Já se produziu uma quantidade razoável de interpretações sobre as mobilizações que no mês de junho despontaram por todo o país. Até mesmo o nosso aggiornamento publicístico ao mundo investiu numa novidade: foi lançado o primeiro instant-e.book do país, em atendimento àqueles que buscam, em relação a elas, uma análise supostamente mais exigente, feita no calor da hora . Dentre os analistas, já se sedimentou algum consenso: as manifestações têm caráter massivo, são nacionais, mas se mostram rigorosamente distintas quando comparadas às “Diretas Já” e ao Impeachment de Collor. De forma geral, elas devem ser compreendidas como expressões do contexto democrático brasileiro, mas, ao contrário das mencionadas, são difusas, plurais e apresentam demandas republicanas fragmentadas em defesa da ética na política e contra a corrupção. Há nelas também um sentimento e uma demanda pelo bem comum e pela melhoria de vida das pessoas. De maneira incisiva e contínua, as manifestações de junho colocaram em xeque a eficiência dos governos, em todos os níveis, especialmente o federal, por este ser o maior arrecadador de impostos e por ser dele que se esperam as respostas mais significativas em termos de financiamento das políticas públicas.
Não cabe dúvida que tais manifestações fazem parte da dimensão participativa da democracia representativa vigente no país. É impróprio o qualificativo de “democracia direta” e tampouco a identificação de qualquer tipo de revolução digna do nome. Embora o “vandalismo” tenha se feito presente, num fenômeno que começa a ser descrito como “passeata-arrastão”, a violência não parece ser o método principal das manifestações e a sua reprodução não parece ser também o seu objetivo. Mas o fato é que elas expressam a sensação de um “represamento” que agora força sua passagem e se impõe nas ruas. E isso ainda não é tudo. Há nas manifestações um rechaço e, no limite, uma ira e um ódio contidos em relação aos representantes políticos em geral e aos partidos políticos, em particular, embora não se tenha expressado o desejo de colocar abaixo a democracia fundada na Carta de 1988. Esta ainda mantém sua legitimidade intocada. A ameaça em relação a ela parece não vir das ruas!
O que se nota, portanto, é que as manifestações expressam uma crise especifica de legitimação da democracia que precisa ser compreendida e acompanhada em seus desdobramentos, daí emergindo o diagnóstico de que elas representam uma demanda por “democratização da democracia”. Entretanto, esta seria uma consigna geral frente à crise contemporânea da democracia e abre parcos caminhos ou mesmo indica poucas respostas à especificidade da crise que enfrentamos nos dias de junho. Em suma, o que se estabeleceu e o que se vai seguir – em razão de um acúmulo de práticas paralisantes ao avanço da democracia perpetradas por diversos governos, especialmente, o atual –, são dilemas próprios à assimilação e enriquecimento da cultura cívica entre nós e outros mais atinentes à engenharia das instituições e à renovação da relação povo-poder, que os atores políticos estarão obrigados a equacionar para evitar o aprofundamento da crise e conseguirem recompor a confiança do país em continuar vivenciando e ampliando a política da democracia.
Uma das virtudes dessas manifestações tem sido o fato de que elas foram capazes de produzir efetivamente um retrato da nossa sociedade e do estado em que vivemos. Outra vez, os registros são consensuais: as pessoas se expressam livremente, protestam a respeito de carências sociais, da ineficiência dos poderes públicos, da qualidade dos serviços essenciais, reivindicam seus direitos e necessidades, mas também revelam seus ardentes desejos igualitários em plena rua, à luz do dia. Revelam também uma nova maneira de se manifestar e de se agrupar, de dar sentido ao seu pertencimento, na qual a internet passou a ser o nexo agregador mais eficiente. Os móveis de arregimentação em cada passeata foram ao mesmo tempo iguais e diferentes em cada lugar do país. Mesmo assim, essa “falta de centro” não foi integral, elegendo-se algumas questões, como a tarifa do transporte público, a corrupção, a precariedade na saúde e a baixa qualidade na educação, como unificadoras.
Por tudo isso, as manifestações têm revelado um pouco (ou muito) do que somos enquanto sociedade. Têm sido um retrato que cala fundo, mas que é difícil distinguir, tanto pela falta de experiência histórica cumulativa quanto pelo rebatimento da crise mais geral de representação que atravessa o mundo e que gera a perda de referenciais anteriormente estabelecidos. Um dos aspectos mais notáveis e que chamam muita atenção é a marcante e difusa expressão individual de demandas: as manifestações não seguem uma liderança ou corrente política, um discurso único, uma mesma lógica, um mesmo sentido. Tudo que se expressa em cartazes artesanais carregados pelos manifestantes revela uma fragmentação que ultrapassa a narrativa da pós-modernidade. Estariam, por assim dizer, inscritas na hipermodernidade, de que nos fala Gilles Lipovetsky, na qual uma “cultura hiperindividualista”, desconfiada do político, faz dos direitos humanos o “fundamento último e universal da vida em sociedade”, reconhecendo o individuo como “um referencial absoluto, última bússola moral, jurídica e política de nossos contemporâneos desligados de todas as antigas formas de inclusão coletiva”.
Vale insistir nessa angulação. As passeatas exibem um conjunto de reivindicações individuais flagrantemente subjetivas, mas demandadas em termos coletivos, comunitários: demandas concretas traduzidas e expressas metafórica ou alegoricamente frente a governos e ao Estado, visando à melhora na vida de todos. Talvez seja pouco, mas é revelador e parece expressar um deslocamento no campo de crenças e de valores entre nós. Um deslocamento que não é inteiramente estranho à nossa formação cultural. Na história do nosso país, como é sabido, o “Estado é tudo, mas o indivíduo também é”. Creio que está ai um traço de identidade das manifestações de agora com as anteriormente mencionadas: elas se impõem como uma massa, sem facções, sem partidos, sem divisões, num movimento que estabelece o vínculo direto entre individuo e esfera pública, sem mediações. As manifestações de junho se apresentam assim, em estado bruto, mas evidenciam a potencialidade de que algumas de suas demandas sejam assumidas por movimentos sociais organizados, como já vem acontecendo com metalúrgicos, caminhoneiros, etc. Por outro lado, diferentemente das anteriores, hoje parece não haver um ator político que consiga se assenhorear da condução das manifestações e representar, ainda que momentaneamente, a encarnação da virtude republicana.
Chamar tudo isso de "ativismo autoral" não ajuda a compreender em profundidade o que ocorre, embora esboce parcialmente uma narrativa correta a respeito dessa nova forma de manifestação. Há certamente uma marca pré-politica nela e talvez uma visão reducionista da construção do “bem comum” como uma celebração coletiva que pede um Estado de todos e para todos, mais eficiente, que promova mais qualidade de vida, custando menos aos cidadãos - quase uma “utopia política” que não sabe dizer precisamente qual política deve ser adotada para colocar esse Estado em pé. Trata-se de um “melhorismo” inconteste e rarefeito que não precisou de nenhuma corrente político-partidária com o mesmo nome para poder vir à tona. Ele não é de esquerda nem de direita e menos ainda advém dos extremos desses polos. Por isso, essa animação não nasce nem deve ser enquadrada em nenhuma visão recortada por classes sociais opostas ou mesmo antagônicas. Ela nasce da abstração da Nação que demanda um Estado de Bem-Estar homólogo à catarse das ruas. Note-se que, em certo sentido, já vivenciamos uma experiência similar quando a emergência do “mundo dos interesses” se espraiou pelas camadas populares e impactou integralmente o corpo da sociedade política entre as décadas de 1980 e 1990 do século passado. O que veio depois daquela conjuntura, nós conhecemos. Hoje, o que virá é, até o momento, difícil de divisar.
Assim, o que as ruas exprimem não é um programa ideológico, mas a antecipação dos traços de uma imagem do que já somos e do que queremos ser. Não há uma palavra-de-ordem galvanizadora: o contexto não é jacobino nem bolchevista e tampouco fascista, dispensando, portanto, as condutas e a aura da cultura heroica. Mesmo assim, o cartaz, a voz, o grito, a cantoria, a festa, funcionam como animadores e expressam a expectativa de atendimento integral de cada uma das demandas. É nesse momento que o ruído que apenas ouvíamos do subterrâneo, das entranhas da sociedade em que vivemos, vem à tona nas manifestações. Trata-se de uma espécie de "protestantismo político" hipermoderno, que nasce dos desejos mais profundos de cada indivíduo, assume o vigor das revelações cujo ato de manifestar-se, em si mesmo, lhe basta para “lavar a alma”. Mas tudo é momentâneo, fugaz, e o que se segue é a espera da graça, como em outros tempos. Aqui, a política ainda é persona estranha e desconhecida.
Nesse contexto, o novo reencontra-se com o velho, numa circularidade que demonstra, entre outras coisas, o quanto a modernidade é frágil: o individuo se autonomiza e se potencializa em alta velocidade e em extensão nunca vista, as condições materiais e tecnológicas dão a todos a sensação de uma ruptura do tempo histórico – vive-se uma revolução sem os revolucionários de antão –, um turbilhão de possibilidades se abre em cada momento, e essas parecem estar ao alcance da mão. É por isso que aqui e agora já não estamos mais em 1968: esse não é um mundo próprio para sonhadores. Mas não é difícil reconhecer a necessidade de que a política democrática – essa invenção da moderna sociedade de massas, alicerçada na representação, nas liberdades, na soberania popular e, por fim, em identidades e subjetividades que impetuosamente se expandem – deva e mereça recobrar sentido para, com isso, buscar estabelecer as balizas para o equacionamento de interesses e demandas por meio de reformas pactuadas das instituições do Estado Democrático de Direito. Apesar de todas as dificuldades e dúvidas, resta a expectativa de que a alegria das ruas e o desprendimento dos atores da política democrática, dentro e fora das instituições do Estado, hão de inventar maneiras para promover, em novo patamar, o encontro do país com a modernidade política. A voz das ruas, bem traduzidas, podem enfim anunciar um novo momento da jovem democracia brasileira.
Alberto Aggio, graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (1982), mestre (1990) e doutor (1996) em História Social pela mesma faculdade. Realizou estudos de pós-doutoramento na área de História da América Contemporânea na Universidade de Valencia (Espanha), entre 1997 e 1998. Atualmente, é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Franca.
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