Lula precisa dar prioridade a resgate da Educação
O Globo
Área devastada durante os quatro anos de
governo Bolsonaro é a mais crítica para o futuro do Brasil
Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro,
o Ministério da Educação foi visto como um palco essencial na “guerra cultural”
contra a esquerda. Quatro anos e cinco ministros depois — Ricardo Vélez
Rodrigues, Abraham Weintraub, Carlos Alberto Decotelli, Milton Ribeiro e Victor
Godoy —, o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva terá de se
desdobrar para recuperar o atraso gerado pela inépcia na gestão da pasta mais
importante para o futuro do Brasil.
Não faltaram evidências de corrupção. As suspeitas derrubaram o ex-ministro Milton Ribeiro, acusado de pedir, em nome de Bolsonaro, ajuda para pastores lobistas que destinavam recursos do MEC a prefeituras mediante propina. Mas o problema mais grave foi o apagão educacional durante a pandemia. O MEC pouco — se algo — fez para facilitar o acesso dos alunos de baixa renda ao ensino à distância.
O próximo ministro e sua equipe terão, em
razão disso, de fazer um trabalho de oito anos em quatro, estima Mozart Ramos,
do Conselho Nacional de Educação (CNE). Haverá, de acordo com Priscila Cruz,
presidente-executiva do Todos pela Educação, três frentes de trabalho para o
novo MEC: restabelecer a estrutura federativa na Educação, em que União,
estados e municípios atuam de forma colaborativa; obter um orçamento efetivo
para o ministério (a proposta orçamentária de 2023 corta 96% das despesas com a
educação infantil e 95% dos recursos destinados a projetos de melhoria da
qualidade do ensino); e resgatar os programas educacionais do MEC, esvaziados
pelo aparelhamento ideológico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Enem e pelos demais
exames de avaliação do ensino.
Na questão orçamentária, o corte
eleitoreiro no ICMS sobre combustíveis drenou R$ 20 bilhões dos recursos da
Educação de estados e municípios, Prejudicou, nas cidades menores, até a
alimentação das crianças matriculadas na rede pública. Tornou-se símbolo da
crise uma escola em Minas que precisava dividir um ovo entre quatro alunos. Em
vez disso, a gestão bolsonarista se ocupou de fetiches como escolas
cívico-militares ou um plano bizarro de alfabetização por meio de aplicativo.
Poucas áreas foram tão devastadas pelo
bolsonarismo como a Educação. Talvez a necessidade mais urgente seja a adoção
de um novo programa de formação de professores e do tempo integral em toda a
rede pública. O país alcançou em 2015 o pico de 6,5 milhões de alunos em regime
de tempo integral, de sete horas ou mais na escola. O número caiu a 4,5 milhões
em 2020 e voltou a 5 milhões no ano passado, ou 17% do total dos alunos. A meta
definida pelo Programa Nacional de Educação (PNE) é atingir 25% em 2024.
Para resgatar a educação no Brasil e
reduzir a distância em relação às metas, será necessária uma ação do MEC
próxima a estados e municípios, o oposto do que fez o governo Bolsonaro. O
desastre da Educação nestes últimos quatro anos, verificado em todas as
avaliações de desempenho nacionais e internacionais ena evasão escolar, reflete
o descaso do bolsonarismo com todas as áreas ligadas ao conhecimento e à
ciência — caso também de cultura, meio ambiente ou tecnologia —, relegadas a
plano secundário e vistas como território inimigo. Nada será tão decisivo no
novo governo Lula quanto recuperar o tempo perdido para recolocar a Educação
nos trilhos.
Elevar o limite do Simples é ideia
estapafúrdia que amplia privilégio
O Globo
Novo Projeto de Lei Complementar poderá representar
perdas de mais R$ 66 bilhões para Receita Federal
Não faz sentido o Projeto de Lei
Complementar do deputado federal Darci de Matos (PSD-SC) que deverá ser
apresentado nesta semana na Câmara propondo elevar os limites do Simples
Nacional, o regime de tributação especial para pequenas empresas. Se a ideia estapafúrdia
for adiante, um grupo maior de empreendedores ficará sob o guarda-chuva de
alguma isenção fiscal. Em qualquer sistema, quanto mais gente fica livre de
pagar impostos, maior a conta para quem não entra na lista dos beneficiados.
