Taxação dos ultrarricos é debate internacional
Correio Braziliense
Requer atenção a proposta apresentada por sete ganhadores do Nobel de Economia, que defendem "uma taxa mínima de 2% sobre a fortuna dos bilionários" em todo o globo
A mais recente divergência entre os poderes Executivo e Legislativo no Brasil tem como principal pano de fundo a busca por justiça tributária. Enquanto o governo procura diminuir desigualdades, a partir de medidas como o aumento do IOF e a isenção do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil, a maioria do Congresso defende corte de gastos sem aumento de tributos, a chamada austeridade, como alternativa para equilibrar essa balança. Não se trata de embate apenas brasileiro.
Dados do Relatório Mundial sobre Desigualdade, publicado em 2022, indicam a necessidade de uma discussão internacional sobre a distribuição de renda. O levantamento mostra que apenas 10% da população global concentra 52% da renda dos países. "Em média, um indivíduo dos 10% mais ricos da distribuição de renda global ganha 87.200 euros (cerca de R$ 560 mil) por ano, enquanto um indivíduo da metade mais pobre da distribuição de renda global ganha 2.800 euros (cerca de R$ 18 mil) por ano", ressalta a publicação.
Nesse sentido, requer atenção a proposta apresentada por sete ganhadores do Nobel de Economia em um artigo publicado ontem no jornal francês Le Monde. Simon Johnson (2024), Daron Acemoglu (2024), Abhijit Banerjee (2019), Esther Duflo (2019), Paul Krugman (2008), George Akerlof (2001) e Joseph Stiglitz (2001) defendem "uma taxa mínima de 2% sobre a fortuna dos bilionários" em todo o globo.
A medida geraria cerca de US$ 250 bilhões (aproximadamente R$ 1,36 trilhão) em receitas fiscais, provenientes de apenas cerca de 3 mil pessoas, segundo cálculos do grupo. Esses valores seriam ainda maiores se estendidos a todos com patrimônio acima dos US$ 100 milhões (cerca de R$ 545 milhões). "Esse dispositivo é eficaz, pois combate todas as formas de otimização, independentemente da sua natureza. É direcionado, pois se aplica apenas aos contribuintes mais ricos e apenas àqueles que recorrem à otimização fiscal. E é necessário, porque é difícil pedir a qualquer grupo social que faça sacrifícios antes de garantir que os mais ricos não escapem da tributação", argumentam.
Vale lembrar que o Brasil já se posicionou favoravelmente à taxação dos ultrarricos quando presidiu o G20 no ano passado — a representação foi repassada à África do Sul em 2025. "Com total respeito à soberania tributária, nós procuraremos nos envolver cooperativamente para garantir que indivíduos de patrimônio líquido ultra-alto sejam efetivamente tributados. A cooperação poderia envolver o intercâmbio de melhores práticas, o incentivo a debates em torno de princípios fiscais e a elaboração de mecanismos antievasão, incluindo a abordagem de práticas fiscais potencialmente prejudiciais", lê-se na declaração final da cúpula, divulgada em novembro.
Para que a ideia dê certo, é preciso ressaltar os "mecanismos antievasão" citados na declaração. Nada adianta se apenas um ou dois países, ou até mesmo um bloco econômico, decidir por tal taxação de maneira isolada. Como já acontece com os chamados paraísos fiscais, é comum que detentores de enormes patrimônios procurem alternativas para burlar as regras contra a desigualdade.
A Europa é o maior exemplo. Lá, é contumaz a divisão do patrimônio de empresas a partir das chamadas holdings familiares, nas quais os lucros se acumulam sem a devida tributação. No Brasil, não é muito diferente, por exemplo, com o mercado das apostas esportivas, instalado em paraísos fiscais. A mudança desse paradigma requer muita vontade e articulação política. Mas, se a humanidade quer ter um futuro mais equilibrado, tal discussão precisa ser prioridade entre os detentores do poder.
O Globo
Desvincular reajustes do salário mínimo
mitigaria efeitos explosivos da demografia, sugere estudo
Chega a ser surreal a insistência do governo federal em evitar um debate maduro sobre os gastos públicos. As evidências se acumulam, os fatos se manifestam com teimosia e eloquência a cada dia maior, e as lideranças no poder ignoram a necessidade premente de conter a explosão das despesas previdenciárias e assistenciais. Sem nova reforma da Previdência, o gasto do INSS crescerá R$ 600 bilhões até 2040, quase 50% do patamar atual (R$ 1,15 trilhão), apenas em razão da pressão demográfica. Essa é a conclusão de novo estudo do economista Daniel Duque, do Centro de Liderança Pública (CLP).
Apenas o pagamento de aposentadorias e
benefícios alcançará 8,3% do PIB se nada for feito. “É praticamente um novo
orçamento inteiro de saúde pública ou o dobro do que o país investe em
infraestrutura”, diz ele. O envelhecimento da população é uma boa notícia, pois
viveremos mais. Mas tem ocorrido em ritmo mais rápido do que se previa. Com
menos jovens contribuindo e mais idosos, é obvio que o sistema não se sustenta.
Uma nova reforma da Previdência é inevitável.
A despeito da reforma de 2019, a deterioração
fiscal tem se agravado sobretudo em razão das contas da Previdência. Em
especial dos gastos com aposentadorias urbana, rural e Benefício de Prestação
Continuada (BPC), pago a deficientes ou idosos de baixa renda. Ao
envelhecimento populacional e às taxas baixas de contribuição resultantes do
desenho do sistema, soma-se um fator crítico: tais pagamentos, vinculados ao
salário mínimo, sofrem reajustes acima da inflação, gerando crescimento da
despesa acima dos limites do arcabouço fiscal e pressionando outros gastos.
O governo tem adotado medidas tíbias,
insuficientes para conter a escalada nas despesas previdenciárias. É o caso da
adequação dos reajustes do mínimo à regra do arcabouço, entre 0,6% e 2,5% além
da inflação. Há também eventuais pentes-finos para evitar irregularidades e
fraudes. Apesar de tudo isso, os gastos continuam explodindo.
Está claro – exceto para um governo que só
pensa em gastar – que é inviável manter aposentadorias e BPC vinculados ao
salário mínimo. Cerca de 70% dos beneficiários da Previdência recebem o mínimo,
por isso são contemplados pela regra. Cada real de aumento do mínimo eleva os
gastos em R$ 400 milhões. Os valores deveriam ser corrigidos pela inflação, que
manteria o poder de compra dos segurados.
Outro sorvedouro de recursos é a vinculação
dos pisos de Saúde e Educação à arrecadação. Duque estima que, com o
envelhecimento populacional e a queda na quantidade de jovens, seria possível
reduzir a despesa total sem diminuir o investimento por aluno. Ao mesmo tempo,
diz ele, haverá pressão maior por gastos em saúde. A regra de vincular ambos às
receitas se mostra inadequada para lidar com a realidade.
Soluções paliativas não resolvem, apenas
adiam a bomba fiscal. O governo precisa enfrentar com seriedade as raízes da
explosão nos gastos com aposentadorias e BPC. A desvinculação dos reajustes do
salário mínimo, ou mesmo mudanças nas regras de correção do mínimo, podem ser
medidas politicamente custosas. Mas o Planalto e o Congresso precisam ter em
mente que, se alguma delas for aprovada, a reação do mercado será imediata, com
impacto nos indicadores e no crescimento econômico, antes mesmo da próxima eleição.
É preciso agir rápido.
Apoio de Trump a Bolsonaro reflete
presidência contaminada por ideologia
O Globo
Lógica torta do americano não difere da que
levou Lula a condenar prisão de Cristina Kirchner na Argentina
Não têm cabimento as declarações do
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
em apoio ao ex-presidente Jair
Bolsonaro. Trump afirmou que o Brasil “está fazendo uma coisa terrível”
contra Bolsonaro ao processá-lo por tentativa de golpe. “Ele não tem culpa de
nada, exceto de ter lutado pelo povo”, escreveu numa rede social. Afirmou ainda
que acompanhará de perto a “caça às bruxas” e disse que o único julgamento que
importa é a eleição.
O Brasil é uma democracia com Poder
Judiciário independente. Não cabe a Trump nem a nenhum outro mandatário
criticar suas decisões. Bolsonaro não pode ser julgado pelos eleitores porque
está inelegível, tampouco é vítima de caça às bruxas. É réu em processo no
Supremo Tribunal Federal (STF), acusado de ser o líder de uma tentativa de
golpe de Estado com o objetivo de impedir a posse do presidente eleito, Luiz
Inácio Lula da
Silva. Em depoimento no mês passado, confirmou os fatos comprometedores
apurados na investigação exaustiva da Polícia Federal. Tudo tem corrido dentro
das regras democráticas – ou das “quatro linhas” da Constituição, como o
próprio Bolsonaro costuma dizer. Não faz nenhum sentido insinuar perseguição
política.
As declarações de Trump refletem o tipo de
líder que ele é: alguém guiado por preferências pessoais e ideologia, em vez de
por preocupações institucionais e pelos interesses de seu país. Nisso não é
diferente do próprio Bolsonaro, tantas vezes acusado de usar o Estado e seus
braços em benefício próprio. Nem de Lula que, embora tenha criticado Trump com
veemência, comete erros semelhantes quando se trata de agradar aos
“companheiros” com quem tem afinidade ideológica.
