terça-feira, 8 de novembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Lula precisa dar prioridade a resgate da Educação

O Globo

Área devastada durante os quatro anos de governo Bolsonaro é a mais crítica para o futuro do Brasil

Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Educação foi visto como um palco essencial na “guerra cultural” contra a esquerda. Quatro anos e cinco ministros depois — Ricardo Vélez Rodrigues, Abraham Weintraub, Carlos Alberto Decotelli, Milton Ribeiro e Victor Godoy —, o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva terá de se desdobrar para recuperar o atraso gerado pela inépcia na gestão da pasta mais importante para o futuro do Brasil.

Não faltaram evidências de corrupção. As suspeitas derrubaram o ex-ministro Milton Ribeiro, acusado de pedir, em nome de Bolsonaro, ajuda para pastores lobistas que destinavam recursos do MEC a prefeituras mediante propina. Mas o problema mais grave foi o apagão educacional durante a pandemia. O MEC pouco — se algo — fez para facilitar o acesso dos alunos de baixa renda ao ensino à distância.

O próximo ministro e sua equipe terão, em razão disso, de fazer um trabalho de oito anos em quatro, estima Mozart Ramos, do Conselho Nacional de Educação (CNE). Haverá, de acordo com Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos pela Educação, três frentes de trabalho para o novo MEC: restabelecer a estrutura federativa na Educação, em que União, estados e municípios atuam de forma colaborativa; obter um orçamento efetivo para o ministério (a proposta orçamentária de 2023 corta 96% das despesas com a educação infantil e 95% dos recursos destinados a projetos de melhoria da qualidade do ensino); e resgatar os programas educacionais do MEC, esvaziados pelo aparelhamento ideológico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Enem e pelos demais exames de avaliação do ensino.

Na questão orçamentária, o corte eleitoreiro no ICMS sobre combustíveis drenou R$ 20 bilhões dos recursos da Educação de estados e municípios, Prejudicou, nas cidades menores, até a alimentação das crianças matriculadas na rede pública. Tornou-se símbolo da crise uma escola em Minas que precisava dividir um ovo entre quatro alunos. Em vez disso, a gestão bolsonarista se ocupou de fetiches como escolas cívico-militares ou um plano bizarro de alfabetização por meio de aplicativo.

Poucas áreas foram tão devastadas pelo bolsonarismo como a Educação. Talvez a necessidade mais urgente seja a adoção de um novo programa de formação de professores e do tempo integral em toda a rede pública. O país alcançou em 2015 o pico de 6,5 milhões de alunos em regime de tempo integral, de sete horas ou mais na escola. O número caiu a 4,5 milhões em 2020 e voltou a 5 milhões no ano passado, ou 17% do total dos alunos. A meta definida pelo Programa Nacional de Educação (PNE) é atingir 25% em 2024.

Para resgatar a educação no Brasil e reduzir a distância em relação às metas, será necessária uma ação do MEC próxima a estados e municípios, o oposto do que fez o governo Bolsonaro. O desastre da Educação nestes últimos quatro anos, verificado em todas as avaliações de desempenho nacionais e internacionais ena evasão escolar, reflete o descaso do bolsonarismo com todas as áreas ligadas ao conhecimento e à ciência — caso também de cultura, meio ambiente ou tecnologia —, relegadas a plano secundário e vistas como território inimigo. Nada será tão decisivo no novo governo Lula quanto recuperar o tempo perdido para recolocar a Educação nos trilhos.

Elevar o limite do Simples é ideia estapafúrdia que amplia privilégio

O Globo

Novo Projeto de Lei Complementar poderá representar perdas de mais R$ 66 bilhões para Receita Federal

Não faz sentido o Projeto de Lei Complementar do deputado federal Darci de Matos (PSD-SC) que deverá ser apresentado nesta semana na Câmara propondo elevar os limites do Simples Nacional, o regime de tributação especial para pequenas empresas. Se a ideia estapafúrdia for adiante, um grupo maior de empreendedores ficará sob o guarda-chuva de alguma isenção fiscal. Em qualquer sistema, quanto mais gente fica livre de pagar impostos, maior a conta para quem não entra na lista dos beneficiados.