O Simples foi criado como um regime
especial para unificar a cobrança de tributos e facilitar a vida dos pequenos
empresários. Foi tão bem-sucedido que, com o tempo, uma sucessão de acréscimos
acabou por torná-lo um labirinto cheio de desvãos, capazes de abrigar qualquer negócio
— em particular, profissionais liberais ou executivos que preferem se
transformar em pessoas jurídicas para fins tributários, expediente conhecido
como “pejotização”. A faixa de enquadramento é muito superior à praticada em
programas similares no mundo.
Pois a proposta agora é elevar o teto de R$
4,8 milhões anuais a R$ 8,7 milhões para empresas de pequeno porte; de R$ 360
mil a R$ 869 mil para microempresas e de R$ 81 mil a R$ 144 mil para
microempreendedores individuais. A vida dos empreendedores no Brasil — estejam
eles à frente de micro, pequenas, médias ou grandes empresas — é sabidamente
difícil. Mas hoje o Simples já se tornou o maior gasto tributário do governo,
correspondendo a cerca de 22% da renúncia fiscal da União neste ano (ou quase
R$ 82 bilhões). Caso seja aprovado o projeto que aumenta o teto do Simples, o
Brasil terá empresa de “pequeno porte” com faturamento de quase R$ 9 milhões,
“microempreendedor” tirando R$ 12 mil por mês — e o custo para a Receita
Federal crescerá mais R$ 66 bilhões.
No mundo, alguns outros países também
adotam o tratamento diferenciado, mas nada se compara ao que acontece por aqui.
Pretensamente a favor do trabalhador, o projeto propõe que o microempreendedor
individual possa contratar até dois empregados (pela legislação atual, só pode
um). Mas, ao contrário do que dizem os defensores das mudanças, essa não é a
melhor maneira de gerar empregos. Pesquisas rejeitam a hipótese de que todas as
empresas beneficiadas criam mais vagas ou de que essa seja uma forma eficaz de fomentar
oportunidades no mercado de trabalho.
É fato que houve aumento de emprego no comércio varejista com a criação do Simples nos anos 1990. O mesmo aconteceu com a figura do microempreendedor individual em 2009. Porém, como mostrou estudo da Fundação Getulio Vargas em 2019, “os custos desses programas em termos de perda de arrecadação superam as novas receitas”. Mais bem administrado, esse dinheiro poderia ter gerado ainda mais vagas, sem criar os privilégios que qualquer reforma tributária decente tem o dever de extinguir.
A lista de Tite
Folha de S. Paulo
Convocação para Copa reflete trabalho
criterioso, que enfrentará o imponderável
Com uma convocação
quase sem surpresas, o técnico Tite anunciou a lista de jogadores
que levará para a Copa do Mundo no Qatar e encerrou o único mistério extracampo
que ainda circunda o maior torneio de futebol do planeta.
Num passado já distante, o campeonato
servia de palco para a apresentação de outras novidades que quase ninguém
conseguia antecipar: um novo método para a preparação física, uma maneira
revolucionária de conduzir o aquecimento, uma solução tática inovadora.
Nada disso constitui enigma hoje em dia. A
internet e o intercâmbio intenso entre os países promovem a divulgação imediata
dos avanços futebolísticos, facultam a todas as seleções a assimilação das
melhores práticas e tornam os estilos de jogo um fator mais que conhecido.
O futebol, a despeito de tudo isso, jamais
deixou de estar à mercê do imponderável —e talvez aí resida seu traço mais
marcante. O somatório de finalizações, o acúmulo da posse de bola e a presença
constante na área adversária podem resultar inúteis se, num lance solitário, o
time dominado anotar o único gol do confronto.