O episódio mais recente dessa faceta de Lula
foi sua visita, na semana passada, à ex-presidente da Argentina Cristina
Kirchner, que cumpre pena de prisão domiciliar depois de ser condenada por
corrupção. Como a mensagem de Trump, a visita em si já era um desrespeito à
Justiça argentina. Mas Lula foi além. Ao lado do Prêmio Nobel da Paz Adolfo
Pérez Esquivel, posou para foto com um cartaz “Cristina libre”. Uma lógica
torta semelhante rege o apoio de Trump a Bolsonaro.
Para além de inflamar a militância, na
prática as declarações de Trump são inócuas. Integrantes do STF ouvidos pelo
GLOBO disseram que fazem parte de uma agenda política e não terão nenhum
impacto no julgamento de Bolsonaro. Todas as regras do processo legal têm sido
cumpridas à risca. Bolsonaro e demais réus têm tido direito a ampla defesa. Nem
poderia ser diferente. Trump pode falar o que quiser, mas o Brasil é um país
soberano, e as instituições brasileiras têm se mostrado consistentes na defesa
da Constituição. O julgamento de Bolsonaro e outros réus seguirá seu rumo, para
além de qualquer opinião estapafúrdia de quem quer que seja. Como deve ser numa
democracia.
Custo crescente da saúde torna mais urgente o
ajuste fiscal
Valor Econômico
O crescimento da necessidade de financiamento
das ações de saúde tende a comprometer já em 2026 o teto de despesas do
arcabouço fiscal
Um estudo recente da Instituição Fiscal
Independente (IFI) sobre os crescentes custos para prover serviços de saúde à
população mostra como, para além de garantir a sustentabilidade da dívida
governamental, o ajuste das contas públicas é urgente para assegurar o acesso
da população a serviços básicos.
Os limites orçamentários já se impõem no
curto prazo. O crescimento da necessidade de financiamento das ações de saúde
tende a comprometer já em 2026 o teto de despesas do arcabouço fiscal, se não
houver cortes em outras áreas ou o governo não usar artifícios que, na prática,
contenham as despesas efetivas nessa área essencial.
O quadro tende a se tornar mais dramático ao
longo do tempo, refletindo o envelhecimento da população, a necessária
ampliação de serviços às parcelas hoje desatendidas e a alta dos custos de
saúde provocada pela adoção de novas tecnologias.
Muitas vezes, o tema da responsabilidade
fiscal é tratado apenas sob o ponto de vista da solvência do governo. É
compreensível: com uma dívida bruta crescente, que já se encontra em 76,1% do
Produto Interno Bruto (PIB), nada parece mais urgente do que o seu controle.
Uma política fiscal responsável é essencial para permitir a queda dos juros,
que superam 7% ao ano em termos reais, e abrir espaço para o setor privado
investir.
Mas a sustentabilidade fiscal também
significa manter as contas públicas sob controle — fazendo escolhas difíceis do
lado das despesas, por meio de reformas estruturais — para garantir a
continuidade, ao longo do tempo, de políticas públicas fundamentais.
O relatório da IFI faz diversas simulações
sobre a evolução das despesas com a saúde nos próximos 45 anos, cobrindo o
período de 2025 a 2070. No geral, o documento adota premissas bem
conservadoras, como a estimativa de um crescimento real de longo prazo da
economia de 2,1%, acima do desempenho das últimas décadas.
Também adota como ponto de partida o nível
atual de despesas governamentais, que é inferior ao dos demais países da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Embora o Brasil
gaste o equivalente a 9,8% do Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, acima da
média de 9,2% das demais economias, a despesa per capita é bem inferior. Os
gastos brasileiros somam US$ 1.573 per capita, ante US$ 4.986 nas demais
economias da OCDE.
A partir da Constituição de 1988, o Sistema
Único de Saúde universalizou o acesso ao atendimento a toda a população. Mas,
apesar do aumento das despesas no Brasil, apenas 45% delas são feitas pelo
setor público, ante uma média de 76% entre os países da OCDE.
Um exercício contrafactual do estudo mostra
que, se o Brasil fosse ampliar o nível de atendimento para igualar ao dos
demais países da OCDE, o gasto total com saúde deveria subir a 19% do PIB. Isso
significa que, já nas condições atuais, a saúde está subfinanciada no Brasil,
comparando com outros países. Nas próximas décadas, há um risco de a situação
se agravar se o país não fizer as escolhas adequadas sobre como alocar os
recursos orçamentários.
O estudo, de autoria do analista da IFI
Alessandro Casalecchi, assume a hipótese de manutenção do padrão de gasto atual
— e verifica o que vai acontecer com essa rubrica orçamentária ao longo do
tempo, comparando-a com os limites do arcabouço fiscal.