O Simples foi criado como um regime especial para unificar a cobrança de tributos e facilitar a vida dos pequenos empresários. Foi tão bem-sucedido que, com o tempo, uma sucessão de acréscimos acabou por torná-lo um labirinto cheio de desvãos, capazes de abrigar qualquer negócio — em particular, profissionais liberais ou executivos que preferem se transformar em pessoas jurídicas para fins tributários, expediente conhecido como “pejotização”. A faixa de enquadramento é muito superior à praticada em programas similares no mundo.

Pois a proposta agora é elevar o teto de R$ 4,8 milhões anuais a R$ 8,7 milhões para empresas de pequeno porte; de R$ 360 mil a R$ 869 mil para microempresas e de R$ 81 mil a R$ 144 mil para microempreendedores individuais. A vida dos empreendedores no Brasil — estejam eles à frente de micro, pequenas, médias ou grandes empresas — é sabidamente difícil. Mas hoje o Simples já se tornou o maior gasto tributário do governo, correspondendo a cerca de 22% da renúncia fiscal da União neste ano (ou quase R$ 82 bilhões). Caso seja aprovado o projeto que aumenta o teto do Simples, o Brasil terá empresa de “pequeno porte” com faturamento de quase R$ 9 milhões, “microempreendedor” tirando R$ 12 mil por mês — e o custo para a Receita Federal crescerá mais R$ 66 bilhões.

No mundo, alguns outros países também adotam o tratamento diferenciado, mas nada se compara ao que acontece por aqui. Pretensamente a favor do trabalhador, o projeto propõe que o microempreendedor individual possa contratar até dois empregados (pela legislação atual, só pode um). Mas, ao contrário do que dizem os defensores das mudanças, essa não é a melhor maneira de gerar empregos. Pesquisas rejeitam a hipótese de que todas as empresas beneficiadas criam mais vagas ou de que essa seja uma forma eficaz de fomentar oportunidades no mercado de trabalho.

É fato que houve aumento de emprego no comércio varejista com a criação do Simples nos anos 1990. O mesmo aconteceu com a figura do microempreendedor individual em 2009. Porém, como mostrou estudo da Fundação Getulio Vargas em 2019, “os custos desses programas em termos de perda de arrecadação superam as novas receitas”. Mais bem administrado, esse dinheiro poderia ter gerado ainda mais vagas, sem criar os privilégios que qualquer reforma tributária decente tem o dever de extinguir.

A lista de Tite

Folha de S. Paulo

Convocação para Copa reflete trabalho criterioso, que enfrentará o imponderável

Com uma convocação quase sem surpresas, o técnico Tite anunciou a lista de jogadores que levará para a Copa do Mundo no Qatar e encerrou o único mistério extracampo que ainda circunda o maior torneio de futebol do planeta.

Num passado já distante, o campeonato servia de palco para a apresentação de outras novidades que quase ninguém conseguia antecipar: um novo método para a preparação física, uma maneira revolucionária de conduzir o aquecimento, uma solução tática inovadora.

Nada disso constitui enigma hoje em dia. A internet e o intercâmbio intenso entre os países promovem a divulgação imediata dos avanços futebolísticos, facultam a todas as seleções a assimilação das melhores práticas e tornam os estilos de jogo um fator mais que conhecido.

O futebol, a despeito de tudo isso, jamais deixou de estar à mercê do imponderável —e talvez aí resida seu traço mais marcante. O somatório de finalizações, o acúmulo da posse de bola e a presença constante na área adversária podem resultar inúteis se, num lance solitário, o time dominado anotar o único gol do confronto.

