Valor Econômico
A reiteração de argumentos que apontam o risco fiscal como determinante das agruras cambiais teima em desconsiderar o caráter dominante dos fluxos de capitais em um ambiente global de liberalização financeira
Nas últimas semanas, as preocupações dos
brasileiros se concentraram nas oscilações da taxa de câmbio. Nos píncaros da
escalada para cima do Rei Dólar, o súdito Real ajoelhou mais uma vez e
reconheceu que aceitaria outras reverências diante do Senhor da Moeda.
Os movimentos de capitais dos países credores para os devedores são e sempre foram procíclicos, para desgosto dos que acreditam em Papai Noel ou em modelos mais tolos do que inúteis. Nas economias emergentes, de moeda não conversível - isto é, com demanda nula por parte de agentes de terceiros países - a liquidez se expande na fase de ingresso de capitais e sofre violentas contrações quando o movimento se inverte, não raro subitamente.
O recente estudo do Banco de Compensações
Internacionais (BIS) - The Transmission of Unconventional Monetary Policy to
Emerging Markets - demonstra que as condições monetárias nos países
desenvolvidos - particularmente nos Estados Unidos, o gestor da moeda reserva -
determinam o volume de capitais que buscam os mercados emergentes.
O controle da liquidez em moeda forte é,
portanto, crucial para a sempre precária combinação entre estabilidade e
crescimento nas economias de moeda não-conversível. Os países periféricos mais
bem-sucedidos, como a China, preferiram manter controles seletivos e
pragmáticos. Nessas condições, cuidaram de acumular reservas elevadas em moeda
forte como seguro contra choques cambiais que possam afetar negativamente a
curva de juro. A “esterilização” dos efeitos monetários domésticos causados
pela expansão das reservas foi efetivada a taxas de juros muito baixas.
Os bons “fundamentos” fiscais (sobretudo a
dinâmica da dívida pública interna) podem ajudar a política monetária mas, sem
reservas alentadas, não há como eliminar o risco de liquidez em moeda forte
embutido na formação das taxas de juros domésticas.
Diante das características do atual sistema
monetário-financeiro internacional e de seus frequentes episódios de
instabilidade, não é sensato nem recomendável descuidar da acumulação de
reservas cambiais. A reiteração de argumentos que apontam o risco fiscal como
determinante das agruras cambiais teima em desconsiderar o caráter dominante
dos fluxos de capitais em um ambiente global de liberalização financeira.
Peço licença ao leitor para esgrimir
considerações já exaradas no livro “O Tempo de Keynes nos Tempos do
Capitalismo”.
As instituições multilaterais de Bretton
Woods - o Banco Mundial e o FMI -- nasceram com poderes de regulação inferiores
aos desejados inicialmente por Keynes e Dexter White, respectivamente
representantes da Inglaterra e dos Estados Unidos nas negociações do acordo,
que se desenvolveram basicamente entre 1942 e 1944.
Harry Dexter White pertenceu à chamada ala
esquerda dos New Dealers e foi por isso investigado duramente, depois da
guerra, pelo Comitê de atividades antiamericanas do Congresso. Seu plano
inicial previa a constituição de um verdadeiro Banco Internacional e de um
Fundo de Estabilização. Juntos, o Banco e o Fundo deteriam uma capacidade
ampliada de provimento de liquidez ao comércio entre os países membros e seriam
mais flexíveis na determinação das condições de ajustamento dos déficits do
balanço de pagamentos.
Os países periféricos mais bem-sucedidos,
como a China, preferiram manter controles seletivos e pragmáticos
Isso assustou o establishment americano. O
senhores dos mercados entendiam que esses poderes das instituições
multilaterais limitariam seriamente o poder americano. Esses temores vinham
edulcorados com um argumento “técnico” que arguia a tendência “inflacionária”
desses mecanismos de liquidez e de ajustamento.
Keynes propôs a International Clearing Union,
uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. A International Clearing
Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, ao qual estariam referidas as
moedas nacionais. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a
reduções e aumentos das contas dos bancos centrais (em bancor) junto à
International Clearing Union. Uma peculiaridade do Plano Keynes era a
distribuição mais equitativa do ônus do ajustamento dos desequilíbrios dos
balanços de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isso significava,
na verdade, dentro das condicionalidades estabelecidas, facilitar o crédito aos
países deficitários e penalizar os países superavitários.
O Plano visava a, sobretudo, eliminar o papel
perturbador exercido pelo ouro - ou por qualquer divisa-chave - como último
ativo de reserva do sistema. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de
submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor, mas
também de evitar que a moeda internacional assumisse a função de um perigoso
agente da “fuga para a liquidez”. Essa dimensão essencial do Plano Keynes é
frequentemente obscurecida pela opinião dominante que sublinha com maior ênfase
o desempenho fiscal dos países ditos “emergentes”.
No plano Keynes não haveria lugar para a
livre movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos
especulativos: “Nenhum país pode permitir a fuga de capitais, seja por razões
políticas, seja para evadir o fisco ou mesmo por conta de antecipações dos
proprietários de riqueza”.
A referência às antecipações indica que Keynes implicitamente reconhecia a diferença de qualidade entre os títulos de riqueza denominados nas moedas nacionais e os carimbados com o selo da moeda universal: são substitutos imperfeitos. Diante da hierarquia de moedas - a moeda reserva é mais “líquida” do que as moedas nacionais -, o teorema da paridade descoberta das taxas de juros não funciona. Com mobilidade de capitais, os mercados financeiros prosseguem sem sustos na “arbitragem” entre juros internos e externos, sem convergência das taxas de juro, descontados os diferenciais de inflação esperada. No volume 2 de A Treatise on Money, Keynes afirma que, com livre movimentação de capitais, “a taxa de juro de um país é fixada por fatores externos e é improvável que o investimento doméstico alcance o nível de equilíbrio”, ou seja, um valor compatível com o melhor aproveitamento dos fatores de produção disponíveis.
Um comentário:
Lendo e tentando entender.
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