A raça, o gênero, a identidade se tornaram as bases de uma ideologia nascida nos EUA, que pretende substituir o socialismo em crise, diz Pascal Bruckner
O Estado de S. Paulo /Aliás
Vemos hoje, em plano internacional, a
esquerda inteiramente rachada. De uma parte, uma esquerda democrática,
universalista. De outra, a chamada esquerda identitária o udi ver sitária,
inscrita no multiculturalismo, com sua ânsia de divisórias,
pregando “apartheids”e guetificações. E a disputa ideológica entre essas duas
esquerdas está deflagrada.
Areação ao identitarismo cresce em países
da Europa e nos EUA. No Brasil, ao contrário, a discussão não existe. Temos
hoje uma esquerda de costas para o mundo, fugindo dos debates da esquerda
internacional. Oque vigora aqu ié a acomodação, compartidos de esquerda
evitando confrontos internos, ocupados apena sem aumentar o número de seus
militantes, passando ao lar godas questões que possam provocar dissenso.
Raras vezes, causas justas, como as dos
identitários, terão se pervertido tanto pelos descaminhos da ignorância e do
autoritarismo. Caiu-se numa mescla de ceticismo epistêmico, na teoria, e de
delírio persecutório na prática, descambando para o fundamentalismo e o
fascismo. Tudo é conspiração contra os “oprimidos”. O poder está em todo
lugar–a verdade, em nenhum. E não teremos como construir um futuro coletivo com
base na fragmentação e no ne os segregacionismo, que caracterizam o
identitarismo, hoje ideologia dominante no “establishment” acadêmico-midiático
e em parte do ambiente empresarial.
Recentemente, Alejo Schapire observou que esta esquerda multicultural-identitária teve de dar uma tremenda guinada, para jogar fora o antigo ideário marxista e adis posição democrática, afim de celebrara intolerância, o puritanismo, as ditaduras extra ocidentais, o obscurantismo, o neorracismo de um modo geral. Em O Fim da Utopia, Russell Jacoby já assinalava: “Estamos assistindo não apenas à derrota da esquerda, mas à sua conversão e talvez inversão”.
Para Schapire, 1989, ano da queda do Muro
de Berlim e da fátua do aiatolá Khomeini colocando a cabeça de Salman Rushdieap
rê mio,éo marco em que se expõe claramente a fratura entre as duas esquerdas: a
esquerda universalista, emancipatória e antiautoritária – e uma “esquerda
emergente”, disposta a fechar os olhos e aceitar opressões étnicas e sexuais em
sociedades africanas, árabes e asiáticas. Em todo o espectro político, foi essa
vertente a única que tentou justificar o atentado contra o Charlie Hebdo – e
agora aplaude a volta do Taleban.
Com a desintegração da antiga URSS, o comunismo
e o socialismo entraram em parafuso, perdendo seus pontos de apoio. A esquerda
identitária, apostando em qualquer direção contrária ao “imperialismo
ocidental”, adotou então o muçulmano ou o negro como arquétipo do “oprimido”,
sucedâneo do proletariado. Uma aposta no escuro, claro. Como bem lembra
Schapire, se Sartre e Foucault se deixaram fascinar pela revolução no Irã, “os
jovens esquerdistas iranianos que foram seduzidos por aquela revolução, não
viveram para contar sobre ela”.
A própria neoesquerda mergulharia no
fanatismo. Schapire: “O problema é quando a esquerda regressiva se converte em
patrulha moral dedicada a vigiar e punir quem se aparta de seu revisionismo
histórico anacrônico à luz da nova moral em voga, de seu macartismo (cultura do
cancelamento), da novilíngua e seus códigos. É uma nova esquerda obcecada por
raça e sexualidade como prisma privilegiado sobre a realidade (“uma investida
essencialista que reduz as pessoas a suas identidades étnicas e sexuais”) e
disposta a atacar a liberdade de expressão de democratas e universalistas”. A
fazer de tudo para enclausurar a dissidência no vazio e no silêncio.
Em nome da diversidade cultural, o que se
quer impor é a uniformidade ideológica. Instaurou-se assim um ambiente
policialesco no mundo das ideias e do comportamento.
São as ações das milícias
multicultural-identitárias, sejam digitais ou presenciais: polícia da língua,
polícia do sexo, polícia do desejo, polícia das condutas, polícia das artes,
polícia do pensamento.