Os cálculos indicam que, nos próximos dez
anos, as necessidades de financiamento da saúde tendem a aumentar a uma
velocidade média de 3,9% ao ano acima da inflação. Isso significa um acréscimo
médio real de R$ 10 bilhões na despesa. Já o arcabouço fiscal admite uma
expansão anual de 2,5% nas despesas totais, também em termos reais. Isso faz
com que, para acomodar os gastos necessários com saúde, será preciso conter
outras despesas.
O estudo mostra, de forma contraintuitiva,
que a demografia não é o principal fator de pressão nas despesas com saúde. O
envelhecimento da população pressiona, sim, as despesas, já que os gastos com
atendimento ambulatorial, hospitalização e cuidados tendem a aumentar. Mas,
como mostra a experiência de outros países, a taxa de expansão não é
exponencial. Além disso, a população brasileira terá um pico previsto para 2047
e, a partir daí, entrará em declínio.
A fonte de pressão mais importante é o
aumento de custos provocado pela adoção de novas tecnologias, que já vem
afetando a inflação da saúde. A média da diferença entre o Índice de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA) e o Fipe Saúde foi de 1,27 ponto percentual entre 2004
e 2015, período mais estável. Mais recentemente, refletindo a pandemia, subiu a
2,82 pontos percentuais, de 2022 a 2024.
Como discutido no próprio estudo, as novas
tecnologias podem ter efeitos ambíguos nos custos da saúde. Inovações como o
atendimento remoto ou o uso de inteligência artificial podem baratear alguns
procedimentos. Por isso, nas suas estimativas, o estudo usa uma taxa mais
conservadora, supondo que a inflação da saúde supere o índice de preços em
apenas 1 ponto percentual. Apesar de todos os cuidados e ponderações, porém, os
resultados mostram que os gastos com saúde serão crescentes.
A IFI, com seu estudo, apenas cumpre a sua
função de apresentar cenários, sem propor soluções ou entrar no mérito das
escolhas que governo e Congresso devem fazer. Essa é uma discussão inadiável.
Um ponto essencial é que o estudo assume como
premissa a manutenção do atual arcabouço fiscal — que, em si, leva a uma
consolidação muito lenta das despesas, num ritmo aquém do que seria necessário
para reconquistar a confiança dos investidores na solvência da dívida pública.
A má condução orçamentária já vem
comprometendo a gestão pública, e seus efeitos tendem a se agravar. Limitada
pelo pouco apetite do governo e do Congresso por um ajuste fiscal genuíno, a
estratégia atual consiste em enviar orçamentos fiscais irrealistas ao Congresso
para, no exercício seguinte, fazer o controle das despesas na boca do caixa.
Isso já causa transtornos, com o contingenciamento de despesas de agências regulatórias, que inviabiliza atividades essenciais do Estado. Será preciso adotar soluções estruturais — definindo onde, como e quando gastar — para garantir solvência do governo e manter suas atividades e políticas sociais essenciais.
Problemas do presidencialismo não isentam
Lula de erros
Folha de S. Paulo
Crise do IOF reflete fortalecimento sem
responsabilidade do Congresso, mas também ações do petista que dificultam
governo
A recente crise entre o governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT) e o Congresso
Nacional, para a qual foi arrastado o Supremo Tribunal Federal (STF), avivou um
proveitoso debate acerca dos problemas do presidencialismo brasileiro.
Governar o Brasil decerto não é fácil. Normas
permissivas trazidas pela redemocratização levaram a uma proliferação de
partidos políticos com assento no Congresso, o que obriga o presidente da
República a formar coalizões amplas para conseguir maiorias, em geral por meio
da distribuição de cargos e verbas.
Nos últimos anos, o Parlamento assumiu maior
protagonismo na agenda nacional e controle exagerado sobre recursos do
Orçamento, tornando-se menos dependente de barganhas com o Planalto —sem, no
entanto, arcar com responsabilidades proporcionais às novas prerrogativas.
Como
resumiu o cientista político Marcus André Melo, em sua coluna na Folha,
há duas leituras rivais sobre o atual impasse entre governo e Legislativo em
torno da elevação do IOF, ora
levado para a arbitragem do Supremo.
Uma sustenta que o presidencialismo de
coalizão tornou-se disfuncional com o enfraquecimento do Executivo; outra, sem
negar as transformações do presidencialismo no país, dá maior ênfase à gestão
deficiente da coalizão atual —em particular a recusa do PT em compartilhar
poder decisório com os partidos aliados.
De fato, como
já apontou este jornal, não contribui para a solidez da aliança que um
partido com meros 13% dos assentos no Congresso tome para si quase um terço dos
ministérios do governo, aí incluídos Fazenda, Casa Civil, Relações
Institucionais, Desenvolvimento Social, Saúde e Educação, deixando para os
parceiros quase só pastas periféricas.