É por essa característica que o futebol não se dá a simplificações; há muito mais entre uma linha de fundo e a outra do que pode revelar uma escolha tática ou uma lista de convocação. Como sintetizou Nelson Rodrigues: "A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana".

E é também por isso que, quando a Copa começa, eventuais protestos tendem a se dissolver. Foi assim nos anos 1960 e 1970, com a ditadura militar; foi assim em 2014, com os estádios superfaturados; será assim agora, mesmo que existam divergências políticas.

Se o aspecto imponderável permaneceu constante nessas décadas, outros mudaram radicalmente. Evoluíram o condicionamento físico, o conhecimento tático e a preparação técnica.

O trabalho do treinador também se transformou, e poucos simbolizam tão bem esse progresso quanto Tite. Comandando a seleção desde 2016, nunca se acomodou no cargo e manteve a atuação à altura da profissionalização do esporte.

Basta ver como faz a convocação. Tite exibe critérios numerosos, fechando portas para críticas vazias. Demonstra respeito inquestionável pela função, mesmo ciente de que jamais será unanimidade.

Seus diversos recordes nas eliminatórias atestam o sucesso de sua postura —bem como o acerto da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) ao mantê-lo mesmo depois da eliminação em 2018.

Não por acaso, o Brasil chegará ao Qatar como um dos grandes favoritos ao título. Que seja capaz de driblar o imponderável e voltar de lá como hexacampeão.

Oito bilhões de vidas

Folha de S. Paulo

Preocupações ligadas à população global se deslocam da alimentação para o clima

No próximo dia 15 de novembro, se as projeções mais recentes da ONU estiverem corretas, o planeta alcançará a portentosa marca de 8 bilhões de habitantes.

Desde que chegamos a 1 bilhão, por volta de 1800, nossa evolução demográfica avança aos saltos. Em 1960, o mundo já comportava 3 bilhões de pessoas, e bastaram mais 15 anos para os 4 bilhões.

Essa fase de expansão veloz, contudo, ficou para trás. Hoje nos encontramos numa era de desaceleração do crescimento populacional, com as estimativas assinalando aumento zero em 2086, quando atingiremos um pico de 10,4 bilhões.

No Brasil, essa janela deve se fechar antes. Tendo multiplicado sua população por aproximadamente 50 entre 1800 e 2000, o país deve chegar ao cume em 2040 —lamentavelmente, sem ter aproveitado o melhor momento demográfico para atingir o nível social e econômico dos países ricos.

Em termos mundiais, não foram poucos os avanços no desenvolvimento obtidos nas últimas cinco décadas, quando a humanidade dobrou de tamanho. A expectativa média de vida passou de 57,6 para 73,4 anos, e a mortalidade infantil regrediu de 93,4 a cada mil nascidos vivos para 26,7.

Entretanto esse progresso se deu de forma profundamente desigual ao redor do planeta e, cumpre lembrar, às custas de uma pressão inaudita sobre os meios naturais.

O pânico malthusiano do passado, que predizia a impossibilidade de aumentar a produção de alimentos no mesmo ritmo da população, parece superado diante dos saltos de produção propiciados pela tecnologia e da rápida queda das taxas de fecundidade.

Hoje, o fulcro das preocupações se deslocou para a crise climática. O incremento populacional previsto para as próximas décadas deve trazer, ao lado de um aumento do consumo, uma demanda crescente por energia —e justamente no momento em que o planeta precisará cortar as emissões provenientes de combustíveis fósseis.

Ao mesmo tempo, o aquecimento deve tornar desertas áreas hoje habitáveis, elevar o nível dos mares e aumentar a quantidade de eventos extremos, com impacto maior sobre os estratos mais pobres.

Como a revolução verde na agricultura demonstrou, é grande a capacidade humana de superar seus desafios existenciais. A janela de oportunidades para agir na questão climática, porém, vai se tornando, a cada dia, mais estreita.

O dever do STF com a lei e a paz

O Estado de S. Paulo

Os inquéritos relacionados aos ataques contra as instituições democráticas cumpriram seu papel. Cabe ao STF encerrá-los sem demora, dando a cada um deles o devido encaminhamento

É preciso pacificar o País, e todos os Três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – têm o dever de colaborar nessa empreitada. Mais do que inventar atribuições ad hoc, a contribuição de cada um dos Poderes se concretiza no fiel cumprimento dos respectivos deveres institucionais. É fonte de paz e de tranquilidade saber que cada órgão público está atuando dentro de suas competências, sem omissões e sem extrapolações.

Deve-se louvar, portanto, a atuação nos últimos anos do Supremo Tribunal Federal (STF). Com independência institucional, a Corte soube defender a Constituição e o Estado Democrático de Direito dos mais variados ataques e ameaças nestes tempos conturbados. Quando muitos se omitiram, o Supremo esteve presente, agindo de forma atenta e responsável. Certamente, houve equívocos e exageros – não existe perfeição no exercício do poder –, mas o fato é que o STF cumpriu sua função mais importante. A despeito de todas as tentativas antirrepublicanas e antidemocráticas, a Constituição prevaleceu.

Nos próximos anos, o País continuará necessitando muito do Supremo. A defesa da Constituição é tarefa permanente, seja qual for o Executivo federal, seja qual for o Congresso. Mas existe agora uma demanda muito especial para o STF, relacionada diretamente com a necessária pacificação do País: é preciso pôr fim aos inquéritos referentes à defesa do Estado Democrático de Direito e de suas instituições, dando a cada um deles o devido encaminhamento legal.

Essas investigações se iniciaram em março de 2019. Na ocasião, com base na lei e no Regimento Interno do STF, o então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, anunciou a abertura de um inquérito criminal para apurar fake news e ameaças veiculadas na internet envolvendo a Corte e seus ministros. Ainda que tenha criticado o sigilo instituído sobre o caso, este jornal defendeu a investigação. “Crimes contra honra agridem importantes bens jurídicos”, dissemos neste espaço. “No caso dos ataques mencionados pelo presidente do STF, eles envolvem não apenas os ministros e familiares, como afetam diretamente o Estado Democrático de Direito, que tem na independência do Poder Judiciário um de seus pilares fundamentais” (O sigilo do STF, 16/3/2019).

Depois, outros inquéritos foram abertos no STF e, verdade seja dita, todos eles tiveram o importante papel de mostrar que o Estado brasileiro não é conivente com a impunidade. Quando muitos pensaram que podiam agredir irresponsavelmente as instituições democráticas, o Supremo lembrou que há lei no País. Em momentos de não pequena confusão, as investigações no âmbito do STF ajudaram a recordar que, no Estado Democrático de Direito, os atos – em concreto, os ataques e as ameaças contra o regime democrático – têm consequências jurídicas. Não é um mundo sem lei.

Agora, precisamente para reafirmar que há lei no País e que ela deve ser cumprida, esses inquéritos precisam ter fim, com o oferecimento da denúncia ou o arquivamento da investigação – no caso de não haver os elementos mínimos necessários para que o Ministério Público apresente a acusação penal.

No Estado Democrático de Direito, não há espaço para manter inquéritos criminais abertos indefinidamente. Além de objeto definido, toda investigação tem início, meio e fim. É muito importante, portanto, que o STF encerre expeditamente os inquéritos relacionados aos ataques contra as instituições democráticas, dando a cada um deles o devido encaminhamento legal.

Além de cumprir a lei, a finalização desse trabalho investigativo será ocasião de arrefecer os ânimos da população. Trata-se de um modo muito concreto de o STF prestar contas à sociedade de tudo o que se fez nesses inquéritos, eliminando eventuais dúvidas e tensões que possam existir a respeito desses casos. A defesa do Estado Democrático de Direito – por parte do Supremo ou de qualquer outro órgão público – deve ser motivo de orgulho e de paz, e não fonte de inquietação. E, se alguém ousar reiniciar os ataques, é só instaurar um novo inquérito.

O uso político dos bancos públicos

O Estado de S. Paulo

Súbita prudência da Caixa ao suspender consignado do Auxílio Brasil um dia após a derrota de Bolsonaro prova a exploração política do banco; roga-se que Lula não aproveite o precedente

A Caixa suspendeu a concessão de empréstimos consignados para beneficiários do Auxílio Brasil até o dia 14 de novembro. A decisão foi tomada pelo próprio banco no dia 31 de outubro, um dia após a vitória do petista Luiz Inácio Lula da Silva, mas foi divulgada somente no dia 4 de novembro. O motivo do bloqueio das novas operações seria um “processamento da folha de pagamento do Auxílio Brasil, processo que envolve Dataprev, Caixa e Ministério da Cidadania”.

Este jornal já criticou, neste mesmo espaço, o contrassenso representado pelo estímulo ao endividamento de famílias que dependem de um programa de transferência de renda para sobreviver. Nesse sentido, a suspensão da contratação de novas operações de crédito para a parcela mais vulnerável da população certamente é digna de elogio. Mas a súbita prudência da Caixa, preocupada com o risco de que tais operações comprometessem o depósito regular dos benefícios mensais, só confirma que o banco atuou como um braço da campanha de reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

É importante lembrar a gênese do consignado do Auxílio Brasil. Nesse caso, datas não são meros detalhes, mas verdadeiros indicadores dos objetivos que o governo tinha com tal operação. Enviada ao Legislativo em março, a medida provisória que criou o empréstimo foi aprovada em julho e se tornou lei em agosto. O decreto que regulamentou a proposta foi publicado quatro dias antes do início oficial da campanha eleitoral. A portaria que definiu as condições da operação foi editada cinco dias antes do primeiro turno.

Enquanto os maiores bancos do País preferiram não oferecer essa modalidade de crédito, a Caixa anunciou o início das operações faltando menos de 20 dias para o segundo turno – e, em 11 dias, o banco emprestou R$ 4,3 bilhões para 1,7 milhão de pessoas. Se já não havia dúvida de que a pressa que pautou a liberação dos recursos nada tinha a ver com as necessidades financeiras dos beneficiários, a suspensão das operações um dia após a derrota de Bolsonaro expôs a olho nu a dissimulada atuação do governo.

Chega a ser irônico que os limites da instrumentalização dos bancos públicos em nome de uma candidatura à reeleição tenham sido rompidos por uma administração pretensamente liberal. Por outro lado, trata-se de um precedente que enseja preocupações. Se ainda é cedo para saber como o governo Lula pretende lidar com as instituições financeiras públicas em seu novo mandato, suas promessas de campanha não autorizam muito otimismo, e a experiência prévia mostra que comedimento nunca foi uma marca das gestões petistas.

Um dos principais compromissos que Lula assumiu como candidato foi a renegociação de dívidas de mais de 68 milhões de pessoas. Segundo sua equipe de campanha, o programa prevê a criação de um fundo garantidor, com valor entre R$ 7 bilhões e R$ 18 bilhões, e a repactuação teria a União como avalista, por meio dos bancos públicos. Pouco se sabe da medida, mas a diferença entre o piso e o teto cogitados para o instrumento já é um indicativo ruim – seja da falta de informações suficientes para definir o valor final, seja da ausência de foco da proposta.

O País não pode repetir erros como o do fundo garantidor do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), cujos impactos fiscais foram bem maiores do que os inicialmente projetados. O que se espera é que Lula tenha aprendido lições nos últimos anos e que esteja disposto a implementar políticas efetivas para resolver o endividamento das famílias, um problema crônico da economia brasileira, sem que seja preciso sacrificar os bancos públicos e, em última instância, o Tesouro Nacional.

