sábado, 3 de setembro de 2022

José de Souza Martins - O coração do rei

Valor Econômico / Eu Fim de Semana

É curioso o empenho político em trazer ao país o órgão do imperador

Foi Dom Pedro IV, de Portugal, quem doou o próprio coração, em testamento, à Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, da cidade do Porto. Não foi Dom Pedro I, do Brasil. Embora os dois reis, do ponto de vista vulgar, sejam a mesma pessoa biológica, não são, sociologicamente, a mesma pessoa política e histórica. Cada qual personificou um mandato e um destino. Dom Pedro IV foi um rei de Portugal e dos portugueses. Dom Pedro I fora um monarca do Brasil e dos brasileiros.

Os reis nunca são eles mesmos nem o que achamos que são. A rainha Elizabeth II é rainha da Inglaterra e da Escócia. São dois tronos e dois reinos distintos. Na Inglaterra, ela é anglicana e cabeça da Igreja Anglicana. Na Escócia, ela é presbiteriana, cabeça simbólica da Igreja Escocesa, cuja origem vem de John Knox, braço direito de Calvino e fundador do presbiterianismo.

Quando na Inglaterra, nas celebrações religiosas, ela segue o rito anglicano. Quando na Escócia, nessas celebrações, segue o rito do protestantismo escocês. Na Escócia, formalmente, está ligada a uma igreja de estrutura e de espírito republicanos.

As circunstâncias históricas e políticas dizem o que são e podem ser os reis nos diferentes momentos e épocas de sua vida. O pai de Dom Pedro, o rei Dom João VI, que foi rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, a partir de 1815, quando o criou, foi um desses casos. Pagou com a vida o fato histórico de que a unidade dinástica sobre dois territórios, Portugal e Brasil, pressuposta nessa decisão, antecipava uma possibilidade política em dois países politicamente atrasados. Homem de grande lucidez política, do estadista que era, ele acabou assassinado por envenenamento em 1826.

Dom Pedro IV quis, ao legar seu coração à cidade do Porto, expressar a ela seu reconhecimento e sua gratidão pelo apoio que dela recebera na Revolução Liberal para vencer seu irmão Dom Miguel. O qual, em nome do absolutismo, usurpara o trono de sua sobrinha, Dona Maria II. Dom Pedro subirá ao trono de Portugal por uma semana, para restituí-lo à filha.

O lugar do coração de Dom Pedro é na capela-mor da Igreja da Lapa, onde sempre esteve, à qual ele ia diariamente, a pé, quando morou no Porto. Ele era catolicíssimo, compositor de talento reconhecido, compôs solenes e belas músicas religiosas, como o “Credo”. Fora aluno de música de Marcos Portugal e, aqui no Brasil, também do padre José Maurício, mulato de grande cultura musical.

Curioso o empenho em trazer ao Brasil, em macabra procissão aérea, o coração do imperador. Curiosa porque o corpo do imperador, e os corpos das duas imperatrizes, Leopoldina e Amélia, estão há muito sepultados na cripta do Monumento à Independência, ao pé da colina do Ipiranga. Onde foi proclamado o segundo ato da independência do Brasil em relação a Portugal.

O primeiro ato fora proclamado duas horas antes à margem do antigo rio Tamanduateí, atual rio dos Meninos, na divisa de São Caetano com São Bernardo. Foi quando o padre Belchior, confidente do príncipe regente, que com ele estava, leu-lhe as primeiras cartas trazidas pelo segundo emissário enviado pela princesa e por José Bonifácio comunicando-lhe a ordem vinda das cortes de Lisboa para que retornasse ao reino. As informações secretas a ele enviadas na mesma ocasião pelo cônsul inglês no Rio, Chamberlain, que as recebera de sua embaixada em Portugal, alertavam-no para a conspiração contra ele no Reino, cujo intuito era o de destituí-lo do direito de sucessão ao trono.

O coração real, desabrigado do nicho sagrado da igreja do Porto, ficará exposto nos recintos profanos do Palácio do Planalto e, depois, do Ministério das Relações Exteriores à curiosidade mórbida das multidões pós-modernas.

Num momento em que o país está mergulhado no vale-tudo de uma campanha eleitoral cheia de incertezas quanto ao futuro do Brasil, disseminadas pelo próprio anfitrião, é pouco provável que o governo possa garantir a todos os cidadãos que não se trata de um recurso para converter o antigo imperador em cabo eleitoral do presidente-candidato.

O fato de que a esdrúxula ideia da trazida do coração do rei, justo nesta hora, tenha partido de uma candidata paulista a deputada federal pela mesma frente partidária do governante e que tenha sido ela autora dos primeiros contatos e providências para que o ato fúnebre fosse concretizado, sugere falta de decoro quanto a intenções outras por trás do traslado. Uma violência simbólica contra o desejo de Dom Pedro IV e contra o alto significado do gesto do príncipe regente que naquela tarde de sábado, 7 de setembro de 1822, com sua proclamação, fundou a pátria brasileira para servi-la e não para servir-se dela.

 

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