Essa desproporcionalidade faz ainda menos
sentido no caso de um presidente eleito por margem minúscula de votos e taxas
de aprovação popular que caíram de modestas para baixas.
Há mais, contudo. Desde a campanha eleitoral,
era evidente a inconsistência dos planos de Lula para seu terceiro mandato, em
especial na área decisiva da economia. O
resultado foram poucas ideias além de ressuscitar programas e bandeiras
petistas, investir inutilmente contra reformas aprovadas em outros governos e
promover uma elevação brutal de gastos públicos.
A alta do IOF —agora convertida de modo
farsesco em cruzada por justiça social— foi de início apenas medida canhestra
para lidar com as consequências das más escolhas econômicas, que impulsionaram
a inflação,
os juros e
a dívida pública.
Empecilhos anômalos à governabilidade devem
ser enfrentados. O número de partidos tem caído graças a providências como a
cláusula de desempenho. O avanço das emendas parlamentares precisa ser contido.
Inexiste, de todo modo, sistema político imune a falhas de funcionamento. Aqui,
Lula nem mesmo pode dizer que as desconhecia.
Há mais a ajustar nos planos de saúde
Folha de S. Paulo
Novas regras facilitam proteção do usuário,
mas ainda não resolvem problemas como excesso de regulação e judicialização
São bem-vindas as novas regras da Agência
Nacional de Saúde Suplementar
(ANS) para planos de saúde. Entre as mudanças estão a obrigatoriedade de a
operadora esclarecer
por escrito a razão para recusar uma cobertura e o estabelecimento de
prazos mais curtos para respostas conclusivas às solicitações.
São medidas que facilitam
a defesa do consumidor. Não há nada mais cruel do que uma longa espera
quando a vida está em jogo.
As novas normas, contudo, ainda estão aquém
do necessário para melhorar o sistema, que segue trajetória pouco sustentável.
Em alguns casos, há regulação demais. Os
planos individuais têm coberturas e reajustes tão severamente controlados pela
ANS que tal produto praticamente desapareceu do mercado.
As operadoras fazem o possível para que novos
contratos se deem na modalidade de planos coletivos, empresariais ou por
adesão, nos quais têm mais liberdade para negociar, além da possibilidade de
rescindir o trato se julgarem que há prejuízo —basta um aviso prévio de 60
dias.
Quando o segurado adere por meio de uma
entidade de classe ou de um grande empregador, com boa capacidade de
negociação, até consegue algumas proteções. Mas muitos não se qualificam para
esses contratos e se veem compelidos a criar empresas fictícias para adquirir
um plano.
É sobre esse contingente que as operadoras
impõem cláusulas draconianas e reajustes imprevisíveis, que o cliente não tem
como recusar ou modificar. Para esses, há regulação de menos.
Seria preciso encontrar um ponto ótimo que
preserve tanto a viabilidade econômica dos planos quanto os direitos
fundamentais de pacientes e que evite a proliferação de tantas modalidades.
Quem precisa de um plano deveria obtê-lo
usando só seu CPF, sem ter de recorrer a associações e sindicatos ou
criar um CNPJ.
Planos de saúde combinam poupança (para
consultas e exames rotineiros) com seguro (para situações mais raras, como
acidentes e cirurgias complexas). As probabilidades desses eventos são, em
princípio, mensuráveis.
Por óbvio, é necessário que haja
previsibilidade para o cálculo atuarial funcionar. Por isso é fundamental
conter as fraudes, que atingiram alto nível de profissionalização, a
judicialização que amplia coberturas para além do que foi contratado e as benesses
que o Congresso e a ANS não cessam de incorporar aos planos.
É sempre possível incluir mais coberturas, claro. Nesse caso, entretanto, não faz sentido reclamar dos aumentos de mensalidade muito acima da inflação.
O Estado contra o cidadão
O Estado de S. Paulo
Assassinato do marceneiro Guilherme Ferreira
escancara não só o despreparo da PM paulista, como a falência de um modelo de
segurança que adota a barbárie como padrão de atuação policial
Numa democracia liberal, como é a brasileira,
presume-se que as leis e as instituições sirvam para proteger os cidadãos do
arbítrio do Estado. No entanto, a julgar pelo ultrajante caso de um rapaz negro
assassinado em São Paulo por um policial militar que o confundiu com um
assaltante só porque a vítima corria para pegar um ônibus depois do trabalho,
alguns cidadãos, a depender da cor da pele e da condição financeira, estão
totalmente à mercê de um Estado que não os reconhece como titulares de
direitos. Para o marceneiro Guilherme Dias Santos Ferreira, de 26 anos, a
democracia liberal não existe.
Tudo nesse caso prova a seletividade do
aparato estatal na aplicação das leis e dos princípios constitucionais.
Primeiro, o policial militar que atirou contra Guilherme, o cabo Fabio de
Almeida, que estava de folga, aparentemente contrariou todos os manuais de
conduta policial numa sociedade que se presume civilizada. Conforme se vê nas
abundantes e claras imagens disponíveis, o agente não pretendia prender
ninguém, e sim executar aquele que julgava ter tentado roubar sua moto momentos
antes. Mesmo que tivesse sido o caso, isto é, mesmo que o marceneiro tivesse
realmente tentado roubar sua moto, o cabo da PM não poderia ter atirado num
suspeito desarmado. Num Estado em que prevalece a presunção de inocência, o
braço armado desse mesmo Estado deve prender o suspeito, e não o executar com
um tiro na cabeça no meio da rua.
Mas a violência estatal contra o cidadão
Guilherme Ferreira não parou aí. Conduzido a uma delegacia, o cabo Fabio de
Almeida contou com a gentileza do delegado Kauê Danillo Granatta, do
Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil, que
resolveu tipificar o crime, pasme o leitor, como “homicídio culposo”, cuja pena
é de detenção de um a três anos. Por essa razão, o policial militar foi solto
após pagar fiança no valor de R$ 6,5 mil. Não se pode condenar quem veja nessa
esdrúxula tipificação – afinal, o erro sobre a pessoa não exclui o dolo – uma
manobra de acobertamento. Um Estado em que criminosos que vestem farda são
protegidos não é um Estado nem liberal nem democrático. É um Estado falido, em
que prevalecem as relações pessoais e o poder do mais forte.
Embora tenha sido um caso de flagrante abuso
policial, coroado por uma inaceitável tipificação do crime, nem o governador de
São Paulo, Tarcísio de Freitas, nem seu secretário de Segurança Pública,
Guilherme Derrite, se pronunciaram, passados dias do acontecido – seja para
confortar a família da vítima, seja para cobrar punição exemplar, seja para
prometer alguma providência para que isso não se repita. Silêncio absoluto.
Essa talvez seja a pior forma de violência do
Estado contra seus cidadãos: tratá-los como se fossem indignos até mesmo de
algumas palavras de pesar quando morrem pelas mãos de seus agentes, enquanto
estes gozam de impunidade escandalosa. Tal comportamento espelha uma visão
absolutamente distorcida do que vem a ser segurança pública.
De uns anos para cá, aos olhos de alguns
policiais de São Paulo, se um homem negro, como era Guilherme Ferreira, correr
na rua, automaticamente passa a ser suspeito de algum crime, fazendo letra
morta do princípio constitucional da presunção de inocência. O homicídio de
mais um inocente praticado por um policial lança luz, é claro, sobre o
despreparo técnico e emocional de alguns integrantes da PM paulista, outrora
conhecida como a mais bem equipada e treinada do País. Longe de representar um
lamentável erro episódico, a morte do trabalhador é o corolário trágico de uma
construção institucional, e não só fruto do livre-arbítrio do guarda na
esquina.
Se a PM de São Paulo passou a agir de modo
truculento e fatalmente inconsequente, sob o signo de um espírito de
valorização da violência e desprezo pela vida humana, é porque muitos policiais
passaram a se sentir autorizados a agir assim por seus superiores – a começar
pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite.
Do irremediável sr. Derrite não há mais o que
dizer, e é incrível que ainda esteja no cargo. Já do sr. governador, que se
apresenta como um democrata, esperava-se mais.
O bode expiatório dos Correios
O Estado de S. Paulo
Presidente dos Correios deve cair após
prejuízo e pedido de socorro bilionário ao Tesouro, mas é difícil acreditar que
o executivo tenha feito algo sem o conhecimento e o aval de Lula da Silva
O presidente dos Correios, Fabiano Silva dos
Santos, entregou sua carta de demissão na semana passada. O pedido ainda será
analisado pelo presidente Lula da Silva, mas sua renúncia se tornou questão de
tempo depois que a empresa registrou um prejuízo de R$ 1,7 bilhão no primeiro
trimestre deste ano. Seria fácil culpar Fabiano Silva dos Santos por um
resultado tão desastroso – e, em última instância, a responsabilidade é mesmo
do presidente da empresa –, mas também seria incoerente, pois, não faz muito tempo,
o governo defendeu sua atuação.