É por essa característica que o futebol não
se dá a simplificações; há muito mais entre uma linha de fundo e a outra do que
pode revelar uma escolha tática ou uma lista de convocação. Como sintetizou
Nelson Rodrigues: "A mais sórdida pelada é de uma complexidade
shakespeariana".
E é também por isso que, quando a Copa
começa, eventuais protestos tendem a se dissolver. Foi assim nos anos 1960 e
1970, com a ditadura militar; foi assim em 2014, com os estádios
superfaturados; será assim agora, mesmo que
existam divergências políticas.
Se o aspecto imponderável permaneceu
constante nessas décadas, outros mudaram radicalmente. Evoluíram o
condicionamento físico, o conhecimento tático e a preparação técnica.
O trabalho do treinador também se
transformou, e poucos simbolizam tão bem esse progresso quanto Tite. Comandando
a seleção desde 2016, nunca se acomodou no cargo e manteve a atuação à altura
da profissionalização do esporte.
Basta ver como faz a convocação. Tite exibe
critérios numerosos, fechando portas para críticas vazias. Demonstra respeito
inquestionável pela função, mesmo ciente de que jamais será unanimidade.
Seus diversos recordes nas eliminatórias
atestam o sucesso de sua postura —bem como o acerto da Confederação Brasileira
de Futebol (CBF) ao mantê-lo mesmo depois da eliminação em 2018.
Não por acaso, o Brasil chegará ao Qatar
como um dos grandes favoritos ao título. Que seja capaz de driblar o
imponderável e voltar de lá como hexacampeão.
Oito bilhões de vidas
Folha de S. Paulo
Preocupações ligadas à população global se
deslocam da alimentação para o clima
No próximo dia 15 de novembro, se as
projeções mais recentes da ONU estiverem corretas, o planeta alcançará a
portentosa marca de 8 bilhões de habitantes.
Desde que chegamos a 1 bilhão, por volta de
1800, nossa evolução demográfica avança aos saltos. Em 1960, o mundo já
comportava 3 bilhões de pessoas, e bastaram mais 15 anos para os 4 bilhões.
Essa fase de expansão veloz, contudo, ficou
para trás. Hoje nos encontramos numa era de desaceleração do crescimento
populacional, com as estimativas assinalando aumento zero em 2086, quando
atingiremos um pico de 10,4 bilhões.
No Brasil, essa janela deve se fechar
antes. Tendo multiplicado sua população por aproximadamente 50 entre 1800 e
2000, o país deve chegar ao cume em 2040 —lamentavelmente, sem ter aproveitado
o melhor momento demográfico para atingir o nível social e econômico dos países
ricos.
Em termos mundiais, não foram poucos os
avanços no desenvolvimento obtidos nas últimas cinco décadas, quando a
humanidade dobrou de tamanho. A expectativa média de vida passou de 57,6 para
73,4 anos, e a mortalidade infantil regrediu de 93,4 a cada mil nascidos vivos
para 26,7.
Entretanto esse progresso se deu de forma
profundamente desigual ao redor do planeta e, cumpre lembrar, às custas de uma
pressão inaudita sobre os meios naturais.
O pânico malthusiano do passado, que
predizia a impossibilidade de aumentar a produção de alimentos no mesmo ritmo
da população, parece superado diante dos saltos de produção propiciados pela
tecnologia e da rápida queda das taxas de fecundidade.
Hoje, o fulcro das
preocupações se deslocou para a crise climática. O incremento
populacional previsto para as próximas décadas deve trazer, ao lado de um
aumento do consumo, uma demanda crescente por energia —e justamente no momento
em que o planeta precisará cortar as emissões provenientes de combustíveis
fósseis.
Ao mesmo tempo, o aquecimento deve tornar
desertas áreas hoje habitáveis, elevar o nível dos mares e aumentar a
quantidade de eventos extremos, com impacto maior sobre os estratos mais
pobres.
Como a revolução verde na agricultura
demonstrou, é grande a capacidade humana de superar seus desafios existenciais.
A janela de oportunidades para agir na questão climática, porém, vai se
tornando, a cada dia, mais estreita.
