terça-feira, 20 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

TSE tem o dever de punir Bolsonaro e torná-lo inelegível

O Globo

Não faltam evidências de que ele usou recursos públicos para tentar subverter a democracia

Passados 11 meses da reunião em Brasília convocada por Jair Bolsonaro com embaixadores para disseminar suas fantasias sem cabimento sobre as urnas eletrônicas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dará início nesta semana ao julgamento que poderá torná-lo inelegível. Em representação feita pelo PDT, ele e o candidato a vice em sua chapa, Walter Braga Netto, são acusados de abuso de poder político. Não faltam provas do que aconteceu no Palácio da Alvorada em julho diante de diplomatas estrangeiros, nem motivos para os ministros da Corte tornarem Bolsonaro e Braga Netto inelegíveis por oito anos.

No encontro de cerca de 50 minutos, Bolsonaro tinha um objetivo evidente: desacreditar o sistema eleitoral brasileiro e o Judiciário junto ao eleitorado, para depois justificar a quebra da ordem democrática em caso de derrota nas urnas. Logo no início do discurso, afirmou que basearia sua argumentação num inquérito da Polícia Federal (PF) sobre uma suspeita de invasão dos sistemas do TSE. Declarou em seguida que as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas na Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) eram ignoradas, atacou integrantes do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF) e repetiu teses conspiratórias sobre as urnas eletrônicas.

Todas as 20 principais mentiras proferidas por Bolsonaro na ocasião foram logo desmentidas. A tentativa de ataque ao TSE não violou a segurança das urnas, mais de 70% das propostas foram acolhidas na CTE, o ministro Edson Fachin nunca foi advogado do MST, e o ministro Luís Roberto Barroso estava certo ao afirmar que o inquérito da PF citado por Bolsonaro era sigiloso. Por tudo isso, não foi surpresa quando a Procuradoria-Geral Eleitoral opinou pela procedência, ainda que parcial, da ação do PDT.

A reunião no Alvorada diante do corpo diplomático atônito não foi apenas um dos episódios mais vexatórios da História nacional. Para os procuradores, as mentiras e distorções proferidas por Bolsonaro elevaram a desconfiança das urnas eletrônicas no eleitorado. Foi o caldo de cultura de onde brotaram as acusações infundadas de fraude em outubro, as respostas violentas e a erosão da credibilidade da democracia.

Bolsonaro já recebeu a punição das urnas. Foi o primeiro presidente no cargo a perder uma tentativa de reeleição, desde a mudança na Constituição que a permitiu, em 1997. Agora chegou a vez do primeiro castigo da Justiça. Ele é alvo de algo como 600 processos. O relativo à apresentação aos embaixadores é apenas um, mas, ao menos no âmbito eleitoral, não há dúvida de que houve violação. Bolsonaro usou as dependências do Alvorada com o apoio de funcionários do Planalto e do Itamaraty. A saraivada de sandices foi transmitida pela TV Brasil — uma rede pública — e nas redes sociais do então presidente. Ao fazer isso, ele passou por cima de leis que proíbem o uso indevido de imóveis e meios de comunicação da União em benefício de candidato, além do emprego do poder para atingir objetivo estranho ao interesse público.

O discurso aos embaixadores não pode ser justificado como dia infeliz, exceção ou resultado de confusão mental. Fez parte de uma estratégia planejada e executada ao longo de anos, com o objetivo de subverter a ordem democrática. Bolsonaro sabia exatamente o que fazia ao chamar os embaixadores para o Alvorada. Por isso o TSE deve puni-lo, tornando-o inelegível.

Municípios precisam de apoio federal para planejar vacinação contra Covid

O Globo

Apenas 13% dos adultos tomaram reforço bivalente. Desigualdades explicam baixa adesão, sugere estudo

Num país em que morreram mais de 700 mil na pandemia de Covid-19, era de esperar grande procura pela vacinação e pelas doses de reforço. Não é o que acontece no Brasil. Apenas 13% dos adultos que tomaram uma, duas ou mais doses da vacina monovalente foram receber a bivalente, atualizada para criar barreiras contra subvariantes da Ômicron, cepa mais contagiosa do coronavírus. O relaxamento em medidas de prevenção, como distanciamento e uso de máscaras, torna a situação potencialmente perigosa.

