– O Estado de S. Paulo
Quando se trata de partidos políticos, é sempre difícil detectar o que reflete opiniões pessoais e o que tem a ver com posicionamentos ou análises partidárias. Quando Lula ou FHC falam, por exemplo, não estão falando em nome do PT e do PSDB. Podem se sintonizar com posicionamentos dos partidos, mas não são seus porta-vozes. Ocorre o mesmo com os analistas políticos que se identificam com esta ou aquela legenda, na qual podem até mesmo militar: eles analisam fatos, processos e trajetórias por sua própria conta e risco, e somente à custa de muita manipulação podem ser vistos como se estivessem contando a história oficial dos partidos ou antecipando seus passos futuros.
Lideranças partidárias não são necessariamente grandes lideranças. Podem falar somente para o público interno, sem chegar ao povo. Costumam, aliás, visar sempre ao público interno, que vê nos líderes a indicação dos rumos a seguir. Lideranças partidárias precisam de bases internas para se sustentar. Algumas se limitam a isso, olham para dentro e se legitimam a partir do interior. Outras usam o partido para viabilizar seus projetos pessoais. Pensam primeiro na própria pele, depois no partido.
Críticas a lideranças ou a militantes individuais não são críticas aos partidos. Quando um dirigente ou ex-dirigente partidário é, por exemplo, condenado por algum crime ou malfeito, isso não significa que o partido como um todo mereça ir ao pelourinho ou esteja a ser visto como alvo principal da condenação. Partidos são integrados por homens e mulheres, que erram, cometem deslizes e praticam crimes. Não quer dizer que o partido deva ser responsabilizado por isso, do mesmo modo que o partido não deve acobertá-los. Coisa fácil de dizer, difícil de acontecer.
Partidos são instituições que se diferenciam muito entre si. Há os de estrutura mais rígida e vertical, os de enraizamento social e os que operam mais como “fato cultural”. O PT está entre os primeiros: tem estrutura burocrática, máquina pesada, milhões de filiados, eleitores e simpatizantes, uma “sociedade civil” ativa, composta por sindicatos, movimentos e associações várias. Tem sido assim que vem atuando em posição de força na sociedade brasileira, a ponto de estar agora no quarto mandato sucessivo na Presidência. Com o PSDB, a dinâmica tem sido outra: o partido não deita raízes na sociedade, não tem vida interna ativa, nem máquina particularmente estruturada. Caminha graças a um lote de lideranças que se reproduzem há anos. Sempre foi um partido de líderes, de poucos quadros e muitas ideias. Pagou um preço por isso, a ponto de se diluir como socialdemocracia.
Partidos sempre operam com idealizações de si próprios. Gramsci, por exemplo, criticava a “boria di partito“: presunção partidária. Quando bem dimensionada, a idealização funciona como uma espécie de elixir, complementando a identidade do partido. Tanto o PSDB, quanto o PT (ou, em outra escala, o PCB original) — para ficar com partidos que fazem ou fizeram jus ao nome — idealizam ou idealizaram a si próprios. Partidos não costumam reconhecer seus erros e suas falhas. Quando fazem isso, crescem. Se os tucanos conseguirem fazer algo nesta direção, por exemplo, poderão ganhar força como partido, aproveitando-se da dificuldade que o PT tem de se autocriticar. Ao PT, por outro lado, resta somente o caminho da refundação e da autorreforma. A democracia brasileira necessita dos dois partidos, que não são tão diferentes entre si como julga a vã filosofia. Eles, porém, somente permanecerão vivos e ativos se escaparem da polarização primitiva e esquemática que os tem contaminado.
No último fim de semana, dois textos publicados nos jornais forneceram rico material para que se reflita sobre o PT e o PSDB. Ambos põem o dedo na ferida, falando abertamente de coisas que a maioria dos tucanos e petistas não admite. Põem as cartas na mesa e narram a realidade pela ótica do jogo partidário, com sua grandeza e sua miséria.
