quarta-feira, 9 de julho de 2025

"Jabutis" em acordos internacionais - Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*

O instinto de repórter emerge curioso, vez por outra,  sobretudo  quando se propaga que o o Presidente do Brasil  vai viajar para o exterior com a finalidade de  assinar  acordos de cooperação internacionais  . Lula, em particular, realizou 139 viagens  a 80 países nos dois primeiros mandatos, e 33 na sua terceira Presidência. Para justificar os supostos excessos,  o Itamarati tenta explicar  , genericamente , que se tratam de acordos nos  campos da ciência, do meio ambiente, da  energia, dos transportes, da infraestrutura, da aviação, e outros. 

Cabe ao jornalista  "ligar  pontos  visíveis com tramas imaginárias", segundo ensina Vinicius Mota, secretário de redação do jornal Folha de São Paulo. Aquela semântica inocente pode estar escondendo   "jabutis", ou seja, compromissos, cujos conteúdos   são de  conhecimento  de poucos, senão  dos autores e interessados. O cenário da vez  -  dilema do IOF, o escândalo do INSS, ou as tarifas de Trump -   encarrega-se de desviar as atenções, respaldadas no desconhecimento público dos  "instrumentos"  que lhes dão legitimidade, consagrados na política e no direito  internacional : Cartas, Acordos, Ajustes, Declarações, Protocolos, Tratados, Convenções,  Compromissos, Manifestações de Interesse. 
Por exemplo, nos entendimentos brasileiros   no campo da energia, aparece, de repente, no meio desses acordos  a  intenção do Brasil de adquirir   usinas nucleares da Rússia para serem instaladas  na Amazônia. A  informação surge , após a passagem de Lula por Moscou, convidado  para  assistir os desfile militar  do Dia da Vitória, inicialmente comemorado como o fim da II Guerra, hoje como a grande obra  dos russos . Terminou vazando imagens de uma reunião de Lula com a cúpula do Kremlin , com ele assinando  documentos    que o Itamarati chama vagamente  "de matérias de   interesses mútuos".  O problema dessas usinas nucleares é  que se tratam de   tecnologias  diferentes das desenvolvidas  por aqui. O Brasil  adquiriu , no Governo Geisel, na década de 1970, três usinas (originalmente  10)  para produção energética, por meio de um Acordo Nuclear com a Alemanha, com fins pacíficos .  Naquele instante - e hoje não é muito diferente - o Brasil tinha carência de  físicos, engenheiros, técnicos e de  empresas periféricas  nacionais   para fornecer materiais de construção. Todos estavam envolvidos  no  processo de transferência da alta tecnologia nuclear. O  Acordo com os alemães  custou ao Brasil 10 bilhões de dólares.   

Recorrendo àquilo que o secretário da Folha  chama de "pontos visíveis com tramas imaginárias" , nessa altura torna-se oportuno  indagar se seria a Rússia o melhor  parceiro do Brasil na área da  energia nuclear, principalmente por ser  Putin, o avalista?  O Presidente russo propaga orgulhosamente ser o seu país líder mundial em tecnologia de reatores de nêutrons rápidos e procura consolidar  a posição com  um projeto batizado de "Proryv" (Avanço). Ufana-se  de dispor do maior  estoque  de armas nucleares do mundo.  Acredita no  que   propaga  de que  o arsenal russo  poderia destruir o planeta  muitas vezes. Seu  estoque representaria, hoje, mais  de 10,5 mil  ogivas nucleares , das quais 1.710  estratégicas já  implantadas:  870 em mísseis balísticos terrestres, cerca de 640 para lançamentos  de submarinos e em  200 em bases de bombardeiros pesados. 