Diversos motivos levam o brasileiro a não voltar ao posto de saúde em busca de doses essenciais para se proteger — e para manter a população com a cobertura vacinal adequada. Primeiro, o êxito das vacinas diminui a sensação de risco. Por isso são essenciais campanhas publicitárias de convencimento da população. Há, porém, outros fatores em jogo, além da desinformação disseminada pelos grupos antivacina.

Disparidades econômicas e de desenvolvimento têm impedido a universalização da vacinação, revelou pesquisa recente dos epidemiologistas Alexandra e Antonio Boing, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com outros brasileiros e com o sanitarista S.V. Subramanian, da Universidade Harvard. É esse o maior obstáculo que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) tem enfrentado, segundo reportagem do GLOBO. “A Covid-19 é uma nova doença, com estratégia de vacinação muito complexa”, diz a cientista política Lorena Barberia, da USP, coautora da pesquisa. “O desafio vai além do Zé Gotinha.”

A complexidade da campanha contra a Covid-19, com duas doses de vacinas e uma adicional de reforço, também ajudou a reduzir a procura. Os pesquisadores notaram grande queda na terceira dose. Para entender a questão, separaram os municípios de diferentes perfis em cinco grupos de mesmo tamanho, de modo a poder compará-los. Aqueles com escolaridade mais alta registraram cobertura vacinal de adultos 43% superior àqueles onde ela era mais baixa. Nos com população mais branca, o reforço da vacina foi 24% maior que nas cidades com maior proporção de negros. Cidades mais ricas se saíram 21% melhor que as mais pobres. A cobertura vacinal entre mulheres foi entre 25% e 118% mais alta que entre os homens.

O infectologista Eder Gatti, diretor do PNI, reconhece as dificuldades: “Uma das principais causas da queda da cobertura vacinal é o acesso à vacina, ao serviço de saúde, muito sensível a determinantes sociais”. Municípios estão recebendo ajuda do PNI para planejar a vacinação e desenvolver estratégias para que o serviço de saúde chegue ao não vacinado. Um dos recursos fundamentais é a busca ativa por quem deixou de tomar a vacina. É essencial o apoio do Ministério da Saúde às prefeituras para o país atingir uma cobertura vacinal mínima. Não só no enfrentamento da Covid-19.

Estudos questionam melhora do mercado de trabalho

Valor Econômico

A existência de 67,2 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho é um indicador preocupante

Os dados positivos do mercado de trabalho vêm contrariando as previsões de deterioração neste início de ano e intrigam os especialistas. A mais recente taxa de desemprego informada pelo IBGE, referente ao trimestre móvel terminado em abril, ficou em 8,5%, o menor percentual desde os 8,4% de junho de 2015. É bem verdade que a economia também cresceu acima do esperado neste início de ano. O Produto Interno Bruto (PIB) surpreendeu com aumento de 1,9% no primeiro trimestre na comparação com os três meses anteriores. Mas ele foi puxado pela arrancada de 21,6% da agropecuária, que emprega pouca mão de obra, responsável pela geração de apenas 3,2% das vagas criadas em 2022. Enquanto isso, o setor de serviços, o maior empregador, com quase 60% do total, cresceu apenas 0,6%; e a indústria encolheu 0,1%.

Dois novos estudos lançam uma luz sobre esse quadro. Um deles, do FGV Ibre, mostra a redução da taxa de participação no mercado, liderada por jovens, menos escolarizados e de baixa renda. O outro, da LCA, detalha que a maioria dos que deixaram a força de trabalho recebiam algum benefício do governo. A elevação do Auxílio Brasil em 2022, renomeado de Bolsa Família neste ano, teria influenciado os que deixaram de procurar emprego.

Segundo o FGV Ibre (Valor, 12/6), a queda na taxa de participação no mercado de trabalho observada desde o último trimestre de 2022 pode estar atrapalhando as análises e sugerindo uma melhora que não está ocorrendo em realidade. A taxa de participação mostra quanto da população em idade de trabalhar, ou seja, da força de trabalho, está ocupada ou buscando emprego.

