O desequilíbrio externo é o problema n.º 1 da economia brasileira. Se não for equacionado, tem potencial para provocar sérios abalos na estabilidade e no emprego. Entre suas causas mais importantes há a crônica sobrevalorização cambial e o elevado custo Brasil, ligado à carga tributária descomunal e às deficiências da infraestrutura. Não tenhamos ilusões: o enfrentamento dessas questões ocupará os melhores esforços do próximo governo.
Existe uma terceira família de causas, sistematicamente subestimada: a radical ausência de uma política de comércio exterior, essencial para promover tanto nossas exportações como o aumento da competitividade da economia, via maior acesso a mercados e integração a cadeias produtivas internacionais.
Quando fui nomeado ministro do Planejamento pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, um jornal argentino chegou a me classificar de "enemigo" daquele país, o que, é evidente, não era verdade. O que pesava eram minhas críticas à ideia do Mercosul, que nascera nos governos Collor e Menem, quando ambas as economias estavam enfraquecidas pela superinflação. Apareciam como modernos e audazes, dispostos a tudo para aggiornar o sul da América do Sul à moda das integrações econômicas do pós-guerra. A novidade erradamente invocada era o Nafta, acordo de livre-comércio EUA-Canadá-México.
Apesar de Collor ter deixado o governo e do sucesso interno de Menem, que poderia dispensar factoides externos, acreditei na inércia que, por vezes, cerca ideias tortas até materializá-las na realidade. Até porque o Itamaraty, que reúne os melhores e mais íntegros quadros do serviço público brasileiro, comprara a ideia, dando-lhe um status estratégico. Por isso mesmo não parei de fazer reparos ao projeto em artigos na imprensa, em seminários internacionais e no Congresso Nacional, mostrando que essa união econômica não atenderia aos interesses do Brasil nem da Argentina.
O foco das minhas objeções era simples, embora pouquíssimo compreendido por formadores de opinião e políticos: o Mercosul mereceria apoio se fosse uma zona de livre-comércio entre os países, isto é, onde fossem removidas (menos ou mais gradualmente) barreiras tarifárias e físicas ao intercâmbio de bens e serviços. É o caso do Nafta, que, mesmo assim, obedeceu a um cronograma de mais de dez anos. A intenção cravada no acordo do Mercosul foi outra: criar uma união alfandegária - ou seja, além de promover uma zona de livre-comércio, unificar, no bloco, as tarifas em relação ao resto do mundo. Abdicamos, assim, da soberania nacional no comércio exterior. Em tese, nossa política nessa área passou a ser definida em conjunto com outros países que, somados, dispõem de um PIB equivalente a 25% do nosso.
O empenho brasileiro na criação do Mercosul foi tal que toda sorte de concessões acabou sendo feita em matéria de exceções e transições prolongadas. Ainda assim, em momentos de crises internas, pelas mais diferentes razões, a tarifa externa comum foi "perfurada", como no caso da Argentina, sem que nada acontecesse. No início do bloco houve até armadilhas, como no regime automotriz argentino, criado pelo então ministro da Fazenda, Domingo Cavallo, autor do Plano de Convertibilidad.
Na ocasião (1994-95) vivia-se ainda a euforia com o plano, que derrubara a superinflação mediante a implantação do regime de convertibilidad, uma espécie de padrão-ouro latino, o suprassumo da ortodoxia da época - e que só arruinaria a economia argentina alguns anos depois. Mas seu regime automotriz era o extremo da heterodoxia: estabelecia cotas de importação de automóveis e as vinculava a exportações da indústria. Foi preciso, então, que o Brasil fizesse um programa também heterodoxo, embora menos dramático, para não perder seu parque automotivo para o país vizinho.
O fato essencial é que, a pretexto e por causa do Mercosul, o Brasil se fechou a acordos bilaterais de comércio, a menos que levasse junto os demais países do bloco, que só concordariam se fossem atendidos seus interesses. Quando eu era ministro da Saúde do governo FHC, abrimos nosso mercado aos medicamentos indianos a fim de forçar, pela concorrência, a disseminação dos genéricos. Não era o caso de se fazer alguma troca? Poderíamos obter mais facilidades para exportar ônibus, caminhões e aviões para a Índia, por exemplo. Impossível! Seria preciso contemplar vantagens para o Uruguai, o Paraguai e a Argentina. Hoje seria preciso que a Venezuela também concordasse.
O resultado é que, nos últimos dez anos, foram assinados 350 acordos bilaterais de comércio no mundo, fomentando exportações e importações entre diferentes países. O Brasil só fez três desde 1991: com Israel, Palestina e Egito...
Para reforçar a inércia o governo manteve-se ainda na trincheira do multilateralismo comercial. O avanço dessa tese, na chamada Rodada Doha, nem seria bom para a economia brasileira, mas isso fica para outro artigo. Depois da crise financeira de 2008-9, até as pátrias-mães do ultraliberalismo internacional abandonaram essa trincheira, tratando de defender suas economias ou até mesmo de se reindustrializar. E nós? Fincamos o pé numa bandeira solitária e nos discursos da presidente em eventos internacionais, que rendem manchetes grandes, mas ocas de fatos. É preciso mudar esse rumo, e sei que não é fácil.
O próximo governo deve promover um acordo que restrinja as finalidades do Mercosul ao livre-comércio e adaptar seu amor retórico ao multilateralismo à realidade mundial. Eis aí o começo de uma plataforma na área de comércio exterior: a declaração da independência comercial brasileira.
O Mercosul, na sua forma atual, e a tese do multilateralismo servem a uma tendência não admitida nos discursos do PT, mas muito presente em sua prática de governo: acomodar o Brasil ao padrão de economia primário-exportadora, tendo como corolário a desindustrialização, que é um fato, não uma opinião.
*José Serra é ex-governador e ex-prefeito de São Paulo.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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