Editoriais / Opiniões
Instituições precisam barrar onda de
violência política
Valor Econômico
Retórica incendiária do presidente cria
ambiente favorável a confrontos
A violência política não é novidade no
Brasil, mas com a ascensão à Presidência da República de Jair Bolsonaro deu um
salto em escala. Ela está se generalizando, após deixar os rincões dos velhos
coronéis para as cidades e, nelas, é abertamente propagada nas redes sociais.
Há pouca coisa mais desmoralizante dos valores republicanos e da democracia de
que o governo Bolsonaro abrigar no Palácio do Planalto funcionários pagos com
dinheiro dos contribuintes em um autodenominado “gabinete do ódio”.
O principal propagador de ideias que tem em
seu germe a violência contra adversários políticos é o presidente, que detesta
jornalistas que o questionam, é misógino e não tem a democracia como seu regime
favorito. O episódio mais recente de agressão e constrangimento à imprensa
ocorreu durante um debate entre os candidatos a governador do Estado de São
Paulo, na terça-feira. O deputado Douglas Garcia (Republicanos-SP), que apoia o
bolsonarista Tarcísio de Freitas, em segundo lugar nas pesquisas, arremeteu, celular
em punho, contra a jornalista Vera Magalhães, utilizando contra ela as mesmas
palavras que Bolsonaro já dissera em debate na TV Bandeirantes, de que era “uma
vergonha para o jornalismo”.
A retórica de Bolsonaro, seus filhos e acólitos é beligerante, incompatível com a que deveria usar alguém que ocupa um cargo cujo dever é representar os brasileiros e não apenas os de sua gangue de maus modos. Na atual campanha, Bolsonaro já pregou “extirpar essa raça”, referindo-se aos petistas, em um eco mais brando do que o de sua conclamação no Acre na campanha de 2018: “Vamos fuzilar a petralhada”.
Bolsonaro não se preocupa com as
consequências de suas incitações contra adversários políticos, além de fornecer
os meios pelos quais a violência das palavras se traduz em fatos. É cultor das
armas, adora o bordão “povo armado não será escravizado” e em seu governo tem
feito tudo que é possível para liberar a venda de armamento. Um dia depois que
um eleitor de Lula foi esfaqueado e morto por um admirador do presidente em
Mato Grosso, Bolsonaro disse que “varreremos para a lata de lixo da história”
esse partido (PT), que “só gera desgraça para o povo brasileiro”.
Após a morte de dois eleitores do PT por
bolsonaristas, espalha-se aos poucos um nefasto clima de medo e de desestímulo
ao debate político aberto em pleno período eleitoral. Pesquisa divulgada ontem,
realizada pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, em parceria com o
Fórum de Segurança Pública, mostra que 67,5% dos entrevistados temem hoje
agressão em razão de suas posições políticas ou partidárias. E 3,2% da amostra
(de 2100 pessoas) afirmaram que foram vítimas de ameaças.
As redes sociais, habilmente utilizadas por
bolsonaristas e outras correntes que desprezam a democracia, tornaram-se
máquina preferencial de intimidação política. Há de tudo, até uma socialite
fazendeira pregando, exaltada, que se “demita sem dó” funcionários que votem no
PT. Já o deputado Eduardo Bolsonaro convocou em seu perfil no Twitter as
pessoas que possuem armas a se tornarem “voluntários” de Bolsonaro (Congresso
em Foco, 5 de setembro).
Se a intimidação sempre foi uma arma usada
pelos governantes para permanecerem no poder, o contexto eleitoral atual lhe dá
um significado potencialmente explosivo. A pregação e os atos pela liberação de
armas pelo presidente é simultânea à campanha de descrédito contra as urnas
eletrônicas e à divulgação da crença de que o presidente Bolsonaro só perderá
as eleições se tiver sido roubado. O tumulto serve a esses desígnios, como
serviram ao presidente Donald Trump para incitar o inacreditável ataque ao
Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
A radicalização política está no ar e levou
dez Estados a pedirem a presença das Forças Armadas para garantirem que o dia
da votação transcorra sem violência. Ela não foi o único motivo para a demanda:
o crime organizado é uma ameaça no Rio e outros pontos do país (O Globo, 30 de
agosto). O TSE proibiu o porte de armas no perímetro de 100 m das seções
eleitorais.