Em janeiro, a ministra da Gestão e da
Inovação, Esther Dweck, deu uma entrevista coletiva para justificar o
estrondoso déficit de R$ 6,7 bilhões registrado pelas empresas estatais
federais que não dependem do Tesouro Nacional para se sustentar. Desse total,
os Correios foram responsáveis por R$ 3,1 bilhões. À época, a ministra, ao lado
de Fabiano, diminuiu a importância do rombo. Segundo ela, os Correios estavam
com um plano de investimentos em curso para ampliar sua presença no mercado e
em breve retomariam sua trajetória positiva.
Mais que uma promessa, era puro devaneio. O
problema dos Correios era bem maior do que o governo estava disposto a admitir.
A culpa não foi apenas da famosa “taxa das blusinhas”, que o governo impôs
sobre importações de produtos chineses baratos e que, de fato, teve impacto no
faturamento. Tampouco foi o custo de manutenção dos milhares de imóveis que a
empresa tem em todo o País. A questão central é que as receitas da empresa
simplesmente não são suficientes para arcar com o tamanho de suas despesas, e
isso não se reverteria mesmo que os Correios investissem pesadamente em
tecnologia, logística e centros de distribuição para disputar o mercado com
concorrentes de peso.
A vacância da presidência dos Correios será
politicamente útil neste momento. Aparentemente, o ministro da Casa Civil, Rui
Costa, enxerga na saída de Fabiano uma chance de posar de fiscalista. Teria
partido dele a exigência de que os Correios adotassem o plano de reestruturação
ao qual Fabiano demonstrou resistência. É de perguntar por que o mesmo governo
concordou com a realização de um concurso público dos Correios no fim do ano
passado. Também cabe questionar se o Executivo acha mesmo que fechar algumas agências,
vender imóveis e abrir programas de demissão voluntária, como quer Rui Costa,
vai salvar a empresa.
O mais provável é que o erro de Fabiano tenha
sido a admissão de que os Correios precisarão de um aporte bilionário para
conseguir se sustentar neste ano e no próximo, como revelou a Folha de
S.Paulo. É o tipo de notícia da qual o governo Lula da Silva não precisava
neste momento, pois evidencia que nada mudou na visão que o PT tem sobre o
papel das empresas públicas na economia.
Tidas pelo lulopetismo como um vetor do
desenvolvimento, as estatais são estimuladas a gastar muito além de suas
possibilidades, independentemente dos resultados financeiros. Mas há uma
diferença considerável entre não dar lucro e gerar um prejuízo bilionário. Em
uma empresa privada, isso seria intolerável para os acionistas e o Conselho de
Administração. Em uma empresa pública, no entanto, o PT avalia que é obrigação
do governo socorrê-la com dinheiro do contribuinte.
O pior é que, na situação em que os Correios
estão, nem mesmo um aporte bilionário pode ser suficiente. Se o dinheiro for
utilizado para bancar despesas correntes, a empresa passará a ser dependente do
Tesouro Nacional. E para fazer isso sem descumprir as regras fiscais, o
Executivo teria de cortar R$ 20 bilhões para incorporar todos os gastos da
empresa ao Orçamento-Geral da União, o que não parece crível para um governo
que faz malabarismos para tentar cumprir a meta de déficit fiscal zero neste
ano.
É difícil acreditar que Fabiano Silva dos
Santos, advogado que participou da equipe de transição do governo e que está à
frente dos Correios desde janeiro de 2023, tenha feito algo na empresa sem o
conhecimento e o aval de Lula da Silva. Fato é que o insaciável presidente do
Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), tem a pretensão de indicar um sucessor na
empresa, e o governo precisa desesperadamente de um bode expiatório.
A arte de alienar parceiros
O Estado de S. Paulo
Com novo anúncio tarifário, Trump volta a
demonstrar desprezo por aliados históricos
No mais recente capítulo de sua errática
guerra tarifária, o presidente dos EUA, Donald Trump, enviou cartas a 14 países
ameaçando impor tarifas de importação que variam de 25% a 40% a partir de 1.º
de agosto. Entre os alvos estão parceiros históricos como Japão e Coreia do
Sul.
Por meio da Truth Social, a rede social da
qual é proprietário, Trump disparou missivas praticamente idênticas tratando
como favor as ameaças que mais uma vez lança sobre países com os quais os EUA
mantêm déficits comerciais – déficits que, na visão do presidente americano,
são estratégias deliberadas dos parceiros comerciais para enfraquecer os EUA.
Pouco mais de três meses após o malfadado
“Dia da Libertação”, no qual anunciou tarifas e prazos que já mudaram algumas
vezes, boa parte das ações de Trump perdeu a credibilidade. São tantas as idas
e vindas que o termo “Taco” (“Trump Always Chickens Out”, ou “Trump sempre
amarela”) popularizou-se.
