Não andaria com a cabeça nas nuvens quem, meses atrás, imaginasse que o
tempo do julgamento dessa Ação Penal 470 jamais chegaria. E se chegasse,
supunham outros, caso coincidisse com o período das eleições municipais, traria
consigo um clima de exasperação da política e de ruas efervescentes pela
participação popular, contra ou em defesa de algumas lideranças de um partido à
testa do governo há quase dez anos, ora levadas às barras de um tribunal. Mas,
faltando ainda o principal - qual seja, o julgamento do núcleo político que
teria sido o ideador da operação dos malfeitos contra a administração pública e
instituições republicanas -, o clamor que tem vindo das ruas, até o momento, é
de origem distinta, pois procede de movimentos prosaicos dos servidores
públicos, inclusive de carreiras estratégicas de Estado, em torno de questões
salariais.
Nada de trivial nessa constatação, uma vez que ela pode significar um
processo de amadurecimento das instituições da nossa democracia política no
exercício do controle do poder político e no culto republicano de obediência e
respeito às leis, que a todos, governantes e governados, igualmente deve
obrigar. Contudo, se avaliado de uma perspectiva com foco mais reduzido, esse
sinal lisonjeiro não pode eclipsar um diagnóstico perturbador, uma vez que o
silêncio das ruas estampa a distância existente entre a política e a população,
ora reduzida à posição de mera observadora do andamento de um processo que
expõe à vista de todos práticas de malfeitos de alguns dos dirigentes do
partido hegemônico na coalizão governamental, ele próprio inerme diante da
situação.
As razões dessa distância também não são triviais. Se ela, agora, se tornou
evidente, suas origens são remotas e não podem ser buscadas exclusivamente numa
repentina conversão da multidão às regras do jogo democrático e a uma atitude
de reverência diante da autonomia do Poder Judiciário, embora, em algum grau,
algo disso possa estar-se fazendo presente. Datam essas razões, longe disso,
das cruciais opções assumidas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) imediatamente
após sua vitória eleitoral em 2002, conquistada em nome de agendas igualitárias
nascidas no campo da esquerda.
Nessa hora, e contrariamente à opinião de importantes próceres do PT, esse
partido se recusou a enveredar por uma via de aliança com o PMDB, agremiação
partidária congressualmente majoritária, preterida em favor de uma coalizão com
partidos de menor representação, quase todos legendas de baixa densidade
programática, fundamentalmente preocupados com a reprodução política dos seus
quadros dirigentes, para os quais a conquista de posições fortes na
administração pública era a chave para o atendimento de suas clientelas locais.
Assim, seu programa de mudanças, além de contingenciado pelas reservas da época
quanto à sua capacidade de garantir a estabilidade financeira - pedra de toque
da conjuntura do primeiro governo Lula -, tornava-se dependente de uma coalizão
estranha ou indiferente à agenda política que o tinha conduzido à vitória
eleitoral.
A matéria bruta da Ação Penal 470, o mensalão, foi gestada no interior e a
partir dessa decisão política de perseguir objetivos de mudança social
desancorada de uma ativa esfera pública democrática, que importava a
mobilização dos movimentos sociais, que logo, aliás, seriam postos sob a
influência de agências estatais, quando não estatalizados tout court,
convertendo-se a política num quase monopólio da chefia do Executivo. Aos
partidos dessa bizarra coalizão presidencial, tangidos a ela com a expectativa
de extrair recursos públicos para sua reprodução eleitoral, caberia conceder
apoio parlamentar às iniciativas governamentais, enquanto ao Executivo, pelas
vias decisionistas do direito administrativo, caberia realizar a agenda de
mudanças avaliada como compatível com as circunstâncias.
Tal cálculo político, certamente exótico ao campo da esquerda, encontrou seu
coroamento na política de massificação da política social com os programas
assistenciais, revestindo a sociedade do estatuto do prático inerte de que
falava Jean-Paul Sartre, massa passiva a ser conduzida por uma inteligência
posta acima dela. Como um prático inerte, politicamente imobilizada, salvo nos
períodos eleitorais, quando suas ações eram pautadas pelas legendas
partidárias, a sociedade viveu mais um ciclo de modernização econômica,
fortemente aparentado com os ciclos que se sucederam a partir dos anos 1930,
tendo, de fato, experimentado, pela ação afirmativa de políticas públicas
conduzidas pelo Estado, uma significativa incorporação ao mundo dos direitos de
parcelas da população até então à sua margem. Mas a sociedade que emerge desse
experimento de mudança por cima, se conhece a modernização, não irrompe para o
moderno.
Filha de um tipo particular de revolução passiva, na forma tão bem
caracterizada pelo sociólogo Francisco de Oliveira em seu ensaio Hegemonia às
Avessas (São Paulo, Boitempo, 2010), a sociedade que dela resulta traz em si
duas marcas negativas, ambas sáfaras à floração de uma cultura política
democrática: a da restauração do poder político das oligarquias tradicionais,
às quais se propiciaram os meios para a preservação do seu domínio local; e a
valorização sans phrase da dimensão do interesse, numa versão chapada e imune à
política. Os sobrenomes e a genealogia de tantos envolvidos na presente
sucessão municipal testemunham isso, assim como aí estão os ecos na política
dos cultos religiosos centrados na ideologia da prosperidade.
Com esse quadro, não é de espantar que a política pareça ter migrado para o
mundo fechado dos tribunais.
Professor-pesquisador da PUC-Rio, é coordenador do Centro de Estudos Direito
e sociedade (CEDES)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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