Rivais políticos deveriam evitar as provocações bolsonaristas. Lula qualificou de reunião da Ku Klux Khan as enormes manifestações em apoio a Bolsonaro no bicentenário da Independência. As instituições de Estado, como o Judiciário e as Forças Armadas têm o dever de assegurar que as condições plenas da democracia possam ser exercidas livremente e sem risco.
Pesquisas eleitorais deveriam levar em
conta a abstenção
O Globo
Comparecimento menor entre mais pobres e
menos escolarizados não deveria ser desprezado nos cálculos
Apesar de o voto no Brasil ser um dever
cívico obrigatório, os índices de abstenção têm sido crescentes nas últimas
eleições gerais (em média 19% no primeiro turno e 21% no segundo). Um em cada cinco
eleitores registrados não tem votado. Várias são as causas: viagens,
desinteresse ou desilusão com a política, problemas familiares ou burocráticos
e, acima de tudo, as sanções ridículas para quem deixa de comparecer. A
justificativa para a ausência pode ser feita por aplicativo e, se esquecer ou
não fizer, o eleitor tem no máximo de pagar uma multa irrisória — R$ 3,51 por
turno — e ficará impedido de emitir passaporte ou prestar concurso público.
Nada de dramático.
Na prática, é como se o voto não fosse obrigatório. Isso gera uma distorção cujas consequências vêm se tornando mais relevantes com o passar do tempo. Como mostrou reportagem do GLOBO, as ausências se concentram nos grupos sociais menos escolarizados e de menor renda. Analfabetos foram 4,4% do eleitorado, mas 11,1% dos ausentes em 2018. Eleitores com superior completo eram 9,2% do total, mas apenas 5,5% dos faltantes. A abstenção passou de 40% nas cidades remotas do Amazonas ou de Minas Gerais e alcançou 22% no Sudeste, o maior percentual entre todas as regiões. É justamente a que concentra mais eleitores e será decisiva nesta eleição presidencial.
Apesar de ser um problema com uma medida
precisa, fornecida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
a abstenção não é levada em conta pelos institutos que realizam pesquisas de
intenção de voto. A campanha do presidente Jair
Bolsonaro tem usado os índices de abstenção do passado para
alardear que a distância entre ele e o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva será menor na urna do que sugerem as pesquisas,
pois o público que mais se abstém — mais pobre e menos escolarizado — concentra
mais eleitores de Lula que de Bolsonaro. É um argumento na essência correto,
embora seja difícil medir essa discrepância e saber se ela será mesmo decisiva
como supõe a campanha bolsonarista (Lula pode obter menos votos do que sugerem
os números, mas ganhar ainda assim).
Ao deixar de levar em conta as projeções de
abstenção no cálculo dos percentuais de voto, os institutos supõem que ela se distribui
uniformemente por todos os segmentos do eleitorado. Pode ser que esse
equilíbrio corresponda à verdade no passado, mas não há garantia de que sempre
se repita. De acordo com o estatístico Raphael Nishimura, diretor de amostragem
da Universidade de Michigan, nos países onde o voto é facultativo, as pesquisas
costumam avaliar a propensão de cada tipo de eleitor ir votar para obter níveis
de intenção de voto mais confiáveis (nos Estados Unidos, há pesquisas apenas
com “eleitores prováveis”). E nem isso garante o resultado. O exemplo mais
citado é a eleição de Donald Trump em 2016, quando os institutos subestimaram o
voto trumpista entre eleitores sem formação universitária no Meio-Oeste do
país. Foi esse o principal motivo para as projeções errarem o resultado da
eleição naquele ano.
Não há nenhuma evidência de que algo
semelhante possa acontecer no Brasil, com a abstenção em massa dos eleitores
mais pobres e menos escolarizados favorecendo Bolsonaro. Mas o exemplo
americano mostra por que, para retratarem a realidade eleitoral de modo mais
fiel, é essencial que os institutos passem a levar em conta a abstenção em seus
cálculos.