O dever do STF com a lei e a paz
O Estado de S. Paulo
Os inquéritos relacionados aos ataques contra as instituições democráticas cumpriram seu papel. Cabe ao STF encerrá-los sem demora, dando a cada um deles o devido encaminhamento
É preciso pacificar o País, e todos os Três
Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – têm o dever de colaborar nessa
empreitada. Mais do que inventar atribuições ad hoc, a contribuição de
cada um dos Poderes se concretiza no fiel cumprimento dos respectivos deveres
institucionais. É fonte de paz e de tranquilidade saber que cada órgão público
está atuando dentro de suas competências, sem omissões e sem extrapolações.
Deve-se louvar, portanto, a atuação nos
últimos anos do Supremo Tribunal Federal (STF). Com independência
institucional, a Corte soube defender a Constituição e o Estado Democrático de
Direito dos mais variados ataques e ameaças nestes tempos conturbados. Quando
muitos se omitiram, o Supremo esteve presente, agindo de forma atenta e
responsável. Certamente, houve equívocos e exageros – não existe perfeição no
exercício do poder –, mas o fato é que o STF cumpriu sua função mais
importante. A despeito de todas as tentativas antirrepublicanas e
antidemocráticas, a Constituição prevaleceu.
Nos próximos anos, o País continuará
necessitando muito do Supremo. A defesa da Constituição é tarefa permanente,
seja qual for o Executivo federal, seja qual for o Congresso. Mas existe agora
uma demanda muito especial para o STF, relacionada diretamente com a necessária
pacificação do País: é preciso pôr fim aos inquéritos referentes à defesa do
Estado Democrático de Direito e de suas instituições, dando a cada um deles o
devido encaminhamento legal.
Essas investigações se iniciaram em março
de 2019. Na ocasião, com base na lei e no Regimento Interno do STF, o então
presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, anunciou a abertura de um
inquérito criminal para apurar fake news e ameaças veiculadas na internet
envolvendo a Corte e seus ministros. Ainda que tenha criticado o sigilo
instituído sobre o caso, este jornal defendeu a investigação. “Crimes contra
honra agridem importantes bens jurídicos”, dissemos neste espaço. “No caso dos
ataques mencionados pelo presidente do STF, eles envolvem não apenas os
ministros e familiares, como afetam diretamente o Estado Democrático de
Direito, que tem na independência do Poder Judiciário um de seus pilares
fundamentais” (O sigilo do STF, 16/3/2019).
Depois, outros inquéritos foram abertos no
STF e, verdade seja dita, todos eles tiveram o importante papel de mostrar que
o Estado brasileiro não é conivente com a impunidade. Quando muitos pensaram
que podiam agredir irresponsavelmente as instituições democráticas, o Supremo
lembrou que há lei no País. Em momentos de não pequena confusão, as
investigações no âmbito do STF ajudaram a recordar que, no Estado Democrático
de Direito, os atos – em concreto, os ataques e as ameaças contra o regime
democrático – têm consequências jurídicas. Não é um mundo sem lei.
Agora, precisamente para reafirmar que há
lei no País e que ela deve ser cumprida, esses inquéritos precisam ter fim, com
o oferecimento da denúncia ou o arquivamento da investigação – no caso de não
haver os elementos mínimos necessários para que o Ministério Público apresente
a acusação penal.
No Estado Democrático de Direito, não há
espaço para manter inquéritos criminais abertos indefinidamente. Além de objeto
definido, toda investigação tem início, meio e fim. É muito importante,
portanto, que o STF encerre expeditamente os inquéritos relacionados aos
ataques contra as instituições democráticas, dando a cada um deles o devido
encaminhamento legal.
Além de cumprir a lei, a finalização desse
trabalho investigativo será ocasião de arrefecer os ânimos da população.
Trata-se de um modo muito concreto de o STF prestar contas à sociedade de tudo
o que se fez nesses inquéritos, eliminando eventuais dúvidas e tensões que
possam existir a respeito desses casos. A defesa do Estado Democrático de
Direito – por parte do Supremo ou de qualquer outro órgão público – deve ser
motivo de orgulho e de paz, e não fonte de inquietação. E, se alguém ousar
reiniciar os ataques, é só instaurar um novo inquérito.