Nas campanhas para as eleições regionais
francesas, a candidata do Partido Socialista em Île-de-France, uma mulata da
Martinica chamada Audrey Pulvar, defendeu que, se um branco comparece a um
encontro de não brancos sobre a questão racial, tem de se limitar ao papel de
“espectador silencioso”. Parte da esquerda vai ao delírio com essas tiradas,
mas outra parte da mesma esquerda não concorda.
Audrey não tem apoio unânime nem dentro do
seu próprio partido. Plantou-se no terreno da retórica vitimária, anunciando
sua postura favorável ao expediente fascista do “lugar de fala” – e não se deu
muito bem. O assunto foi manchete no Figaro: “O Novo Racialismo Fratura a
Esquerda”. E o jornal trouxe uma entrevista com o filósofo Pascal Bruckner, que
acaba de publicar Un Coupable Presque Parfait – La Construction du Bouc
Émissaire Blanc. E Bruckner entrou em cena se colocando em polo oposto ao de
Audrey Purval e seus identitários. Título da entrevista: “Um Antirracismo
Enlouquecido que Reproduz o que Pensa Combater”.
Para ele, Audrey se plantou ao campo dos
racialistas celerados, “sintoma de um fenômeno mais amplo, ao fim do qual
poderá aparecer uma justificação do apartheid em nome do antirracismo”. E
Bruckner sabe onde bater. Lembra que, no século 20, as organizações
antirracistas cultivavam um ideal universalista e combatiam toda e qualquer
forma de segregação, ao passo que as novas associações étnicas se guiam por uma
ideia fixa, uma tremenda obsessão, que é a de “denunciar os culpados” – os
homens brancos e as mulheres brancas. “Desse ponto de vista, nascer branco é
nascer já com uma tremenda folha corrida e nascer não branco é nascer com um
passaporte de eterna vítima”, diz Bruckner.
No primeiro caso, a pessoa é culpada pelo
simples fato de existir – no segundo, pode obter vantagens eternas apenas em
consequência do seu estatuto de vítima. Trata-se de um neorracismo disfarçado
de antirracismo. Claro: a luta contra o racismo não deve ser confundida com uma
acusação permanente contra o contingente branco da população – agir assim é
promover um novo racismo em nome do antirracismo.
Este é um grande problema da esquerda hoje.
Bruckner concorda com os analistas e observadores que afirmam que a esquerda se
perdeu depois do colapso da antiga União Soviética e da queda do Muro de
Berlim. “A raça, o gênero, a identidade se tornaram as bases de uma ideologia
nascida nos Estados Unidos, que pretende substituir o socialismo em crise”.
Para quem acredita que tem nas mãos a
maquete da sociedade perfeita e o destino futuro da humanidade, a discussão
política perde o sentido. Torna-se uma pedra no caminho da felicidade da
espécie humana. Daí que os fiéis de qualquer religião política tratem de
expulsar do palco qualquer crítico de seus dogmas. Quando não conseguem expelir
os recalcitrantes, investem com tudo para desqualificá-los, através de variados
expedientes.
Um desses expedientes de desqualificação do
adversário é tratá-lo como racista e/ou fascista. Com isso, desincumbemse de
discutir os argumentos dissidentes e ainda procuram intimidar os críticos. O recurso
é empregado com alta frequência tanto por militantes racialistas neonegros,
quanto por militantes muçulmanos na Europa, como o ex-radical islâmico Maajid
Nawaz nos ensinou. Outro golpe baixo está numa acusação autoritária que se
pretende virtuosa: “ao nos criticar, faz o jogo da direita”. Quem quer se
escudar atrás disso, está a exigir que sejamos cúmplices de qualquer crime
cometido “em nome do bem”.
Seria muito mais produtivo se a esquerda
brasileira, hoje, se preocupasse com coisas mais sérias. Com seu
provincianismo, por exemplo. Com a necessidade de participar das discussões
ideológicas mundiais da esquerda. Porque o que vemos aqui, em variados graus de
agressividade e esperteza, é o afã de neutralizar divergências ideológicas e
uma militância que prima pela ignorância (e a rima, aqui, nada tem de casual).
Militância sectária tão perdida, tão destrambelhada, que ainda vai acusar o
arco íris de racismo, porque ele não aceita preto no pedaço de céu onde brilha.
*Antonio Risério é poeta e antropólogo, autor de, entre outros, ‘A utopia’
Um comentário:
Além de raça, gênero e identidade, também o tal de "meio" ambiente faz parte desse mix que se esquece da luta de classes.
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