Qualquer programa deve ter incentivos para manter os usuários adimplentes e evitar a reincidência, em especial quando a União atua como garantidora. Fixar um limite para os aportes federais desse novo fundo é imprescindível – e, lamentavelmente, não será exagero incluir recursos para renegociar as condições do irresponsável empréstimo consignado concedido aos beneficiários do Auxílio Brasil.

Mais famílias inadimplentes

O Estado de S. Paulo

Proporção de famílias com dificuldades de pagar dívidas em dia cresce mais que na recessão gerada pelo governo Dilma

O orçamento dos brasileiros continua apertado, e o fato de a proporção das famílias com contas atrasadas ter alcançado 30,3% do total em outubro, com aumento de 4,6 pontos em um ano, mostra que está ficando cada vez mais difícil pagar as contas em dia. O aumento da inadimplência, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), foi maior nas famílias com renda de até 10 salários mínimos. Nestas, o índice de inadimplência alcançou 33,6%, mais de um terço do total. São dados que não se observavam desde 2016, no auge da recessão provocada pela política econômica da presidente Dilma Rousseff (2011-2016).

Juros altos – alcançaram 53,7% ao ano em setembro, com aumento de 12,5 pontos em um ano – e endividamento elevado já seriam elementos suficientemente fortes para gerar algum desequilíbrio no orçamento das famílias. A oferta, claramente eleitoral, do crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil pela Caixa Econômica Federal entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial, apesar de proporcionar algum alívio imediato, implicou novos compromissos para famílias já com dificuldades para quitar as contas.

A Peic observa que, nos dias 10 e 11 de outubro, quando a Caixa anunciou os primeiros desembolsos da linha vinculada ao benefício, o Google Trends apontou recorde de buscas no termo “consignado Auxílio Brasil”. Pouco depois da realização do segundo turno, a Caixa suspendeu por duas semanas a concessão do financiamento, alegando problemas técnicos. O Ministério Público de Contas havia pedido a suspensão dessa linha de crédito, por suspeita de seu uso eleitoral.

O aumento da inadimplência ocorre num momento em que começa a cair o porcentual de famílias endividadas. “A geração progressiva de vagas no mercado de trabalho, a queda da inflação nos últimos meses, além das políticas de transferência de renda mais robustas têm aumentado a renda disponível, o que explica a desaceleração da proporção do total de endividados”, segundo o presidente da CNC, José Roberto Tadros.

Embora a proporção das famílias com dívidas possa diminuir, o porcentual das com dificuldades para honrar seus compromissos em dia talvez possa crescer nos próximos meses. O ritmo de crescimento da economia, segundo as previsões dominantes, deve diminuir, de modo que o crescimento do PIB em 2023 deve ser bem menor do que o previsto para este ano, de cerca de 2,7%.

A desaceleração da atividade econômica já é considerada pelo setor produtivo, como mostra a queda do Indicador Antecedente de Emprego aferido pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Com queda de 4 pontos em outubro, esse indicador está no menor nível desde abril. “Não é possível descartar novas quedas nos próximos resultados”, segundo o economista Rodolpho Tobler, responsável pela pesquisa, pois a recuperação econômica tende a perder força.

É neste cenário que vai ocorrer a mudança de governo. 

Um clima adverso para a COP27 no Egito

Valor Econômico

A cisão entre China e EUA não contribui para que os maiores poluidores do mundo cooperem na tarefa de enfrentar o aquecimento global

Tanto o clima político quanto as mudanças climáticas pioraram e formaram um quadro adverso para os trabalhos da COP27, iniciada no domingo no balneário egípcio de Sharm-el-Sheikh. A própria escolha do lugar para a conferência é infeliz, ao sugerir que a luta contra o aquecimento global pode ignorar ditaduras como a do general Abdul Al-Sisi, no poder desde 2014. Manifestações, que sempre fizeram parte da paisagem das COPs, foram confinadas por um regime que despreza a democracia e encarcera opositores.