O uso político dos bancos públicos
O Estado de S. Paulo
Súbita prudência da Caixa ao suspender consignado do Auxílio Brasil um dia após a derrota de Bolsonaro prova a exploração política do banco; roga-se que Lula não aproveite o precedente
A Caixa suspendeu a concessão de
empréstimos consignados para beneficiários do Auxílio Brasil até o dia 14 de
novembro. A decisão foi tomada pelo próprio banco no dia 31 de outubro, um dia
após a vitória do petista Luiz Inácio Lula da Silva, mas foi divulgada somente
no dia 4 de novembro. O motivo do bloqueio das novas operações seria um
“processamento da folha de pagamento do Auxílio Brasil, processo que envolve
Dataprev, Caixa e Ministério da Cidadania”.
Este jornal já criticou, neste mesmo
espaço, o contrassenso representado pelo estímulo ao endividamento de famílias
que dependem de um programa de transferência de renda para sobreviver. Nesse
sentido, a suspensão da contratação de novas operações de crédito para a
parcela mais vulnerável da população certamente é digna de elogio. Mas a súbita
prudência da Caixa, preocupada com o risco de que tais operações comprometessem
o depósito regular dos benefícios mensais, só confirma que o banco atuou como
um braço da campanha de reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
É importante lembrar a gênese do consignado
do Auxílio Brasil. Nesse caso, datas não são meros detalhes, mas verdadeiros
indicadores dos objetivos que o governo tinha com tal operação. Enviada ao
Legislativo em março, a medida provisória que criou o empréstimo foi aprovada
em julho e se tornou lei em agosto. O decreto que regulamentou a proposta foi
publicado quatro dias antes do início oficial da campanha eleitoral. A portaria
que definiu as condições da operação foi editada cinco dias antes do primeiro
turno.
Enquanto os maiores bancos do País
preferiram não oferecer essa modalidade de crédito, a Caixa anunciou o início
das operações faltando menos de 20 dias para o segundo turno – e, em 11 dias, o
banco emprestou R$ 4,3 bilhões para 1,7 milhão de pessoas. Se já não havia
dúvida de que a pressa que pautou a liberação dos recursos nada tinha a ver com
as necessidades financeiras dos beneficiários, a suspensão das operações um dia
após a derrota de Bolsonaro expôs a olho nu a dissimulada atuação do governo.
Chega a ser irônico que os limites da
instrumentalização dos bancos públicos em nome de uma candidatura à reeleição
tenham sido rompidos por uma administração pretensamente liberal. Por outro
lado, trata-se de um precedente que enseja preocupações. Se ainda é cedo para
saber como o governo Lula pretende lidar com as instituições financeiras
públicas em seu novo mandato, suas promessas de campanha não autorizam muito
otimismo, e a experiência prévia mostra que comedimento nunca foi uma marca das
gestões petistas.
Um dos principais compromissos que Lula
assumiu como candidato foi a renegociação de dívidas de mais de 68 milhões de
pessoas. Segundo sua equipe de campanha, o programa prevê a criação de um fundo
garantidor, com valor entre R$ 7 bilhões e R$ 18 bilhões, e a repactuação teria
a União como avalista, por meio dos bancos públicos. Pouco se sabe da medida,
mas a diferença entre o piso e o teto cogitados para o instrumento já é um
indicativo ruim – seja da falta de informações suficientes para definir o valor
final, seja da ausência de foco da proposta.
O País não pode repetir erros como o do
fundo garantidor do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), cujos impactos
fiscais foram bem maiores do que os inicialmente projetados. O que se espera é
que Lula tenha aprendido lições nos últimos anos e que esteja disposto a
implementar políticas efetivas para resolver o endividamento das famílias, um
problema crônico da economia brasileira, sem que seja preciso sacrificar os
bancos públicos e, em última instância, o Tesouro Nacional.