Depois do pico de 63,8% em 2019, a taxa de participação foi de 63,4% antes da pandemia, em fevereiro de 2020, e despencou para 56,7% no trimestre terminado em julho daquele ano, quando muitos desistiram de procurar emprego pela certeza de que não encontrariam em consequência do isolamento social. A taxa se recuperou com a flexibilização do distanciamento, com a retomada dos serviços presenciais, que emprega mais mão de obra, e atingiu 62,7% em setembro de 2022. Mas, voltou a cair desde então, e marcou 61,4% no trimestre móvel terminado em abril.

A queda na taxa de participação pode indicar taxa de desemprego menor sem que o mercado esteja efetivamente melhor caso o número de pessoas ocupadas esteja estável e diminua o percentual dos que buscam emprego. Pode ser o que está acontecendo agora, de acordo com os pesquisadores do FGV Ibre. Se a taxa de participação estivesse no patamar médio verificado em 2018 a 2019, de 63,4%, com 3,4 milhões de trabalhadores buscando trabalho, o desemprego seria, na verdade, de 11,4%.

Para reforçar argumento, os especialistas do FGV Ibre chamam a atenção para a queda do nível de ocupação, medido pela relação entre a população ocupada e a em idade de trabalhar. O nível de ocupação está em queda desde o terceiro trimestre de 2022, quando estava em 57,2%. O pico dessa taxa é de 58,5%, registrado em 2013. Durante a pandemia, chegou a cair para 48,5% entre junho e agosto de 2020.

Na pesquisa da FGV Ibre, as pessoas de baixa escolaridade e de faixas de renda menor foram as que mais deixaram o mercado. A saída mais intensa desses grupos, registrada principalmente a partir do fim de 2022, pode estar ligada ao aumento do valor real do Bolsa Família, apontam.

A suspeita é reforçada pelo estudo da LCA. Avaliando dados da Pnad Contínua Anual 2022, a LCA constatou que três em cada dez pessoas que deixaram a força de trabalho em 2022 recebiam o Auxílio Brasil, quatro tinham aposentadoria ou BPC/Loas, e outros três não recebiam outro tipo de rendimento. Para a consultoria, o aumento do Auxílio Brasil às vésperas das eleições e os registros irregulares feito às pressas no Cadastro Único estimularam a saída do mercado de trabalho. Isso ficou evidente na explosão do número das famílias unipessoais.

Pode estar relacionado a esse fenômeno o aumento do percentual dos jovens que nem estudam nem trabalham, verificado recentemente. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação 2022 do IBGE mostram que 20% dos jovens entre 15 e 29 anos está fora da sala de aula e do mercado de trabalho, ou seja, 9,8 milhões do total de 49 milhões de jovens dessa faixa etária.

Há também especialistas que veem na demografia a explicação para esse quadro em que a demanda por emprego não cresceu como costuma ocorrer em início de ano, ao mesmo tempo em que houve estabilidade no número de desempregados, aumento da população fora da força de trabalho e queda no número de desalentados - aqueles que nem procuram vaga porque acham que não terão sucesso.

Os próximos meses deverão fornecer mais informações que vão contribuir para esclarecer o quadro. A existência de 67,2 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho é um indicador preocupante: são 38,5% do total de 174,4 milhões da força de trabalho. A situação tem repercussões na educação e na produtividade. O diagnóstico correto pode levar também à melhor calibragem dos programas de benefícios à população.

Quase estagnado

Folha de S. Paulo

Estado precisa do setor privado para diminuir déficit vexatório no saneamento

Para um país de renda média, o Brasil tem níveis escabrosamente baixos de saneamento básico. Os avanços, quando os há, são mínimos e lentos, como indica a última edição da Pnad Contínua do IBGE.

Pela estreita ligação com a saúde pública e a preservação ambiental, a coleta e o tratamento de esgoto representam o indicador mais óbvio do serviço. E o dado colhido na pesquisa é de acabrunhar: em 2022, apenas 69,5% dos domicílios estão ligados à rede coletora.