Mas se nem tudo, ou quase nada, que Trump diz
pode ser comprado pelo valor de face, suas ações aparentemente desarrazoadas
geram consequências, entre as quais volatilidade nos mercados globais e
incertezas nas empresas, sobretudo as de menor porte, que apesar de empregarem
milhões de pessoas mundo afora não conseguem lidar com o caos semeado por Trump
com a mesma eficiência e agilidade que aquelas de maior porte.
Além disso, as constantes ameaças do
presidente americano atropelam relações estratégicas forjadas ao longo de
décadas com países que compartilhavam os valores ocidentais com os EUA.
É o caso do Japão, a quem Trump agora ameaça
com tarifas de 25% e país com o qual os EUA mantêm uma sólida aliança desde o
fim da 2.ª Guerra Mundial, que se estende do plano militar ao comercial.
Na visão limitada de Trump, uma relação entre
países só é satisfatória quando os EUA têm superávit comercial. Como o Japão é
um dos principais exportadores de veículos para os norte-americanos, merece ser
punido, acredita Trump. O presidente americano, contudo, parece não ter levado
em conta o papel crucial que o Japão desempenha na Ásia como contraponto à
China – país que efetivamente ameaça os EUA na seara comercial.
Curiosamente, enquanto o Japão e outros
aliados, como Coreia, Canadá e México, são tratados por Trump como países que
prejudicam os EUA, a Rússia do ditador Vladimir Putin é uma das poucas nações
que escaparam, até agora, da sanha tarifária do republicano.
Um dos pilares do Brics, a quem Trump agora
ameaça com tarifas adicionais de importação de 10% (em algum momento a ameaça
foi pior, de 100%), a Rússia é a grande ausente da confusão tarifária armada
pelo republicano.
Quem sabe agora que se revelou “desapontado” com Putin, que, ora vejam, não se esforça para pôr fim à guerra na Ucrânia, Trump deixe de fustigar aliados e passe a jogar duro com os verdadeiros vilões.
Uma questão de soberania
O Povo (CE)
A preocupação de Washington é justamente a
motivação do Brics: a construção de um mundo multipolar, em que o Sul Global
tenha mais importância
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva
acertou ao responder com assertividade à tentativa do presidente dos Estados
Unidos, Donald Trump, de intervir em temas internos do Brasil, um
assunto que está sob julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF).
Sem referir-se diretamente à Corte, mas cujo
endereçamento não deixa dúvidas, Trump escreveu em uma rede social que "o
Brasil está fazendo uma coisa terrível" com Jair Bolsonaro. Segundo
essa interpretação bizarra, o ex-presidente seria perseguido, "dia após
dia, noite após noite, mês após mês, ano após ano! Ele não é culpado de nada,
exceto por ter lutado pelo povo", escreveu Trump.
Em entrevista coletiva ao fim da cúpula
do Brics, na segunda-feira, Lula disse que não ampliaria seus comentários, mas
que não aceitaria "palpites" estrangeiros sobre assuntos internos.
Antes, ele já havia declarado que o Brasil é
um país soberano, que não aceita interferência ou tutela "de quem
quer que seja", acrescentando que "possuímos instituições sólidas e
independentes. Ninguém está acima da lei, sobretudo os que atentam contra a
liberdade e o estado de direito".
Breve retrospectiva lembra não ser esta a
primeira vez que a Casa Branca interfere diretamente em um país
soberano, intimidando inclusive com o uso da força militar. Trump já ameaçou
"tomar" a Groenlândia (região autônoma da Dinamarca) e o Canal do
Panamá, e também "anexar" o Canadá.
Várias ações de Trump demonstram disposição
de executar o que ele verbaliza, contrariando a tese de que seria
apenas uma "tática de negociação".
Assim, mesmo não estando presente na cúpula
do Brics — os Estados Unidos não fazem parte do bloco —, Trump terminou sendo
uma das principais pautas da cúpula, ao fazer ataques diretos ao grupo.
Ele ameaçou com taxação de 10% os produtos de países que se alinharem "às
políticas antiamericanas do Brics".
O presidente Lula reagiu dizendo não ser
"correto" que Trump ameace países pela internet — e que o
mundo não precisa de um "imperador". A China avisou que "as
tarifas não devem ser usadas como ferramenta de correção e pressão" — e
que o Brics defende a "cooperação ganha-ganha".
Os integrantes do grupo reafirmaram que o seu
propósito é defender a cooperação multilateral, e que o grupo não se
caracteriza como anti-Ocidente ou antiamericano, mas tem como objetivo
fortalecer a liderança dos países emergentes.
Mas tudo indica que os ataques de Trump ao Brics — como ele faz com todos os organismos multilaterais —, são de tal monta que tornará difícil a convivência entre o bloco e os EUA. A preocupação de Washington é justamente a motivação do Brics: a construção de um mundo multipolar, em que o Sul Global tenha mais importância.
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