Qualquer programa deve ter incentivos para
manter os usuários adimplentes e evitar a reincidência, em especial quando a
União atua como garantidora. Fixar um limite para os aportes federais desse
novo fundo é imprescindível – e, lamentavelmente, não será exagero incluir
recursos para renegociar as condições do irresponsável empréstimo consignado
concedido aos beneficiários do Auxílio Brasil.
Mais famílias inadimplentes
O Estado de S. Paulo
Proporção de famílias com dificuldades de pagar dívidas em dia cresce mais que na recessão gerada pelo governo Dilma
O orçamento dos brasileiros continua
apertado, e o fato de a proporção das famílias com contas atrasadas ter
alcançado 30,3% do total em outubro, com aumento de 4,6 pontos em um ano,
mostra que está ficando cada vez mais difícil pagar as contas em dia. O aumento
da inadimplência, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), foi maior
nas famílias com renda de até 10 salários mínimos. Nestas, o índice de
inadimplência alcançou 33,6%, mais de um terço do total. São dados que não se
observavam desde 2016, no auge da recessão provocada pela política econômica da
presidente Dilma Rousseff (2011-2016).
Juros altos – alcançaram 53,7% ao ano em
setembro, com aumento de 12,5 pontos em um ano – e endividamento elevado já
seriam elementos suficientemente fortes para gerar algum desequilíbrio no
orçamento das famílias. A oferta, claramente eleitoral, do crédito consignado
para beneficiários do Auxílio Brasil pela Caixa Econômica Federal entre o
primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial, apesar de proporcionar
algum alívio imediato, implicou novos compromissos para famílias já com
dificuldades para quitar as contas.
A Peic observa que, nos dias 10 e 11 de
outubro, quando a Caixa anunciou os primeiros desembolsos da linha vinculada ao
benefício, o Google Trends apontou recorde de buscas no termo “consignado
Auxílio Brasil”. Pouco depois da realização do segundo turno, a Caixa suspendeu
por duas semanas a concessão do financiamento, alegando problemas técnicos. O
Ministério Público de Contas havia pedido a suspensão dessa linha de crédito,
por suspeita de seu uso eleitoral.
O aumento da inadimplência ocorre num
momento em que começa a cair o porcentual de famílias endividadas. “A geração
progressiva de vagas no mercado de trabalho, a queda da inflação nos últimos
meses, além das políticas de transferência de renda mais robustas têm aumentado
a renda disponível, o que explica a desaceleração da proporção do total de
endividados”, segundo o presidente da CNC, José Roberto Tadros.
Embora a proporção das famílias com dívidas
possa diminuir, o porcentual das com dificuldades para honrar seus compromissos
em dia talvez possa crescer nos próximos meses. O ritmo de crescimento da
economia, segundo as previsões dominantes, deve diminuir, de modo que o
crescimento do PIB em 2023 deve ser bem menor do que o previsto para este ano,
de cerca de 2,7%.
A desaceleração da atividade econômica já é
considerada pelo setor produtivo, como mostra a queda do Indicador Antecedente de Emprego aferido pelo Instituto Brasileiro de
Economia da Fundação Getulio Vargas. Com queda de 4 pontos em
outubro, esse indicador está no menor nível desde abril. “Não é possível
descartar novas quedas nos próximos resultados”, segundo o economista Rodolpho
Tobler, responsável pela pesquisa, pois a recuperação econômica tende a perder
força.
É neste cenário que vai ocorrer a mudança de governo.
Um clima adverso para a COP27 no Egito
Valor Econômico
A cisão entre China e EUA não contribui
para que os maiores poluidores do mundo cooperem na tarefa de enfrentar o
aquecimento global
Tanto o clima político quanto as mudanças
climáticas pioraram e formaram um quadro adverso para os trabalhos da COP27,
iniciada no domingo no balneário egípcio de Sharm-el-Sheikh. A própria escolha
do lugar para a conferência é infeliz, ao sugerir que a luta contra o
aquecimento global pode ignorar ditaduras como a do general Abdul Al-Sisi, no
poder desde 2014. Manifestações, que sempre fizeram parte da paisagem das COPs,
foram confinadas por um regime que despreza a democracia e encarcera
opositores.
