Valor Econômico
Escolhas de Lula, especialmente na
economia, vão determinar se grande união de forças democráticas e pessoas de
bem em todo o país vai seguir junta em seu governo
Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito
presidente e vai tomar posse para o seu terceiro mandato. Ele só conseguiu
superar o bolsonarismo em razão de uma grande união de forças democráticas e
pessoas de bem em todo o país, com esmagadora votação no Nordeste.
Agora, a pergunta número um, inevitável, é:
essa união vai continuar a partir de 1º de janeiro ou os novos aliados voltarão
para seus cantos e retomarão a oposição feroz ao governo de centro-esquerda,
como ocorreu nos mandatos anteriores de Lula e Dilma?
A resposta é “depende”. Depende da política a ser adotada, principalmente na economia. Nessa turma que apoiou Lula tem de tudo em matéria de pensamento econômico, variando de heterodoxos/progressistas a radicais ortodoxos/liberais. Essas duas correntes se uniram para derrotar o presidente Jair Bolsonaro, num movimento saudável para a democracia.
No início de 2022, sob o título “Um ano
para incendiar corações e mentes”, esta coluna observava que o eleitor teria
que escolher entre duas tendências no pleito presidencial. Uma, a dos liberais,
é baseada na crença de que a prosperidade de uma nação decorre da liberdade do
empreendedor para investir e trabalhar, sem muita interferência do Estado, a
não ser como regulador. A ideia é que, com o equilíbrio fiscal do governo, no
longo prazo, os agentes econômicos tomam decisões de investir no país e promovem
crescimento de economia, emprego e renda.
A proposta dos progressistas, mais ligados
a Lula, inclui maior intervenção do Estado, com tarefa importante no
planejamento dos investimentos e na administração da demanda de bens no país,
para que a economia trabalhe sempre próxima do pleno emprego. Sem abrir mão da
responsabilidade fiscal, caberia ao Estado tirar recursos da economia em
momentos de aquecimento e injetá-los em tempos recessivos. Além disso, deveria
adotar responsabilidade social, com programas de renda, educação e saúde.
As duas turmas tiveram que deixar de lado
suas divergências para apoiar a democracia contra o autoritarismo. Lula sabia
que para ganhar a eleição teria de dar voz aos apoiadores liberais e o fez
desde a escolha do vice Geraldo Alckmin até a atração de outros representantes
do centro político no fim da campanha. Isso o aproximou da Faria Lima e dos
pais do Real, economistas que derrotaram a hiperinflação há quase 30 anos. Num
dos últimos eventos públicos da campanha, no Tuca, em São Paulo, o então
candidato do PT escalou apenas dois financistas para discursar, ambos liberais:
Persio Arida e Henrique Meirelles. Aquilo foi um “sinal importante sobre a
direção da política econômica”, observou Meirelles em entrevista ao Valor.
Pergunta número dois: será possível reunir
essa gente que pensa diferentemente para trabalhar em harmonia no novo governo?
Não é uma tarefa fácil, mas talvez Lula
consiga fazer a mágica, algo que já ocorreu no Brasil no século passado. No
excelente livro “O Brasil Desenvolvimentista e a Trajetória de Rômulo Almeida”,
já citado nesta coluna em 28/6/22, o professor Alexandre de Freitas Barbosa
(IEB-USP) conta a experiência dos anos 1950, quando intelectuais orgânicos do
Estado, de tendências diferentes, trabalharam como parceiros no planejamento
econômico e social. De um lado, estavam desenvolvimentistas “stricto sensu”,
como Rômulo Almeida, Ignácio Rangel, Jesus Soares Pereira e Cleantho de Paiva
Leite. E de outro, os desenvolvimentistas “mercadistas”, como Roberto Campos,
Lucas Lopes e Glycon de Paiva. O sucesso foi indiscutível: de 1950 a 1973, os
chamados “anos dourados” da economia, a renda per capita brasileira cresceu
134%.
Essa experiência mostra que não há
incompatibilidade total entre as duas tendências, até porque ambas visam o
desenvolvimento e defendem a responsabilidade fiscal, ainda que as ênfases
sejam diferentes.
Os radicalismos, de um lado ou de outro,
podem estar atenuados até por constatações da história recente. O
neoliberalismo, forma radical da proposta liberal, foi hegemônico no Ocidente
desde os anos 1980, adotado por Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher no
Reino Unido. Com austeridade fiscal rigorosa, privatizações desenfreadas e
Estado mínimo, não teve os resultados esperados, porque a economia desses
países cresceu muito menos que no período do capitalismo social, do pós-guerra
até meados dos anos 1970. Além de colaborar para a ascensão da China à condição
de potência global, a proposta neoliberal provocou seguidas crises financeiras,
promoveu concentração de renda e culminou com o grande colapso do “subprime”,
nos EUA, em 2008.
As experiências progressistas radicais
também tropeçaram. Durante a pandemia, por exemplo, governos de todo o mundo
avançaram sem receios na aplicação de trilhões de dólares de recursos públicos
na economia. Eles não tinham alternativa. Foram bem-sucedidos para ativar a
economia, mas agora enfrentam sérios problemas para a contenção da inflação e
são obrigados a elevar juros e aumentar o endividamento público. No Brasil, o
experimento pouco cuidadoso com a questão fiscal deu no que deu durante o
governo Dilma Rousseff. Não adianta discutir se foi golpe ou não. O fato é que
a gestão fiscal era errática e criou o pretexto para o impeachment.
Uma diferença entre as duas correntes está
na forma como almejam o desenvolvimento ao longo do tempo. Uma acredita que o
Estado mínimo e a austeridade, entre outras qualidades, podem criar ambiente
favorável e promover o crescimento no médio e longo prazo. Outra, mais
imediatista, acha que a mão pesada do Estado precisa apressar o desenvolvimento
porque a rigor, como disse Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”.
Dado que geralmente “virtus in medium est”,
talvez Lula possa conseguir o apoio dos dois lados, com a volta do planejamento,
investimento e financiamento público para puxar o privado, parcerias com o
setor empresarial, reformas administrativa e tributária e responsabilidades
fiscal, social e ambiental. Vai depender de engenho e arte na escolha de nomes
e no comando das ações do governo.
Seja como for, o país dará adeus ao falso
liberalismo de Paulo Guedes, que só ficou no papel, primou pelo
“desplanejamento”, promoveu descalabro fiscal e deixará uma nefasta “Herança
Ipiranga” para ser administrada pelo novo governo. Já vai tarde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário