Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O país que somos e conhecemos resulta em
boa parte da mediação política, econômica e cultural inglesa. Não raro da
cópia, mais do que da invenção
Na mesma Abadia de Westminster, em Londres,
em que ocorrerá a cerimônia religiosa do funeral da rainha Elizabeth II, está
sepultado o marquês do Maranhão, Lord Thomas Cochrane, que, a convite de Dom
Pedro I, em 1823, foi o primeiro almirante da Marinha Brasileira. Nessa
condição participou da luta pela independência do Brasil na Bahia, em
Pernambuco, no Pará e no Maranhão. Era um odiado mercenário escocês.
A essa mera coincidência pode-se agregar
outra: o presidente Bolsonaro anunciou que comparecerá ao funeral da rainha,
cujo réquiem será celebrado pelo arcebispo da Cantuária naquela abadia.
Essas coincidências expressam o lugar que a
Inglaterra tem tido no mundo desde a Revolução Industrial, que lá nasceu. E
expressam, também, o lugar decorrente do Brasil desde o nascimento da pátria.
Até desde antes do século XVII, quando Portugal celebrou uma aliança com aquele
país através do casamento de dona Catarina, filha de Dom João IV, com o rei
Charles II, quando da restauração do trono após o intervalo republicano de
Cromwell e do Parlamento.
O Brasil Colônia teve sua parte nas mudanças que ocorreram lá e cá. O ouro brasileiro, de Cuiabá, de Goiás, de Minas Gerais e até do Jaraguá, em São Paulo, arrecadado com a cobrança do quinto real, ia para Portugal e acabava na Inglaterra.
Nessa linha de dependência e de
desbloqueios, na Inglaterra as transformações econômicas serão mais rápidas do
que em Portugal e em sua colônia, o Brasil. Em 2002, quando fiz uma conferência
no Museu Ashmolean, na Universidade de Oxford, visitei uma exposição sobre o
Brasil que comemorava o quinto centenário do nosso descobrimento.
Um dos objetos expostos era uma pesada moeda
inglesa feita com ouro procedente de Minas Gerais, no século XVIII. As
diferentes composições do ouro permitem identificar os lugares de sua origem.
No Brasil, as transformações secundárias
decorrentes dessa aliança foram mais lentas ainda. O capitalismo precisa da
desigualdade do desenvolvimento econômico entre as regiões para incrementar o
lucro extraordinário que pode ter além da taxa média de lucro. Mas precisa
removê-la quando ela bloqueia sua expansão ao não integrar os que foram ficando
à margem do seu desenvolvimento. Essa é uma de suas contradições fundamentais.
É nesse sentido que se torna impossível
explicar a nossa independência sem a intervenção da Inglaterra. Ela começou a
nascer num projeto inglês de reordenação das relações econômicas, políticas e
até mesmo sociais decorrentes da mundialização do capital e do poder.
Já estava prevista, em 1805, nos Dropmore
Papers, dois anos antes da decisão da vinda da família real, que estão na
Biblioteca Britânica, em Londres. Previa o traslado do príncipe regente de
Portugal, Dom João, e sua mulher, para o Brasil em navios ingleses, para, com
apoio de força armada inglesa, proclamar a independência das colônias
portuguesa e espanholas e integrá-las na economia inglesa.
Foi a Inglaterra que impôs ao Brasil o fim
do tráfico negreiro, em 1826, assegurando-se o direito de abordagem dos navios
negreiros, a libertação dos escravos em colônias inglesas e o confisco punitivo
das embarcações.
O Brasil que somos e conhecemos resulta em
boa parte da mediação política, econômica e cultural inglesa. Não raro da
cópia, mais do que da invenção. O faz de conta tem uma função crescente em
nosso ajuste fictício ao mundo moderno. A política e o poder também foram
tomados por ele, para inglês ver.
Numa das vezes em que morei na Inglaterra,
em Cambridge, vi na TV uma interessante e rara entrevista da rainha Elizabeth
sobre seu cotidiano. Numa das perguntas, o entrevistador perguntou-lhe como era
seu emprego, seu “job”.
Ela ficou pensativa e disse-lhe mais ou
menos o seguinte: “Não é ‘job’; é um destino. Se fosse ‘job’, no fim do dia, eu
poderia fazer como todos, ir aonde quisesse, dedicar-me a assuntos pessoais”.
Como rainha, não podia fazer isso. Estava a serviço do trono as 24 horas do
dia, para toda a vida. A rainha era a pessoa do poder, personificação do poder
simbólico do Reino Unido, sujeito do poder.
Os governantes não monarcas de certo modo
têm obrigações parecidas, mas não como destino, quase sempre sujeitos a
mandatos curtos e temporários. O daqui representa não só uma deturpação da
regra, mas a transgressão da instituição do mandato.
O presidente apoderou-se do poder. Ele age
claramente como se a eleição tivesse feito dele senhor do poder, como se o
poder lhe tivesse sido adjudicado. Mais que isso, a visibilidade cotidiana de
suas atividades não o revelam um homem a serviço do poder, mas de um homem
servindo-se do poder. Ele simboliza o quanto nos separamos das lições da
Inglaterra.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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