A Organização Mundial de Meteorologia abriu
a conferência no domingo com a constatação de que os últimos 8 anos foram os
mais quentes da Terra e que a temperatura atual do planeta atingiu 1,15 grau
centígrado, próximo do 1,5 C que seria o limiar para evitar a piora radical das
condições de vida e a meta a não ser ultrapassada aceita no Acordo de Paris.
Além disso, a COP27 deveria receber uma
leva de metas nacionalmente determinadas com corte das emissões mais ousadas,
mas apenas 24 países ampliaram sua ambição e, tudo somado das 190 nações até
agora, a temperatura global caminha para atingir de 2,4 a 2,8 graus centígrados
até 2100, um desastre há muito previsível. Para que o limite estabelecido seja
alcançado, as emissões de CO2 deveriam cair à metade até 2030, mas elas
continuam aumentando, após um interregno durante a pandemia de covid-19.
A invasão da Ucrânia pela Rússia e as
retaliações subsequentes levaram a uma crise energética na Europa, onde muitos
países, como recurso emergencial à queda da oferta, recorreram à queima de
carvão, enquanto os preços dos combustíveis fósseis dispararam, alimentando
alta da inflação global. A administração do fornecimento como arma política
pela Rússia, por um lado, estimula o mundo a acelerar pesquisas e investimentos
em energias alternativas para pôr fim à dependência do petróleo. Por outro, há
evidente retrocesso a curto prazo.
A praga do negacionismo vem se espalhando
ao longo das COPs. Donald Trump retirou os EUA do Acordo de Paris, e foi
sucedido por Joe Biden, que colocou o país de volta na luta climática e aprovou
um ambicioso programa para isso. Agora corre o risco de não poder continuar sua
obra. Nas eleições legislativas de meio de mandato, que ocorrem hoje, os
democratas podem ficar em minoria na Câmara e no Senado, o que deixaria Biden
como um presidente sem poder.
A cisão que pode se tornar irreversível
entre China e EUA certamente não contribui para que o primeiro e o segundo
maiores poluidores do mundo cooperem na tarefa de enfrentar o aquecimento
global. Da mesma forma, o avanço da extrema direita na França, Alemanha,
Holanda, Suécia, com ou sem a perda de votos dos verdes, complica o jogo
político e a aprovação de propostas favoráveis ao ambiente nestes países.
Há progressos, no entanto. A regulamentação
do mercado de carbono está pronta, faltando critérios para elegibilidade dos
créditos. Os EUA chegam com nova proposta para turbinar esse mercado, colocando
os governos como atores fundamentais de impulso. A derrota do presidente Jair
Bolsonaro nas eleições devolvem ao Brasil as ambições e a militância nos fóruns
climáticos, além de abrir a rota de reversão dos sucessivos recordes de
desmatamento da Amazônia. A presença do presidente eleito Lula é um sinal certo
de que haverá uma guinada nas políticas ambientais do Estado.
Dois temas da COP27, velhos de outras
conferências, marcarão passo. O financiamento para mitigação e adaptação por
parte dos países ricos, estipulado em US$ 100 bilhões entre 2020 e 2025, não
foi cumprido - o fluxo há dois anos é de US$ 83,3 bilhões. Eles terão de chegar
a US$ 340 bilhões na segunda metade da década, o que dependerá da vontade
desses países, claudicante até agora.
Os países ricos evitaram por muitos anos o tema de perdas e danos. A COP27 vai discutir um fundo formal pelo qual os países desenvolvidos compensam países muito pobres que sofrem, desproporcionalmente em relação às suas baixas emissões, os efeitos do aquecimento global. O tema foi incluído na conferência com nota de rodapé afirmando que “o resultado dessa agenda é baseado em cooperação e facilitação e não envolve responsabilidade ou compensação”. As chances de amarrar os países ricos em um esquema de compensação de prejuízos virtualmente infinitos com base em seu estoque histórico de emissões são praticamente nulas.
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