número de processos protocolados em 1989 - 14,7 mil. Criado pela Constituição, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebe sete vezes mais processos que em seu primeiro ano de vida. São constantes os pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos que não pertencem à lista do SUS, e mesmo de remédios que, embora na lista, estão em falta. Em razão das ordens judiciais, o Ministério da Saúde gastou R$ 355 milhões em 2012. Cirurgias e exames também têm sido garantidos.
"Conseguimos que a União custeasse uma operação de ombro para um paciente de Santa Catarina. Pelo número de cirurgias feitas por ano e a posição dele na fila, a espera seria de 80 anos", diz Gabriel Oliveira, presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais. Recentemente, o Rio Grande do Sul foi obrigado pela Justiça a construir uma escola em Bagé. "Já havia previsão orçamentária para a obra, mas as crianças ainda estudavam em um prédio emprestado com problemas estruturais", diz Patrícia Kettermann, presidente da Associação.
Criadas pela Constituição para garantir o cumprimento do direito de todos dirigirem"petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder", as defensorias públicas ainda engatinham em três Estados. Em Santa Catarina, o órgão só foi instituído após ordem do STF, no ano passado. Em Goiás, só há seis defensores para atender a população e no Paraná ainda não há profissionais trabalhando. A defensoria pública federal - responsável por ações contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a Caixa Econômica e o SUS, por exemplo - está presente em apenas 28% das comarcas do país. São 480 profissionais para atender um público-alvo de 80 milhões de pessoas que recebem até dois salários mínimos. A Advocacia-Geral da União possui 9 mil advogados.
Aproximar a realidade do modelo constitucional, para muitos, não depende de novas leis. A Constituição já recebeu 73 emendas desde 1992. São 3,5 por ano. "Em vez de mudar na prática, muda-se a lei e acham que o mundo muda por isso. Quem muda o mundo são os homens. As leis só facilitam ou dificultam as mudanças", diz Bandeira de Mello. Concordância, porém, não há sobre o modelo político ideal para efetivar o ambicioso pacto da Carta de 1988. "Nosso sistema de representação [Parlamento, voto, partidos políticos] é do século XVIII. Nos municípios pequenos já é possível ter uma ciberdemocracia para a sociedade decidir sem intermediação de partidos", diz Vilhena. Para Abrucio, o ambiente de participação já é viável. "Os conselhos de usuários na área da saúde e educação já existem, as audiências públicas nas assembleias legislativas também. É preciso ocupar espaços."
Na esteira das manifestações pelo país, o texto constitucional, com seus mecanismos de participação direta, voltou ao debate pelas mãos da presidente Dilma Rousseff, ao propor o plebiscito para encaminhar a difícil reforma política. A participação popular direta, noção que sustenta a ideia do plebiscito, foi objeto de um livro que Moisés publicou menos de dois anos após a promulgação do texto constitucional: "Constituição: Cidadania e Participação". Ele ressalta que os mecanismos existentes foram usados com sucesso no Brasil: duas leis importantes - a da Ficha Limpa e a da Improbidade Administrativa - têm origem na iniciativa popular. "São casos em que, sob pressão do povo, o Congresso teve de adotar leis que não queria de jeito nenhum."
Mas o cientista político demonstra ceticismo com a proposta da presidente. "Na Suíça e na Califórnia, onde esses mecanismos existem desde o século XIX, a iniciativa popular pode até mesmo emendar a Constituição", afirma, mas adverte que o princípio de consulta plebiscitária é suscitar o debate na sociedade civil. Na Suíça, capital mundial dos referendos e plebiscitos, exige-se um período de ao menos 120 dias para campanha e discussões. "Caso contrário, um plebiscito pode ser usado como fraude, para fazer parecer que o povo apoia determinada ação do governo. Ou então, a administração pode usar a ferramenta para tentar recuperar legitimidade, como parece ser o caso agora."
Participante das manifestações em São Paulo pela redução da tarifa do transporte público, Hugo Albuquerque, de 25 anos, diz que os movimentos que paralisaram centenas de cidades e arregimentaram mais de 1 milhão de pessoas foram um grito contra o argumento usado por gestores públicos para não tornar efetivas conquistas da Constituição. "Há sempre o discurso da reserva do possível, quando a falta de recursos é apontada como razão para não fazer nada." Nascido em plena constituinte, o advogado, que inicia seu mestrado em direito constitucional na PUC-SP, é favorável ao financiamento público de campanha e à obrigatoriedade de prévias dentro dos partidos políticos, que, diz, precisam ser oxigenados. "Se a correnteza de vontade é represada, como tem sido há anos, o dique acaba se rompendo." (Colaborou Vanessa Jurgenfeld)
Fonte: Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
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