Inflação faz peso argentino perder valor
até para as figurinhas da Copa
O Globo
Os próprios distribuidores oficiais
preferem vender os cromos no mercado paralelo para lucrar mais
À primeira vista, a decisão da Secretaria
de Comércio da Argentina de
convocar representantes da Panini, editora responsável pela publicação e venda
do álbum da Copa do Mundo, para discutir a
escassez de figurinhas à venda nos minimercados de Buenos Aires
e noutras cidades argentinas parece apenas inusitada ou pitoresca. Na
realidade, trata-se de um exemplo pedagógico de até onde pode levar o populismo
econômico que atrasa há décadas o desenvolvimento argentino.
Os cartazes dizendo “no hay figuritas” e os
memes que se espalham pelas redes sociais são sinal de um fenômeno conhecido
dos economistas: o descasamento entre oferta e demanda. Quando isso acontece
numa economia normal, o preço do produto sobe até alcançar um ponto de
equilíbrio em que a escassez desaparece. Mas não numa economia em espiral
inflacionária, cujo governo recorre ao expediente populista do tabelamento para
fingir que está controlando os preços.
A própria Panini vende cada pacote de
figurinhas por 120 pesos aos distribuidores e tabelou o preço ao consumidor em
150 pesos. Com a explosão na procura neste curto período que antecede a Copa,
porém, elas passaram a valer muito mais no mercado paralelo. Num país em que a
expectativa de inflação até o final do ano chega a 100%, surgiu um incentivo
natural para usá-las como reserva de valor — é como se fossem notas em moeda
forte. Resultado: os próprios distribuidores passam a revendê-las no mercado
paralelo, de modo a obter um lucro maior.
A inflação descontrolada é uma marca
clássica dos governos populistas que volta e meia irrompem na Argentina — nos
últimos 12 meses, os preços subiram 78,5%, maior nível desde 1991. As reservas
internacionais argentinas estão em nível baixíssimo, o dólar não para de subir,
o histórico de calotes na dívida externa é extenso, a crise econômica parece
nunca ter fim, e a pobreza só aumenta.
No começo do século passado, a Argentina
era mais rica que países como França ou Alemanha. A arquitetura suntuosa de
Buenos Aires é um retrato dessa época. De lá para cá, mesmo com uma população
educada e recursos naturais abundantes, entrou numa espiral descendente por
insistir em viver acima das suas possibilidades.
Vigora no país uma infinidade de subsídios artificiais, em particular para setores como energia e transportes. Como a arrecadação é insuficiente para bancar gastos explosivos, o governo costuma recorrer ao subterfúgio de imprimir dinheiro ou a manobras monetárias equivalentes, origem da inflação. O discurso de quem está no poder é recheado de palavras bonitas sobre a preocupação com os mais pobres. Na realidade, esse ciclo vicioso corrói o dinheiro no bolso dos argentinos — que hoje perde valor até diante das figurinhas da Copa.
Só o voto é secreto
Folha de S. Paulo
Concessão mínima a militar pode pacificar
cenário, mas deve ser feita às claras
Por uma feliz coincidência, os ministros
que conduzirão as presidências do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, e do
Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, durante as votações nacionais
de outubro partilham o hábito de falar pouco fora dos autos judiciais.
O costume, adotado por colegas da dupla, de
opinar livremente sobre temas que não estão em julgamento insere-se nos
arcaísmos que a moderna República deveria superar —assim como as reuniões sem
registros com interlocutores escolhidos para tratar de assuntos de notório
interesse público.
Não há atas que revelem o teor dos
dois encontros ocorridos
entre Moraes e o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira,
para tratar da fiscalização das urnas.
Não por acaso, o TSE abriu concessões às
demandas vocalizadas pelo ministro militar e seu chefe no Planalto após as
reuniões. A corte incorporou
a biometria ao teste habitual de integridade dos tradicionais
dispositivos eletrônicos.
Trata-se do exercício de realizar no dia do
pleito um escrutínio simulado e documentado com uma fração das urnas escolhida
por sorteio para verificar se os resultados do aparelho batem com os de uma
votação em papel feita na ocasião.