A Organização Mundial de Meteorologia abriu a conferência no domingo com a constatação de que os últimos 8 anos foram os mais quentes da Terra e que a temperatura atual do planeta atingiu 1,15 grau centígrado, próximo do 1,5 C que seria o limiar para evitar a piora radical das condições de vida e a meta a não ser ultrapassada aceita no Acordo de Paris.

Além disso, a COP27 deveria receber uma leva de metas nacionalmente determinadas com corte das emissões mais ousadas, mas apenas 24 países ampliaram sua ambição e, tudo somado das 190 nações até agora, a temperatura global caminha para atingir de 2,4 a 2,8 graus centígrados até 2100, um desastre há muito previsível. Para que o limite estabelecido seja alcançado, as emissões de CO2 deveriam cair à metade até 2030, mas elas continuam aumentando, após um interregno durante a pandemia de covid-19.

A invasão da Ucrânia pela Rússia e as retaliações subsequentes levaram a uma crise energética na Europa, onde muitos países, como recurso emergencial à queda da oferta, recorreram à queima de carvão, enquanto os preços dos combustíveis fósseis dispararam, alimentando alta da inflação global. A administração do fornecimento como arma política pela Rússia, por um lado, estimula o mundo a acelerar pesquisas e investimentos em energias alternativas para pôr fim à dependência do petróleo. Por outro, há evidente retrocesso a curto prazo.

A praga do negacionismo vem se espalhando ao longo das COPs. Donald Trump retirou os EUA do Acordo de Paris, e foi sucedido por Joe Biden, que colocou o país de volta na luta climática e aprovou um ambicioso programa para isso. Agora corre o risco de não poder continuar sua obra. Nas eleições legislativas de meio de mandato, que ocorrem hoje, os democratas podem ficar em minoria na Câmara e no Senado, o que deixaria Biden como um presidente sem poder.

A cisão que pode se tornar irreversível entre China e EUA certamente não contribui para que o primeiro e o segundo maiores poluidores do mundo cooperem na tarefa de enfrentar o aquecimento global. Da mesma forma, o avanço da extrema direita na França, Alemanha, Holanda, Suécia, com ou sem a perda de votos dos verdes, complica o jogo político e a aprovação de propostas favoráveis ao ambiente nestes países.

Há progressos, no entanto. A regulamentação do mercado de carbono está pronta, faltando critérios para elegibilidade dos créditos. Os EUA chegam com nova proposta para turbinar esse mercado, colocando os governos como atores fundamentais de impulso. A derrota do presidente Jair Bolsonaro nas eleições devolvem ao Brasil as ambições e a militância nos fóruns climáticos, além de abrir a rota de reversão dos sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia. A presença do presidente eleito Lula é um sinal certo de que haverá uma guinada nas políticas ambientais do Estado.

Dois temas da COP27, velhos de outras conferências, marcarão passo. O financiamento para mitigação e adaptação por parte dos países ricos, estipulado em US$ 100 bilhões entre 2020 e 2025, não foi cumprido - o fluxo há dois anos é de US$ 83,3 bilhões. Eles terão de chegar a US$ 340 bilhões na segunda metade da década, o que dependerá da vontade desses países, claudicante até agora.

Os países ricos evitaram por muitos anos o tema de perdas e danos. A COP27 vai discutir um fundo formal pelo qual os países desenvolvidos compensam países muito pobres que sofrem, desproporcionalmente em relação às suas baixas emissões, os efeitos do aquecimento global. O tema foi incluído na conferência com nota de rodapé afirmando que “o resultado dessa agenda é baseado em cooperação e facilitação e não envolve responsabilidade ou compensação”. As chances de amarrar os países ricos em um esquema de compensação de prejuízos virtualmente infinitos com base em seu estoque histórico de emissões são praticamente nulas.

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