Numa entrevista concedida ao Estado de S. Paulo, o ex-governador gaúcho Tarso Genro cortou fundo na própria carne: “Este PT que está aí chegou ao fim de um ciclo”. Está sem rumo e sem eixo. O partido “sofreu dois baques muito fortes [mensalão e escândalos na Petrobrás], não se autorreformou, não capitaneou uma grande mudança pela reforma política nem uma grande luta popular para proibir o financiamento empresarial das campanhas. O PT se transformou num partido excessivamente executor de ordens de quem está no poder”. Seguindo por esse caminho num quadro em que se mantenha a política monetária e econômica do governo Dilma, “a base social do PT e do campo político da esquerda poderá chegar desesperançada em 2018, proporcionando uma saída conservadora para a crise”.
Tarso acredita que a melhor opção para escapar desta situação é a articulação de uma frente de esquerda de caráter programático, na qual o PT participe em igualdade de condições com outras correntes. É o mesmo que dizer que o partido esgotou seu estoque de ideias e propostas e que as opções que fez até agora em termos de política de alianças fracassaram e se tornaram prejudiciais. O ex-governador não jogou a toalha, nem descartou o PT como agente político. Na prática, porém, não parece mais acreditar que uma ressurreição seja possível. Em vez de buscar interlocução ampliada (com o conjunto dos democratas, por exemplo), ele acredita que o melhor a fazer é “empoderar” os movimentos e partidos que se remetem ao campo da esquerda. Ao que tudo indica, está disposto a pagar para ver. Pensa que, deste modo, o PT talvez consiga voltar ao leito natural ou pelo menos salvar o governo Dilma.
Tarso é um militante político. Tem estofo intelectual e experiência política, coisas que o credenciam como analista político e liderança. Talvez fale em nome de sua corrente, mas seguramente não fala pelo PT. Antes de tudo, é uma voz em busca de audiência. Idealiza situações, até mesmo porque aposta no acerto de suas propostas.
No campo oposto, o cientista político Sergio Fausto, superintendente executivo do Instituto FHC, publicou extenso, contundente e oportuno artigo na Folha de S. Paulo de domingo. Nele, reconstrói o processo brasileiro de democratização e faz um importante relato sobre a trajetória seguida pelo PSDB, desde os tempos áureos de Franco Montoro e Mario Covas — quando foi lançada a ideia de uma agremiação que abraçasse a causa da socialdemocracia e fosse alternativa ao “esquerdismo” do PT e ao “direitismo” do PMDB. A análise faz um tour-de-force, um voo panorâmico sobre a evolução da ideia peessedebista original, procurando mostrar como ela não conseguiu se traduzir como partido efetivo ainda que tenha integrado os governos de FHC e edificado um verdadeiro bunker no estado de São Paulo.
Sergio faz uma análise serena e crítica da trajetória do PSDB, mostrando características importantes de seu DNA como organização política, suas opções equivocadas e seus méritos programáticos, suas chances em relação ao futuro. Ajuda muito a que se desfaçam certos lugares-comuns que circulam entre os que se propõem a compreender os anos que se seguiram à Constituição de 1988, entre os que falam dos governos FHC e da competição entre PT e PSDB.
Ele não poupa críticas ao partido. Faz isso com equilíbrio. Admite que o partido pode ser visto como um sucesso político, tanto por sua trajetória passada (governos conquistados, votos, presença política) quanto pelas possibilidades que se lhe abrem para o futuro, “num momento em que seu principal adversário vive uma crise existencial sem precedentes”. No entanto, faltam-lhe maior coerência programática e maior contundência oposicionista, fatos que geram frustrações e lançam interrogações sobre suas reais possibilidades.
Nos anos 1990, escreve, “o PSDB chegou à Presidência da República graças a uma combinação histórica singular de virtude e fortuna, que deu vida ao Plano Real”. Chegou ao ápice do poder precocemente: “Não era uma organização partidária forte e contava, no início do governo, com uma bancada parlamentar equivalente a cerca de dois terços dos representantes do PFL, seu parceiro de coalizão”. Suas principais lideranças (Covas e Jereissati, por exemplo) foram eleitas para os governos estaduais e se afastaram da vida partidária. Com isso, “a força do PSDB durante os governos FHC foi mais aparente do que real. O PSDB ampliou o seu número de representantes no Congresso, em grande parte por ser o partido do presidente da República, e beneficiou-se da popularidade do governo, enquanto essa existiu.
