O Globo
Não lembro ao certo, mas acho que aprendi
sobre ódio com Lula. Sob seus discursos, exercitei minha raiva contra o PSDB,
contra o ex-presidente Fernando Henrique e vi o Brasil cindido em dois na
grotesca oposição Nordeste x Sudeste. Com olhos ensandecidos, ouvi sobre a
herança maldita dos tucanos.
Enfim, não sei se agradeço, mas Lula me instruiu no ódio. Não nasci assim, era apenas um rapaz que amava Noel Rosa e Tom Jobim. Com ele, tudo mudou: o ódio passou a ser valor moral. Meu pote de amargura agora é abastecido pela campanha de pobres x ricos. Consumo os posts, os vídeos do “BBB” e reenergizo o coração de negatividade com as mensagens assopradas pelo guru Sidônio. Infelizmente, não fui avisado pela galera do MST para invadir a sede do Itaú-BBA — embora, naquela hora, eu estivesse com o trabalho em atraso.
Andava desanimado, com ódio cessante, porque
odiar apenas Bolsonaro já cansou. Sou mole, respeito os doentes. Enraivecer-me
com Eduardo
Bolsonaro não basta, é um bobão entreguista. Você acha possível
acordar pela manhã, cuspindo fogo, com Sóstenes
Cavalcante na cabeça? Vejo o paletó dele apertado na barriga, botões à
prova, e penso se dízimo traz felicidade. A torcida pela prisão da Carla
Zambelli deixou há muito de causar frisson, é hoje mais uma questão
feminista do que petista. Uma mulher solitária e desarmada, foragida no Norte
da Itália,
escondida em cidades belíssimas, com aquela qualidade de molhos, dá, sim, é
inveja. Pior bocado passou o Queiroz, acantonado em Atibaia, um recanto
aspergido por música sertaneja.
Como se vê, não são fatos mobilizadores. Até
que Sidônio surgiu para salvar a lavoura. Ele tem pedigree: traz o nome de São
Sidônio, bispo, poeta e diplomata, um tipo epistolar que documentou o final do
Império Romano. Portanto a chegada dos bárbaros. A cidade de origem do nome,
Sidon, aparece na Bíblia, apresentada como símbolo de riqueza e arrogância.
Tanta ascendência nobre me convenceu a embarcar na canoa de pobres x ricos. Ou,
como agora ordenam os canais governamentais, “Somos 99%”. Sempre é bom estar ao
lado da maioria, vai que a coisa dá errado.
Lula é um animal político, sempre dizem, teve
habilidade e faro fino de escapar de acusações, legítimo peixe ensaboado.
Condenado, descondenado, conseguiu a proeza de grudar no juiz o adjetivo que
lhe pespegou ao enviá-lo à cadeia. Parece, era tudo boato. Triplex, pedalinho e
sítio em Atibaia, como ainda os R$ 9 milhões (em 2017) congelados em sua conta
de previdência privada. Valores que o colocam, fácil, do outro lado do balcão,
entre o 1%.
Até que seu ódio fez brotar um Bolsonaro das
fileiras do fundo da Câmara. Deu-lhe estofo, discurso. Difícil haver criação
mais tosca, mas, vindo da narrativa petista, é o que temos para o jantar. A
raiva destinada a Bolsonaro — e fui seduzido a detestar o capitão — deu a Lula
outro mandato, o terceiro, e o truque parecia se esgotar até que Trump deu
sobrevida ao objeto da cólera.
Das profundezas petistas, ressurgiu — nada se
inventa de novo por aqui — o mote sempre relembrado por Tom Jobim: o Brasil tem
raiva de sucesso. Embora nunca tenha lido, Lula passa a crer na boutade de
Balzac, segundo a qual atrás de uma grande fortuna sempre há um crime. Vem daí
o desconforto com o agronegócio brasileiro, um setor de alta produtividade. Até
os evangélicos entram na dança dos incréus por difundir a filosofia do
empreendedorismo. Que coisa chata esse pessoal querer ser o próprio patrão! Como
tomar imposto sindical deles?
Por anos, Lula nos ensinou a odiar os
patrões, os rentistas, os poderosos, o PSDB e agora, enfim, estamos prontos
para a guerrilha de pobres x ricos. Já baixei a roupa dos cabides, joguei um pó
nas botas. Caiu por terra a promessa de picanha e cerveja, uma pena. Agora é
luta, companheiro.
Pela manhã, lembro quanto Lula inspira como
exemplo humano. Migrante pobre, nordestino e de pouca educação, pendurado num
sindicato (onde prestou bons serviços à democracia), depois num partido, com
mesada e casa garantida, eleito três vezes à Presidência, está na situação
desconfortável de poder enviar a patroa em viagens internacionais sem agenda
definida ou contrapartida social. Vivenciou o que se chama de ascensão
econômica. Está certo, então, em ensinar o ódio aos outros, que passa a ser
ferramenta de enriquecimento.
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