Houve progresso, verdade. Ínfimo: em 2019, eram 68,2%. Em quatro anos, o incremento foi de mero 1,3 ponto percentual. Nesse ritmo, seriam necessários 63 anos para alcançar a universalização (90%) estipulada para 2033.

Coletar não significa tratar os dejetos, como seria racional —é desvio perverso recolher sujidades para lançá-las in natura em rios ou no mar. A ausência de tratamento afeta 18% do esgoto recolhido; somado ao que nem chega aos tubulões, estima-se que até 45% do total produzido acabe poluindo corpos d’água.

Os números dão boa medida do fracasso do Estado brasileiro no fornecimento desse serviço público essencial. O modelo que por aqui vingou tem empresas estatais como provedor predominante, mas municípios detêm o poder de concessão e, em muitos casos, a operação por concessionárias privadas tem dado bons resultados.

De todo modo, o poder público ainda se mostra incapaz de fazer investimentos de modo racional, no montante e na rapidez necessários para apagar a nódoa civilizatória que envergonha o país.

O panorama começou a mudar a partir da aprovação de novo marco legal do saneamento em 2020. Com mais oportunidades para a atuação de empresas particulares, novos investimentos chegaram.

Estima-se que os recursos públicos e privados possam ultrapassar R$ 24 bilhões neste ano —o que representa apenas um terço dos R$ 74 bilhões necessários até 2033 para lograr a universalização, segundo uma estimativa do setor.

A meta sofreu abalo com decretos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que alteraram regras do marco legal, reabrindo vantagens para estatais. Entre elas, a Empresa Baiana de Águas e Saneamento, que escaparia de licitação para prover o serviço em Salvador, fonte de 40% de seu faturamento.

Em boa hora, a Câmara dos Deputados derrubou as mudanças de inspiração estatizante da gestão petista. As medidas se acham agora sob exame do Senado, e o Planalto já negocia novo decreto com tom contemporizador.

Que se apresse. Não há desculpa para procrastinar o fornecimento de um serviço que, segundo a ONU, é direito humano universal.

Corrida ao bônus

Folha de S. Paulo

Disputa de categorias por benesse ameaça aprofundar distorções do funcionalismo

Na elite do serviço público, as categorias comparam entre si condições de trabalho, remuneração e regalias, de modo que qualquer vantagem concedida a uma delas de pronto suscita pleitos das demais.

É o que se vê agora em Brasília depois que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou decreto para enfim regulamentar um controverso bônus de eficiência para servidores da Receita Federal, fixado em lei seis anos atrás.

A benesse destinada a analistas e auditores fiscais já é inspirada em honorários pagos a advogados da União e procuradores da Fazenda Nacional —e é tida como meio de compensar supostas defasagens salariais em relação aos fiscos dos governos estaduais.

Agora, as corporações de Banco Central, Tesouro Nacional e Controladoria-Geral da União reclamam mais ganhos. Em outra frente, funcionários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e peritos médicos reivindicam a retomada de um extra para a redução da fila por benefícios previdenciários.

Os valores envolvidos estão fora da realidade da grande maioria dos trabalhadores do país. Com o reajuste salarial linear de 9% concedido neste ano ao funcionalismo federal, um auditor da Receita tem vencimento básico de R$ 22,9 mil mensais no início da carreira e de R$ 29,8 mil no topo.

A essas cifras se somam hoje R$ 3.000 em bônus —que, sim, são pagos a todos, independentemente do desempenho. Com a regulamentação, o adicional será elevado; menos certo é que critério haverá para sua concessão.

Para além do risco de provocar uma corrida por privilégios injustificados, há que evitar, nesse caso, que o prêmio por produtividade incentive uma ofensiva de auditores contra os pagadores de impostos, ainda mais num momento em que o governo Lula busca um grande aumento de arrecadação.

Nesse sentido, é bem-vindo o dispositivo que impede o cálculo do bônus sobre recursos obtidos por meio de multas tributárias. Entretanto o vício de origem do adicional é ter sido criado a partir de uma demanda corporativista, não de um programa de produtividade.

O objetivo de melhorar a eficiência do serviço público deveria incluir uma reforma administrativa capaz de racionalizar a estrutura de carreiras, reduzir vencimentos iniciais e limitar o alcance atualmente exagerado da estabilidade do funcionalismo. Sem ela, distorções tendem a se aprofundar.

Os golpistas e os republicanos

O Estado de S. Paulo

Investigação sobre o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro mostra que militares de fato tramavam levante, que só não aconteceu porque golpistas sabiam não ter apoio do Alto Comando

As Forças Armadas não exercem um “poder moderador” na República nem muito menos o Exército é tutor da democracia no País. É inegável, porém, que um golpe de Estado para impedir a posse de Lula da Silva, eleito legitimamente para a Presidência da República, só não foi tentado após a derrota de Jair Bolsonaro na eleição, entre outras razões, por causa da firmeza do Alto Comando do Exército em não se desviar um milímetro sequer dos papéis e responsabilidades impostos aos militares pela Constituição.

Assim já parecia pela prevalência da ala legalista da Força Terrestre sobre os golpistas durante os quatro anos do tenebroso mandato de Bolsonaro. Por mais irresistível que tenha sido o canto liberticida do ex-presidente aos ouvidos de militares recalcitrantes em aceitar a ordem constitucional de 1988, o Exército, como instituição de Estado, permanente, jamais emitiu sinal de que o apoiaria em suas loucuras. Há poucos dias, isso ficou evidente após a revelação, pela revista Veja, do chamado “roteiro do golpe” – documento apócrifo enumerando uma espécie de checklist da sedição – encontrado pela Polícia Federal (PF) no celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, atualmente preso no Batalhão de Polícia do Exército, em Brasília.

O documento apreendido pela PF no celular de Mauro Cid mostra o desassombro com que militares no entorno de Bolsonaro, entre os quais alguns comandantes de tropas, urdiram um golpe contra a supremacia da vontade popular. Não fosse tudo isso muito grave, seria risível o discurso falacioso dos golpistas em pintar um golpe contra a Constituição com as tintas desbotadas de uma legalidade de fancaria a pretexto de “defendê-la”.

A audácia do bando, para o bem da democracia no Brasil, ficou circunscrita às conversas num grupo de WhatsApp intitulado “Doss”. Jamais ganhou as ruas em razão do medo dos sediciosos de serem punidos pelo Alto Comando. As conversas revelam que a não adesão da cúpula do Exército aos desígnios golpistas de militares que não valem as solas do coturno que calçam foi o fator dissuasório principal para que a intentona não fosse adiante. Um dos golpistas, o tenentecoronel Hélio Ferreira Lima, chega a lamentar expressamente a baixa adesão de seus superiores às tramoias. “Salário garantido, guerreiro com certeza absoluta de não guerrear. Ficou bom demais para querermos sair desse conforto. Não vai rolar”, escreveu ele, como “desabafo” pela atitude do Alto Comando em se manter fiel à Constituição.

“Como instituição de Estado apartidária, o Exército prima sempre pela legalidade e pelo respeito aos preceitos constitucionais”, disse o comando da Força Terrestre por meio de nota. “Os fatos recentes (a divulgação da tramoia golpista entre Cid e outros oficiais) somente ratificam e comprovam a atitude legalista do Exército de Caxias”, conclui o documento. De fato, como instituição permanente que é, o Exército jamais deu a entender que extrapolaria suas atribuições constitucionais ou se lançaria numa aventura golpista, menos ainda por um desqualificado como Bolsonaro. A Força sempre se manteve em seu lugar, vale dizer, ao lado da Constituição, malgrado o fato inescapável de que no seio da caserna há militares golpistas.

De fato, as ações que o Exército tem tomado desde que o envolvimento de militares da ativa na tentativa de golpe começaram a vir a público não dão margem para que a sociedade duvide da disposição da Força Terrestre para lidar com os sediciosos de maneira implacável. E isso, em alguns casos, pode significar deixá-los a cargo da PF e da Justiça civil para que respondam pelos eventuais crimes comuns que tenham cometido.