Escapa aos especialistas não militares da
comissão de transparência do TSE a vantagem do teste com a urna acessada por
impressão digital, que fica sujeito à recusa do eleitor real de fazer a
simulação na hora de votar. Ainda assim, a corte decidiu realizar a checagem
com a biometria em 56 urnas, das 641 a ser verificadas.
Além disso, as Forças Armadas pretendem
conferir por sua conta se o boletim físico de cerca de 380 urnas equivale ao
resultado publicado no site da Justiça Eleitoral.
Nota-se pelas ninharias das concessões —um
punhado de urnas sem valor amostral no universo de mais de 500 mil aparelhos
distribuídos pelo país de dimensão continental— que os militares brasileiros se
entregam na melhor das hipóteses a um jogo de cena inócuo apenas para
satisfazer as ignorâncias do presidente da República.
No pior e mais improvável dos cenários, as
Forças participariam de nova trama golpista numa história repleta delas, o que
jogaria por terra quase 40 anos de comportamento profissional na democracia.
A disposição de Alexandre de Moraes de
ceder em aspectos perfunctórios às sugestões dos militares pode ajudar a
pacificar a reta final das eleições. Não há razão, porém, para fazê-lo com
reuniões sem registro, no modo mais típico de regimes que o presidente Jair
Bolsonaro (PL) gosta de enaltecer.
Quanto aos militares, que o Brasil tenha
aprendido a lição de que jamais deverão ser convidados novamente a opinar sobre
eleições.
Orçamento inviável
Folha de S. Paulo
Farra eleitoreira de Bolsonaro sacrifica
programas, como eleitor já pode notar
É sinal de maturidade institucional impedir
que os recursos do Estado sejam postos a serviço de projetos políticos de
ocasião. Infelizmente, mesmo com grandes avanços nas últimas décadas, o Brasil
ainda está distante dessa realidade.
O espaço para uso de dinheiro público para
fins eleitoreiros permanece —e ganhou ímpeto extra no governo Jair Bolsonaro
(PL). Evidências sobram no Orçamento deste ano e na proposta enviada ao
Congresso para 2023.
Quanto aos gastos imediatos, o Executivo
acabou de liberar por meio de medidas provisórias R$ 5,6 bilhões em emendas
parlamentares, dos quais R$ 3,5
bilhões relacionados a emendas de relator comandadas por
lideranças do centrão.
O objetivo é turbinar gastos em redutos
eleitorais às vésperas da votação. Foi revertida, assim, parte do
contingenciamento anunciado em julho, que chegava a R$ 6,3 bilhões. A
movimentação se deu fora das revisões bimestrais regulares da programação orçamentária.
Pior, a manobra só foi possível porque
outros R$ 5,6 bilhões em despesas foram jogados para o próximo ano, inclusive
com adiamento de aportes para ciência e cultura.
O quadro fica ainda pior em 2023. Como
resultado das previsões irrealistas que balizam a peça orçamentária e da
inclusão de R$ 19 bilhões para as famigeradas emendas de relator, o governo
precisou sacrificar outros programas.
Em algumas ações da área de saúde, como a
Farmácia Popular e o Mais Médicos (rebatizado de Médicos para o Brasil), a
redução de verbas passa de 50%. Isso para nem mencionar a insuficiência de
recursos para manter o Auxílio Brasil de R$ 600 mensais.
Chega-se ao paradoxo de que o cumprimento
do gasto mínimo em saúde determinado pela Constituição dependerá das emendas de
relator, que precisarão ser parcialmente direcionadas para tal fim.
O descalabro ocorre porque a prioridade do
governo é atender sua base política, não a boa prática de gestão, depois de
sucessivos atropelos casuísticos das regras fiscais.
Diante dos protestos, agora Bolsonaro tenta recuar
e dizer que não haverá perdas. Será inevitável uma ampla revisão do
Orçamento de 2023, com o complicador que será muito difícil fazê-lo de forma
criteriosa ainda neste ano.
Eis um trabalho que exigirá coordenação do vencedor das eleições com o Congresso num prazo muito curto, um testemunho do custo da desorganização crescente.
O darwinismo social de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
O corte drástico do Programa Farmácia Popular, antes de ser um ‘desencaixe’ acidental da democracia, na definição de Paulo Guedes, expressa a essência do governo bolsonarista
O governo Jair Bolsonaro tem facilitado a
vida dos candidatos que disputam com ele a Presidência da República. Para
conquistar votos, as equipes de campanha não precisam apelar a um marketing
agressivo ou às fake news que levaram o presidente ao Palácio do
Planalto em 2018. Basta ler a proposta que sua administração elaborou para o
Orçamento de 2023. Não há peça que deponha mais contra sua gestão e que exponha
o tamanho das contradições de suas promessas eleitoreiras do que o documento
formal enviado ao Congresso no fim de agosto. Na proposta, o Executivo já havia
sido incapaz de garantir a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600, tema central
da campanha, e teve que fixá-lo em R$ 400, tudo para garantir a reserva de R$
19,4 bilhões para o orçamento secreto. Não foi suficiente. Agora, como o Estadão revelou,
o governo achou por bem comprometer o bem-sucedido programa de distribuição de
medicamentos Farmácia Popular e cortar 60% de sua verba.
Diante da péssima repercussão que a notícia
teve, o governo apelou à repisada estratégia de buscar outro culpado – qualquer
um – para assumir a responsabilidade pela tesourada no programa. O ministro da
Economia, Paulo Guedes, elencou o rol de inimigos que costuma mencionar nesses
momentos em que precisa justificar o injustificável, como o teto de gastos –
que, curiosamente, funciona para toda e qualquer política pública, menos para
conter o avanço das emendas de relator. Sem citar o Centrão, grupo formado
pelos verdadeiros donos das emendas de relator, o ministro foi audacioso:
culpou até a democracia e prometeu recompor os recursos do Farmácia Popular por
meio de uma mensagem presidencial a ser enviada, convenientemente, um dia
depois da eleição. “Essa mensagem presidencial vai corrigir esses desencaixes
que a democracia às vezes acidentalmente permite”, disse.
Não é a primeira vez que Guedes expõe uma
concepção distorcida sobre o regime democrático. Isto posto, o corte do
Programa Farmácia Popular, sob vários aspectos, é um episódio revelador. Deixa
claro que, para o ministro da Economia, a reeleição de Bolsonaro precisa ser
garantida custe o que custar. Do contrário, ele não teria considerado razoável
priorizar a distribuição de verbas paroquiais bilionárias a aliados em
detrimento de uma política pública que garanta acesso gratuito a medicamentos
contra doenças crônicas como hipertensão, asma e diabetes, cujo tratamento tem
caráter preventivo e não pode ser interrompido. Afinal, a ideia de reduzir
linearmente as despesas discricionárias da Saúde em 60%, de forma a preservar
as emendas de relator, partiu do próprio Ministério da Economia.
Como mostrou o Estadão, os técnicos do
Ministério da Saúde alertaram a equipe de Guedes de que a redução dos recursos
do Farmácia Popular de R$ 2,04 bilhões para R$ 804 milhões tornaria o programa
inviável no ano que vem. Como alternativa, eles defenderam, sem sucesso, um
corte nas rubricas de atenção primária e de média e alta complexidades do
Sistema Único de Saúde (SUS). Se Guedes apelou para o contorcionismo
argumentativo, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, recorreu à mentira. Para
blindar Bolsonaro, ele disse que o orçamento secreto tinha execução
obrigatória, quando até as pedras sabem que esse tipo de emenda parlamentar não
é impositiva e poderia ser cortada pelo governo. Com a mesma desfaçatez de quem
anuiu com a redução de 60% das verbas do Farmácia Popular, Queiroga prometeu
não só revê-lo, como ampliar os recursos destinados ao programa. Nada disso
está no Orçamento de 2023 enviado pelo governo ao Congresso.
