A esquerda venceu? A esquerda perdeu? Um balanço das últimas décadas permite
argumentar numa direção e noutra. Vou propor uma distinção, para sugerir que a
esquerda política perdeu, enquanto a esquerda que chamarei de comportamental
venceu.
As mudanças na vida pessoal - o que hoje é denominado
"comportamento", termo que uso aqui por simples comodidade - foram
enormes no último meio século. Na década de 1960, homossexuais eram mal vistos
em quase todo o Ocidente, mulheres eram cidadãs de segunda classe, negros
muitas vezes não eram sequer respeitados como cidadãos e, para resumir, quem
adotasse uma postura não convencional em face da vida enfrentava dificuldades
que podiam ser grandes. Os 50 anos transcorridos desde então conheceram uma
mudança nas atitudes das pessoas sem precedentes na história do mundo.
Boa parte dessas bandeiras foi desfraldada pela esquerda. Ela foi radical
contra o racismo. É verdade que não foi unânime em favor das mulheres nem dos
homossexuais, mas seguramente a maior parte da esquerda apoiou as causas delas
e deles; e certamente a proporção de direitistas que defenderam a emancipação
feminina e o respeito à orientação homossexual foi bem inferior à proporção de
esquerdistas assumindo tais valores. Sem dúvida, havia pessoas à esquerda que
achavam que homossexualismo era vadiagem, mas eram menos numerosas do que os
direitistas que o condenavam como pecado. Sem dúvida havia gente à esquerda que
considerava a defesa dos direitos das mulheres como um desvio em relação ao
conflito principal, que seria a luta entre capital e trabalho - mas isso porque
esperava que a vitória do socialismo traria, automaticamente, a solução dos
problemas das mulheres. Isso, claro que em linhas gerais.
Ela mudou mais o comportamento do que a política
Hoje, essas causas venceram, não totalmente mas em larga medida. Continua
havendo crimes de ódio contra homossexuais. O machismo está presente em nossa
sociedade e em outras. Fora do Ocidente expandido, a situação é sem dúvida
pior, mas pelo menos nesta parte do mundo a esquerda que chamei de
comportamental conseguiu emplacar várias de suas causas. Mas ela venceu
justamente porque essas questões deixaram de ser de esquerda e se tornaram
universais.
Talvez seja por isso que no Brasil, enquanto a sociedade politizada se cindiu
de maneira talvez irremediável entre PT e PSDB, esses dois agrupamentos
coincidem o mais das vezes na defesa dos direitos humanos. Alguns colunistas de
jornal que atacam com veemência o governo petista estão mais perto dele na
defesa do meio ambiente, dos direitos das mulheres e dos homossexuais. Essas
causas nasceram na esquerda, mas se expandiram. É verdade que os agrupamentos
políticos de base religiosa não seguem esse caminho, e que - sobretudo nos
Estados Unidos - eles obtêm uma votação preocupante. Também é verdade que em
nosso país o segundo turno de 2010 foi sequestrado por uma discussão arcaica
sobre o aborto, o que o converteu na disputa de ideias mais rasa de nossa
história recente. Mas na postura política mais civilizada temos a vitória de ideais
que, aliás, foram de esquerda mais no sentido de uma sensibilidade ampla do que
no de pertencerem a um partido ou outro. Porque os temas que enumerei nunca
foram propriamente partidários. O único partido minimamente importante que já
se organizou em torno de uma dessas causas foi o Verde, que só chefiou um
governo nacional uma vez - dez meses na Letônia.
Quantos lembram como começou Maio de 1968, na França? O ministro da
Juventude do general De Gaulle foi inaugurar uma piscina em Nanterre, em 8 de
janeiro daquele ano. Um estudante alemão, Daniel Cohn-Bendit, interpelou-o.
Disse que fazer piscinas era uma aposta nazista para reprimir sexualmente os
estudantes. Tudo começou aí. Cohn-Bendit não estava errado, mas o próprio fato
de que essa frase chocará ou fará rir nove em dez leitores mostra que hoje as
aulas de educação física já não são cogitadas para esgotar a energia de
natureza sexual dos jovens. Hoje, ter uma vida sexual ativa não é mais uma
causa rebelde ou revolucionária.
Para a esquerda política, porém, as coisas são bem diferentes. É verdade que
em toda a América Latina é mais fácil ser de esquerda hoje do que nunca no
passado. Os governos importantes da América do Sul, salvo Chile e Colômbia, são
de esquerda. Políticas de conteúdo social se tornaram irrenunciáveis.
Sindicatos e movimentos sociais não são mais reprimidos a bala, pelo menos não
como praxe. Todos esses são avanços da esquerda, mas por outro lado ninguém
hoje disputa seriamente o poder propondo o fim da propriedade privada dos meios
de produção.
O projeto de uma sociedade socialista sumiu ou pelo menos recuou. Em 2008,
quando o mundo da utopia neoliberal faliu, acarretando um desastre econômico e
social, não havia proposta alternativa pela esquerda. Não tinha havido uma
crítica em regra da teoria marxista, que levasse a um novo projeto passível de
empolgar as massas. Não tinha havido uma atualização das propostas radicais,
que, com frequência, são apenas as mais antigas. Para os pobres traz resultados
mais imediatos a política de cooptação de seus movimentos pelo capitalismo,
iniciada por Lula, do que os ideais puros e duros de um PSOL. Quando os grandes
partidos do centro para a esquerda, como o socialista francês ou o PT, aceitam
princípios do neoliberalismo, então a esquerda política vive um momento de
eclipse. Para sair dele, precisará propor uma nova sociedade, em escala macro,
mas como fazer isso? Ela avançou no microssocial, mas hoje não se sabe como
retomar seus sonhos para a sociedade como um todo.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na
Universidade de São Paulo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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