Uma tentativa de golpe de Estado implica gravíssimas consequências. Sobre cada indivíduo, civil ou militar, da ativa ou da reserva, que atentou contra a Constituição deve recair o peso das leis, na medida de sua responsabilidade. É assim que funciona no Estado Democrático de Direito e é assim que a democracia se defende de seus algozes.

O caso Americanas e a credibilidade do mercado

O Estado de S. Paulo

Cabe à CVM fazer deste caso um paradigma, não para que seja temida como a americana SEC, mas para preservar a fiabilidade do setor varejista e do mercado de capitais

Em documento enviado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Americanas finalmente admitiu a existência de fraudes em suas demonstrações financeiras. Desde que o então presidente da companhia, Sérgio Rial, informou ter encontrado o que seriam “inconsistências contábeis” da ordem de R$ 20 bilhões, em janeiro, a dimensão do escândalo envolvendo a companhia só cresceu.

Passaram-se cinco meses desde a denúncia de Rial e a admissão, pela Americanas, de que seus balanços não tinham qualquer confiabilidade. Disso já se desconfiava, mas a novidade é que o rombo contábil teria chegado à marca de R$ 42 bilhões, mais que o dobro do inicialmente estimado. Além disso, a Americanas deu nome aos bois e acusou membros da antiga diretoria, os Bancos Itaú e Santander e a KPMG e a PwC, empresas que auditavam suas demonstrações financeiras. Sugeriu, ainda, que elas vinham ocorrendo havia nada menos que duas décadas e que os números definitivos só serão conhecidos após a revisão de todos esses balanços.

Tudo nessa história é estranho desde o início. Rial teria descoberto e divulgado as suspeitas apenas nove dias após assumir formalmente o cargo, ao qual renunciou em seguida. O rombo, inicialmente, seria fruto de dívidas da empresa com bancos em operações de risco sacado, lançadas de forma fraudulenta para aumentar seu caixa e subestimar o nível de endividamento da empresa. Agora, o fato relevante mostra que o esquema de fraudes era bem maior. Incluía,

também, contratos de verbas de propaganda cooperada fictícios que inflavam os resultados da empresa, garantindo lucros artificiais, bônus aos executivos e dividendos aos acionistas.

O documento chama a atenção por muitas outras razões. Ao mesmo tempo que acusa nominalmente sete ex-diretores, além de bancos e empresas de auditoria, ele poupa os membros do Conselho de Administração da Americanas e o trio de acionistas de referência, Beto Sicupira, Jorge Paulo Lehmann e Marcel Telles, de qualquer responsabilidade pela fraude. Tampouco parece acaso que ele tenha sido divulgado na véspera do depoimento do atual CEO da companhia, Leonardo Coelho Pereira, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados sobre o caso. Na comissão, ele reiterou o teor do documento, disse ter demitido 30 funcionários e compartilhou o relatório com membros da CPI e CVM, além da Polícia Federal e do Ministério Público.

Somente uma apuração rigorosa poderá dizer se o fato relevante elucida tudo o que ocorria na Americanas com exatidão. Por isso mesmo, o documento deve servir como ponto de partida para as investigações. Elas devem avançar, e não tomar o relatório interno como conclusivo. Ninguém melhor para fazê-lo com acurácia do que a CVM. É bem verdade que a comissão, há anos, tem sido criticada pelo exato oposto – pela lentidão e pela omissão, sobretudo em casos de informações privilegiadas. Mas eis que surge uma oportunidade única para mudar essa imagem.

Para se fortalecer enquanto órgão regulador, a CVM deve ser dotada de recursos e pessoal, de forma a assegurar o cumprimento de seu papel de disciplinar e fiscalizar o mercado de valores mobiliários. Porém, ao mesmo tempo que deve ser vigilante, o órgão não deve se deixar envolver pelo clima de punitivismo que tanto mal já fez ao País. A CVM, em resumo, deve começar a cumprir os termos da legislação que a criou.

Cabe à CVM, portanto, fazer do caso Americanas um paradigma, não para que seja temida como a similar norteamericana Securities and Exchange Commission (SEC), mas para que sua atuação contribua para resgatar a credibilidade do setor varejista e do mercado de capitais, profundamente abalada.

Não há como o País desenvolver um ambiente confiável aos investidores quando uma de suas maiores empresas age para ludibriar a todos por tanto tempo. Milhões de acionistas minoritários, guiados por números que julgam ser verdadeiros, aplicam suas economias e patrimônio em companhias abertas. É crucial que a CVM seja firme agora, para que casos dessa magnitude jamais voltem a acontecer.

Mais 19 milhões de refugiados

O Estado de S. Paulo

Guerra na Ucrânia, com seus 11,6 milhões, responde pela maioria dos deslocados de 2022

Parte dos efeitos de guerras e perseguições tem sido refletida nas estatísticas anuais divulgadas pela Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Os dados de 2022, conhecidos no último dia 16, não poderiam ser mais dramáticos. O número de pessoas deslocadas de seus locais de origem aumentou em 19 milhões nesse período, o que elevou a estimativa dos que vivem nessa condição a 108 milhões. Para ter uma dimensão, esse universo equivale à população dos Países Baixos.

Esse contexto desafia o arcabouço internacional de direitos humanos construído nos últimos 70 anos e expõe um dado ainda mais grave. Segundo o relatório da Acnur Tendências Globais, elaborado com base nas estatísticas anuais fornecidas pelos países das Nações Unidas, 40% dos 108 milhões de deslocados são compostos por crianças, grupo mais suscetível à violência extrema. Elas somam 43,2 milhões.

Segundo a estimativa da Acnur, 62,5 milhões de pessoas foram obrigadas a se deslocar dentro de seus próprios países, enquanto 35,3 milhões refugiaram-se no exterior, sobretudo em países vizinhos, a maioria deles tão pobres como os de origem. Outros 5,4 milhões de pessoas solicitaram a autoridades estrangeiras o status de refugiado – grupo que aumentou em 2,6 milhões somente em 2022.

O quadro de 2022 mostrou-se afetado sensivelmente por velhos conflitos na África e no Oriente Médio, somados a outros recentes, como o da Ucrânia. Também evidenciou as terríveis condições de sobrevivência em países submetidos a regimes autoritários, como a Venezuela, e naqueles em que há perseguições continuadas contra minorias étnicas, religiosas, de gênero e orientação sexual, como Afeganistão e Mianmar.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia respondeu por 61% dos 19 milhões de deslocados em 2022. Os ucranianos forçados a fugir de seus lugares de origem somaram 11,6 milhões, dos quais 5,9 milhões se mudaram para outras regiões do país. A parcela de 5,7 milhões restantes procurou abrigo no exterior, sobretudo na Polônia e na República Checa. Nas Américas, o total de deslocados cresceu 17% em 2022 ante o ano anterior.

É importante ressaltar que os números da Acnur refletem as histórias de busca pela sobrevivência que tiveram o desfecho esperado. Os 108 milhões de deslocados alcançaram um local onde a vida é possível. Nem sempre é assim. O naufrágio de embarcação de pesca precária e sobrecarregada de migrantes na costa da Grécia, no último dia 14, faz parte de uma série de tragédias que tornaram o Mediterrâneo um “mar da morte”. Deixou 79 mortos.

Ao comentar o relatório, o alto comissário das Nações Unidas para Refugiados, Filippo Grandi, afirmou o óbvio: faz-se necessário um maior esforço para selar a paz e impedir que novas guerras venham a ocorrer, ou então não haverá chances de regresso. As estimativas da Acnur para 2023, porém, já consideram conflitos para os quais não há esperança de solução em breve. A agência prevê mais 35,4 milhões de deslocados neste ano. Parte deles, certamente, sem esperanças de voltar ao lar.

Norte-Sul, os trilhos estão de volta

Correio Braziliense

Considerado o maior especialista do pós-Segunda Guerra Mundial, faz um diagnóstico preciso da decadência das ferrovias a partir da década de 1950

O historiador inglês Tony Judt, que faleceu em 2010, aos 62 anos, dedicou dois ensaios ao tema das ferrovias, publicados postumamente, no livro Quando os fatos mudam. Considerado o maior especialista do pós-Segunda Guerra Mundial, faz um diagnóstico preciso da decadência das ferrovias a partir da década de 1950: "A cidade moderna havia nascido a partir do transporte sobre trilhos (….) Mas, ao tirar as pessoas do campo e jogá-las na cidade, ao drenar a área rural de comunidades, povoados e trabalhadores, o trem tinha começado a destruir sua própria razão de ser: o movimento das pessoas entre as cidades e de distantes distritos rurais para centros urbanos".

Para ele, no ensaio Tragam os trilhos de volta, o grande propiciador da urbanização acabou sendo uma vítima desse mesmo processo. "Com as viagens obrigatórias muito longas ou muito curtas, fazia mais sentido realizá-las de avião ou de carro. Mesmo o transporte de cargas estava sendo ameaçado pelo baixo custo do serviço oferecido pelos caminhões, apoiado pelo Estado na forma de autoestradas", avaliava.

Por todo lugar, as ferrovias foram vítimas de uma dupla falta de fé: nos benefícios proporcionados pelos serviços públicos; e no planejamento urbano, no espaço público e patrimônio arquitetônico e cultural. "Entre 1955 e 1975, um misto de modismo anti-histórico e egoísmo corporativo levou à destruição de um notável número de estações terminais, algumas espetaculares, como o Euston (Londres), Gare du Midi (Bruxelas), Penn Station (Nova York)".

Judt morreu em 2010 e deixou um livro-testamento chamado O Chalé da Memória, no qual conta como, menino, pegava trens em Londres e ia de um lado a outro do país, vendo as paisagens, encontrando as pessoas.

No Brasil, a fabulosa malha ferroviária que interligava o país foi destruída. Talvez o maior símbolo de abandono seja a estação central da antiga Estrada de Ferro Leopoldina, no Rio, um patrimônio arruinado. Aqui em Brasília, o destino dado à funcional e modernista Rodoferroviária, na qual deságua o Eixo Monumental, só não é igual porque, ironicamente, lhe foi atribuída a função pública de cuidar da habilitação dos motoristas.

Qualquer urbanista nos dirá que o futuro de Brasília e seu entorno ainda pode ser muito diferente, se o projeto de trem rápido nos ligando à Goiânia e à Anápolis sair do papel. O Distrito Federal e Goiás abrigariam a mais moderna e progressista megalópole do país. Seus trilhos poderiam transportar milhões de toneladas de mercadorias e passageiros, como a Vitória-Minas.

Entretanto, não percamos as esperanças no brado de Tony Judt. Na sexta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inaugurou a ligação ferroviária entre os portos de Itaqui, no Maranhão, e Santos, em São Paulo. Depois de mais de 30 anos, a Ferrovia Norte-Sul se tornou realidade. Vai acelerar o desenvolvimento da região Centro-Oeste.

Com o Terminal da Rumo de Rio Verde (GO), a ferrovia completa 2.257 quilômetros e atravessa quatro regiões. Com forte produção de commodities — como soja, milho e algodão —, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais se conectam mais intensamente, pelo Sudeste e pelo Norte, com a economia global.

Iniciada em 1986, a Ferrovia Norte Sul foi uma ousadia do então presidente José Sarney, que enxergou muito mais longe, porém, chegou a ser até ridicularizado. Ganhou impulso quando o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no segundo mandato de Lula, então a cargo da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, virou realidade. No seu governo, a ex-presidente apostou na parceria público-privada.

O trecho de Açailândia (MA) a Porto Nacional (TO) é operado pela VLI Logística. A partir de 2019, a operadora logística Rumo passou a gerir o ramo Sul do empreendimento, com 1.537 quilômetros de trilhos. No governo Bolsonaro, construiu novos terminais em São Simão, Rio Verde e Iturama.

Nesse período, a empresa investiu R$ 4 bilhões em obras de infraestrutura, terminais e material rodante. Mais de 5 mil empregos foram criados. Só em 2022, cerca de 7,8 milhões de toneladas de soja, milho e farelo foram transportadas pelos novos trechos da ferrovia, o que representou um aumento de 25% do total exportado por Goiás, nosso vizinho, em comparação aos anos anteriores.

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