Nisso tudo, o que chama a atenção é o
silêncio de Bolsonaro. Pudera: não há o que dizer ante o fato incontestável de
que o corte do Farmácia Popular, antes de ser um “desencaixe” acidental da
democracia, na inacreditável definição de Paulo Guedes, expressa a essência do
governo bolsonarista. A pouco mais de duas semanas das eleições, Bolsonaro está
colhendo os frutos que plantou durante três anos e meio de ergofobia crônica e
de orgulhoso darwinismo social. Só ele e seus ministros não sabiam a relevância
que uma boa política pública pode ter no bem-estar da população.
O fantástico país do sr. Aras
O Estado de S. Paulo
Corretamente, a nova presidente do STF, Rosa Weber, disse que vivemos tempos ‘perturbadores’; para o PGR, porém, tudo vai bem; é esse alheamento que desprotege a Constituição
Na cerimônia de posse da nova presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, na segunda-feira passada,
o País assistiu a uma das situações mais peculiares – e preocupantes – do atual
cenário institucional brasileiro: o alheamento da Procuradoria-Geral da
República (PGR) em relação à realidade. Em seu discurso, o procurador-geral da
República, Augusto Aras, disse que não vê nada de anormal nos tempos atuais.
Tudo estaria absolutamente tranquilo e em ordem.
Em seu discurso de posse, a nova presidente
do STF reconheceu que “vivemos tempos particularmente difíceis da vida
institucional do País, tempos verdadeiramente perturbadores, de maniqueísmos
indesejáveis”. Ainda que contundente, a afirmação de Rosa Weber é simples fruto
da constatação dos fatos. Na ordem constitucional de 1988, houve muitas
disputas e embates políticos. Mas nunca houve tantos ataques – verdadeira
campanha orquestrada – contra o Supremo. Nunca houve um presidente da República
desacreditando e afrontando de forma deliberada e continuada o sistema
eleitoral brasileiro. Nunca houve tamanha tentativa de envolver as Forças
Armadas em questões político-eleitorais e, muito menos, na apuração dos votos.
Nunca houve tão intenso ataque contra as regras do jogo eleitoral, valendo-se da
própria Constituição para remover proteções básicas do regime democrático.
Nunca houve tanta desinformação por parte do governo federal em assuntos de
saúde pública. Nunca houve tantos ataques contra a imprensa e contra a
transparência dos atos públicos. Nunca houve tão marcante manipulação da
religião para fins político-eleitorais. Nunca houve tão deliberado
aparelhamento das festas cívicas – e do dinheiro público – para fazer campanha
eleitoral.
No entanto, como se não bastasse ignorar
essas agressões e ameaças, Augusto Aras está radiante com a situação do País.
“O quanto para nós, como brasileiros, é gratificante saber que tivemos um 7 de
Setembro pacífico e ordeiro, sem violência”, disse o procurador-geral da
República. Ora, é muita miopia ver nos acontecimentos do passado 7 de Setembro
apenas ausência de violência. Houve um descarado e ilegal uso eleitoral da data
por parte do presidente Jair Bolsonaro – tão acintoso que nem o presidente da
Câmara, Arthur Lira, fiel aliado do Palácio do Planalto, compareceu aos
festejos do feriado. E isso sem falar na tensão que Jair Bolsonaro e os
bolsonaristas criaram sobre a data do Bicentenário da Independência, o que
exigiu medidas extraordinárias de segurança em Brasília e o cancelamento do
tradicional desfile cívico-militar do 7 de Setembro no centro da cidade do Rio
de Janeiro.
Para que o Bicentenário da Independência
pudesse ser minimamente comemorado, o Congresso promoveu uma sessão no dia 8,
qualificada pelo sr. Aras como uma “bela festa, (...) com palavras de
integração e gratidão do presidente de Portugal”. O procurador-geral da
República não notou, no entanto, que o chefe de Estado brasileiro, Jair
Bolsonaro, não compareceu ao ato. É isso o que o chefe da PGR chama de
normalidade?
Para evitar qualquer mal-entendido, o sr.