Com arsenal sobre dimensionado, já chegou a ameaçar  com  armas nucleares a Ucrânia,  invadida por ele, se os Estados Unidos enviassem tropas para lá . Poderia ativar o chamado sistema   conhecido como  "Mão Morta" ou "Perimetr" segundo o qual , a partir de um pequeno dispositivo carregado por ele numa bolsa de mão,  acionaria o sistema nuclear  do seu país (prerrogativa dele com chefe de Estado ). Para ele,  os computadores  decidirão o dia do juízo final . Trata-se de mais uma  tentativa de manter  o mundo sob tensão, e de tentar reafirmar sua liderança duvidosa no campo da produção de energia nuclear,  já que metade do seu arsenal é do tempo da velha URSS . Para corroborar a encenação ,  no ano passado, assinou uma lei que retirava a ratificação pela Rússia do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT). São bravatas endereçadas, sobretudo,  aos EUA e a OTAN, cujos arsenais nucleares juntos é bem  superior ao seu e cujas tecnologias são mantidas sob reserva.

Na contramão das  Convenções Climáticas, que  estimula  a substituição da tecnologia nuclear até no campo energético, Putin se oferece para instalar "pequenas usinas nucleares ao longo do rio Amazonas", alegando ser  energia limpa.  Por menor que sejam essas unidades, elas geram resíduos não apenas atômicos (plutônio), como  poluem  as águas e são uma constante ameaça à biodiversidade e às     populações originárias  O plutônio que da origem a esses artefatos  nucleares é um  subproduto da fissão do urânio-238. No processo industrial , os átomos de urânio-238  capturam nêutrons e, através de uma série de decaimentos radioativos, dá origem ao plutônio-239. É aqui que está o segredo: o Pu-239 não é um lixo qualquer . Como material residual físsil ele é utilizado para a fabricação de  armas nucleares,  bombas, atômicas e até   de hidrogênio. 
 
Daí, a conexão com as "tramas imaginárias" de Mota  que recaem sobre os tais   "interesses mútuos"  no campo da energia  nuclear.  Sério que  ninguém se lembrou da Conferência Climática em novembro deste ano em Belém, no Brasil?. O Presidente brasileiro  parece  encantado com  os "Contos Russos".  Putin canta, dança  e toca piano para os convidados. Mas é de pouco riso. Um pouco diferente do velho  Stálin, que  era um piadista.

O  programa nuclear brasileiro é do tempo dos militares. Exigiu  complexos estudos no campo energético e ampla discussão com a sociedade. Envolve desde a descoberta no Brasil de reservas de urânio, mesmo associado a outros minerais, na Amazônia, no Ceará, no Maranhão e na Bahia.  Duas usinas foram implantadas em Angra dos Reis e já ilumina o Rio de Janeiro. A terceira está há 20 anos para ser concluída. O Brasil  tem também  uma  Fábrica de Combustível Nuclear (FCN) ligada à chamada Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Fica em Resende, no Rio . É lá que ocorre a etapa de enriquecimento isotópico do urânio, utilizando a tecnologia de ultracentrifugação. Desenvolvem-se ali  outras etapas do ciclo do combustível , como a reconversão do gás enriquecido em pó de dióxido de urânio, a produção de pastilhas e  montagem do combustível para as  usinas nucleares em operação e ... o submarino.

Até a assinatura dos tais "compromissos mútuos" de Lula com Putin, a política nuclear do Brasil não tinha nada a ver com os   russos.  Putin quer embarcar no trem andando. Mas com essa sua "folha corrida!..." . Nem a  China confia , mesmo  que esteja sempre assinando com eles  acordos e tratados . No Brasil, estariam colocando o carro adiante dos bois. Embora seja presidente do Brasil , o interlocutor do Brasil nesse assunto não parece ser a pessoa  mais credenciada para sair negociando um tema desses por aí. Pode criar um  problema com o vizinho .  A Argentina também tem um Programa Nuclear  . A vaidade exacerbada e uma ousadia obsoleta tem emperrado a governabilidade. Daí que  essas viagens   à Rússia e à China sobretudo, parecem  cheias de "jabutis". Vamos torcer para que sejam fantasias.  Mas não dá para acreditar que se trata de uma Lulapaloosa . O Irã queria nuclearizar seus aliados.

*Jornalista e  professor.

Nenhum comentário: