“Há uma luta de classes, sim. Mas é a minha classe, a classe rica, que está fazendo a guerra, e estamos ganhando".
— Warren Buffett, magnata estadunidense.
O governo Lula, quase tardiamente, ensaia algo que pode sugerir o início de uma reforma fiscal, cutucando os superlucros dos super-ricos. São o 1% que nos governa — na democracia e nas ditaduras, nos governos de direita e nos governos de centro-esquerda. É o grande capital, que controla a vida econômica e, por consequência, a vida política, nela incluídos os espaços do poder republicano.
Embora tímida, a proposta do governo pôs em pé de guerra a Faria Lima e suas
adjacências — a saber, o Congresso e a grande imprensa (aparelho ideológico da
classe dominante), os dois territórios privilegiados onde atuam seus agentes e
procuradores.
À margem dos poderes clássicos da República, a política econômico-financeira do
país foi posta sob o controle de burocratas onipotentes, nada obstante
despojados de delegação da soberania popular; abrigam-se sob o teto largo e
alto do Banco Central — a um tempo santuário e bunker do rentismo que
asfixia a economia nacional.
Tudo fica claro como a luz do sol quando nos damos conta de que os créditos da
dívida externa vão para as instituições financeiras (30%), para os fundos de
pensão (23%), para os fundos de investimentos (22%) e aplicadores estrangeiros
(10%).
Neste paraíso do capital especulativo em que nos tornámos, todo dia é dia de
festa na Faria Lima.
O ex-presidente do BC ao tempo de FHC diz e rediz, para gáudio dos
“especialistas” da TV, mestres da platitude, que a fonte da crise são os
salários dos aposentados — os quais, portanto, devem ser congelados por seis
anos ou mais. Um empresário, apresentado pelos grandes meios como “rei do ovo”,
reproduzindo preconceitos de setores consideráveis da classe média, proclama
que a fonte de nossas mazelas é o Bolsa Família, que, ao afastar o miserável da
miséria, “afastaria o povo da rede de trabalho”. Formado na mesma escola de seu
antecessor, o presidente do BC indicado por Lula defende a política de juros
altos. O último aumento foi aprovado por unanimidade.
No Congresso, a direita trafica o fim do piso constitucional das despesas com
educação e saúde — fundamentais para a população pobre, sempre chamada a pagar
a conta da miséria capitalista. Nada menos que 70% dos deputados federais são
contra o fim da escala de trabalho 6x1, e 53% são contra as restrições aos
altos salários e 46% contra a elevação do IR devido pelos super-ricos (pesquisa Genial/Quaest).
Porta-voz de uma classe dominante herdeira da escravidão e do latifúndio, as
grandes empresas de comunicação anatematizam como populistas (o que é
mesmo o “populismo”?) os mecanismos de proteção social construídos por este
país moldado na desigualdade. Mas, por óbvio, o silêncio se instala quando o
tema são os interesses da classe dominante.
Deixam de ser considerados gastos e não são considerados como agentes
inflacionários os R$ 518,2 bilhões destinados pelo Plano Safra (2025/2026) à
grande agricultura empresarial, da qual quase nada se exige como contrapartida.
Por outro lado, os recursos destinados ao financiamento da agricultura familiar
e à agroecologia (responsáveis por um quantum superior a 30% dos
alimentos que pousam na mesa dos brasileiros) somam apenas 5% desse total
ofertado ao agronegócio, o que claramente fala sobre o caráter do Estado de
classes.
De igual modo, não são considerados gastos os R$ 58,9 bilhões desviados da
União pelo continuado escândalo do “orçamento secreto” — instrumento de evasão
de recursos públicos para a ordem patrimonialista. Destinam-se, o mais das
vezes, ao financiamento de obras à margem de análise de necessidade ou
planejamento, livres de fiscalização — umas que chegam a ser concluídas, muitas
projetadas para não serem realizadas, permanentemente inconclusas para permanentemente
carecerem de recursos.
Nessa lógica perversa, tampouco são considerados gastos algo entre R$ 800 e R$
900 bilhões/ano (6% do PIB) destinados ao custeio de incentivos e isenções
fiscais surrupiados da União para a iniciativa privada, incluídos os R$ 20
bilhões que, por esse mecanismo, se desviam do SUS a cada ano.
No movimento de revogação, inconstitucional, do decreto presidencial que
alterava as alíquotas do IOF — acusado de aumentar a arrecadação quando o
“dever de casa” do governo seria reduzir “gastos” —, o Congresso volta a
aumentar os próprios gastos (onerando o déficit) ao criar 18 novas e
injustificadas cadeiras de deputados federais, a um custo ainda difícil de
estimar, pois aos novos deputados federais se somará uma caterva de novos deputados
estaduais (e seus respectivos gabinetes etc.) em nove estados.
Gastos, afinal, são só os investimentos sociais ou aqueles destinados ao
desenvolvimento do país.
A atual maioria do Congresso, com a servidão dos presidentes das duas Casas,
maquina contra a democracia sabotando o governo, transformando em fiapos a rede
de proteção social tão duramente tecida, atrasando por décadas os sonhos de
desenvolvimento nacional.
O “nós contra eles” — que tanto incomoda a classe dominante e seus
porta-vozes — aponta um caminho de reorganização da centro-esquerda, uma
redefinição de rumos para além do embate eleitoral que se avizinha. E dá
oportuna lição aos estrategistas do terceiro andar do Palácio do Planalto:
enfrentar o adversário é uma exigência da política.
***
O neoliberalismo faz a cabeça da esquerda — O governo do presidente Lula,
em perigosa concessão ao “ajuste fiscal” ditado pelo neoliberalismo e
assimilado acriticamente pela esquerda fazendária, inseriu o Bolsa Família no
cálculo de renda das famílias paupérrimas, assim excluindo desse benefício,
numa só tacada, milhões de miseráveis que, em muitos casos, dependem desse
benefício para sobreviver, ou para não cometer um ato de loucura. Isto em
país bem conhecido pelo presidente, porque dele originário, no qual
nada menos que 94 milhões de brasileiros (algo como 43% da população) estão
inscritos no CadÚnico, ou seja, vivem em situação de vulnerabilidade (pobreza
na maior parte dos casos) e dependem do Estado para sobreviver.
Lisboa é uma festa— Com a presença de cinco ministros do STF, 18 do STJ, cinco
do TCU, dezenas de parlamentares e mais ministros de Estado, secretários e
governadores, mesclados a uma gama de negociantes, teve lugar na última semana
mais uma edição do “Fórum de Lisboa”, que a crônica nacional batizou,
jocosamente, de “Gilmarpalooza”, em referência ao seu promoter, ilustre
decano do Supremo. Naturalizado pela imprensa nativa — ciosa do decoro e da
moralidade noutras circunstâncias —, o Fórum explicita sua vocação colonial já na
escolha da sede (afinal, por que nossas autoridades gostam tanto de debater
ditos problemas brasileiros em cidades estrangeiras com boas redes de hotéis
cinco estrelas? Quem paga a conta?). Na programação do último veraneio,
atrações como um debate “sobre relações de força internacionais” entre um
almirante português, o ex-comunista Raul Jungmann e o governador Tarcísio de
Freitas — pré-candidato da classe dominante à presidência do Brasil. Fica nossa
homenagem àqueles e àquelas que, convidados a participar da farra, declinaram.
*Com a colaboração de Pedro Amaral.
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