Aras explicitou, no final de seu discurso, que sua irrestrita compreensão em
relação às ações e omissões do Palácio do Planalto não se estende aos ministros
do Supremo. Referindo-se à fala da ministra Cármen Lúcia – entre outros pontos,
a ministra lembrou que “o momento cobra decoro, a República demanda compostura”
–, o procurador-geral da República citou o hino da Bahia, que “tem uma frase
que alcança todos os Poderes e todas as instituições: (...) nunca mais o
despotismo regerá nossas ações”. Pelo visto, a preocupação do sr. Aras é com o
suposto despotismo de quem protege a Constituição.
Bem se sabe como as preocupações seletivas
destroem a República, cujo princípio fundante é a igualdade de todos perante a
lei. Se o sr. Aras, na condição de procurador-geral da República, alheia-se da
realidade, não vendo nada ou vendo apenas o que deseja ver, a ordem jurídica
fica desprotegida. Não cabe ignorar os ataques contra a Constituição nem
criticar quem a defende.
Sinalizador do BC confirma retomada
O Estado de S. Paulo
IBC-Br melhora expectativas de crescimento, embora indústria e consumo apontem retomada incompleta
Apostas em crescimento na faixa de 2,5% a
3%, neste ano, ganham sustentação com os novos dados do Índice
de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), valorizado por
investidores e analistas principalmente como sinalizador de tendência dos
negócios. O indicador cresceu 1,17% de junho para julho e atingiu o maior nível
desde dezembro de 2014, na série livre de efeitos sazonais. No trimestre móvel
encerrado em julho a atividade foi 0,89% superior à do período de fevereiro a
abril. O balanço dos primeiros sete meses mostrou um ganho de 2,52% na
comparação com igual período de 2021. A expansão acumulada em 12 meses chegou a
2,09%.
Recebidos com manifestações de otimismo, os
novos números poderão justificar projeções mais altas de crescimento econômico
em 2022, especialmente se a tendência for confirmada, na próxima semana, pelo
Monitor do PIB-FGV. O Monitor é uma detalhada prévia do Produto Interno Bruto
(PIB) elaborada mensalmente pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
O Ministério da Economia já havia revisto
de 2% para 2,70% o crescimento do PIB estimado para este ano. Para 2023 foi
mantida a taxa de 2,50%. As estimativas incluídas no último boletim Focus,
divulgado pelo BC, são menos otimistas, com a mediana das projeções apontando
expansão de 2,39% em 2022 e de apenas 0,50% no próximo ano. Mas várias
instituições indicaram, na quinta-feira, logo depois de conhecido o novo
IBC-Br, a disposição de elevar suas previsões.
O indicador do BC é publicado apenas com
números correspondentes a períodos, sem referência à evolução da atividade nos
grandes setores. Mas o desempenho registrado nos últimos meses deve ser
explicável principalmente pela forte reativação do setor de serviços, com
crescimento de 1,1% em julho, terceira alta mensal consecutiva, e avanço de
9,6% em 12 meses. Com essa expansão, o volume de serviços produzidos atingiu
patamar 8,9% superior ao de fevereiro de 2020, no período pré-pandemia. O
resultado de julho é explicável principalmente pelo avanço do setor de
transportes, com destaque para o de cargas de produtos agropecuários.
Os números do IBC-Br ficam menos brilhantes
quando se leva em conta o desempenho da indústria. A produção industrial
cresceu 0,6% em julho, mas foi 0,5% inferior à de um ano antes, encolheu 3% em
12 meses e ainda ficou 0,8% abaixo do patamar pré-pandemia. O governo tem
proporcionado alguns estímulos ao setor, mas continua longe de propor uma nova
política de recuperação industrial, de modernização, de integração global e de
crescimento durável. Essa omissão se harmoniza com a devastação das políticas
educacional e de apoio à ciência e à tecnologia.
Apesar de alguma reativação econômica e da
redução do desemprego, as condições de trabalho e renda permanecem ruins, são
agravadas pela inflação, e isso se reflete no consumo familiar. Em julho, as
vendas no varejo fundamental diminuíram 0,8% e foram 5,2% menores que as de um
ano antes. Em 12 meses encolheram 1,8%, confirmando o limitado alcance social
da recuperação da economia.
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