Diferentemente do PT, não teve, porém, participação orgânica na gestão do Estado. Não fez parte do núcleo duro do governo, nem dentro do Palácio do Planalto, nem na Esplanada dos Ministérios, nem nas grandes empresas estatais. Foi também grande a distância entre o partido e programas inovadores, como o Comunidade Solidária, que abriu canais entre o governo e a sociedade civil não partidarizada”. O PSDB tornou-se, em suma, “sujeito passivo de apoio às mudanças que o governo buscava promover no Estado e na economia do país”. Ressentiu-se da falta de “corpo (maior presença na sociedade) e alma (maior convicção ideológica) para travar o debate público em favor das reformas”.
A agenda do período FHC também complicou a vida do partido. “Teve diante de si o desafio de lidar com os múltiplos e interdependentes problemas de uma crise do Estado e da economia que desorganizara o país progressivamente ao longo das duas décadas anteriores”. Privatizações, iniciativas de ajuste estrutural, a começar pela reforma da Previdência, racionalização do Estado, desmonte do nacional-desenvolvimentismo, reformas de natureza liberal, tudo teve alto custo político. Viu sua marca socialdemocrata ficar obscurecida, na esteira da própria evolução do governo FHC, que foi progressivamente perdendo a batalha da opinião pública. O PT cresceu e se tornou a principal força política do País, deixando o PSDB “em posição de clara inferioridade política e eleitoral por mais de uma década”.
No período Lula, o PSDB comeu o pão que o diabo amassou. “Errou ao buscar se desvencilhar da suposta maldita herança do governo FHC. Cometeu repetidas vezes o equívoco de abdicar de parte constitutiva de sua identidade, despolitizando o debate público e o embate eleitoral, na vã tentativa de vencê-lo com base nas ‘qualidades administrativas’ e nos currículos pessoais de seus candidatos”. A consequência foi trágica: o partido “acumulou nesse período um deficit de coerência programática que, embora reduzido na campanha eleitoral de 2014, permanece até hoje”.
Fausto, porém, acredita que o PSDB “está hoje em condições de se beneficiar da crise que atinge o seu principal rival”. A questão é se saberá assumir o papel de liderança que se espera do maior partido da oposição, “aglutinando em torno de si um conjunto de forças políticas e sociais que não apenas possam constituir uma nova maioria eleitoral e governativa, mas também recriar a confiança do país em si mesmo e no seu futuro”. Para tanto, unidade e congruência partidárias serão bem-vindas, mas não bastarão. O futuro do PSDB depende da sua capacidade de “apresentar uma alternativa clara ao modelo de gestão política e econômica do lulo-petismo”.
Trata-se de uma tarefa urgente, porque a vida segue e o capital político recebido pelos tucanos das urnas de 2014 “vem diminuindo pela ausência de maior sintonia entre as lideranças do partido e um comportamento mais consistente de suas bancadas no Congresso”. Além disso, com o enfraquecimento do governo, o desenrolar dramático da Lava Jato e o aguçamento da crise econômica, “o tempo da política se acelerou e a tolerância da sociedade em relação a posições ambíguas ou incongruentes se reduziu”.
O futuro também passa pela capacidade que o partido tiver de “criar canais de comunicação e diálogo com a sociedade”, coisa que o partido jamais conseguiu institucionalizar ao longo de sua história. Trata-se de evitar o isolamento dos aparatos partidários, renovar seus quadros e lideranças e incorporar à sua agenda os “novos temas civilizatórios, a começar pela ecologia e pela mudança climática”, definindo assim com mais clareza “o lugar do PSDB no mapa ideológico do país”.
A conclusão do texto privilegia o PSDB, mas soa como advertência para todos os partidos e lideranças que se põem da perspectiva da justiça e do progresso social: “o partido não pode esquecer que construiu a sua história no campo progressista e visceralmente democrático. O esquecimento de seu DNA pode parecer tentador diante das tendências conservadoras em alta na sociedade brasileira, mas representaria a descaracterização irremediável do partido e a sua transformação em uma sigla como outra qualquer”.
----------------------
Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp
Nenhum comentário:
Postar um comentário