Folha de S. Paulo
Quem tem boca vai a Lisboa; só a ingenuidade
não foi convidada
Começou o mais bonito encontro da conciliação
colonial. O "Festival do Arranjinho", nas palavras da mídia
portuguesa, apegada à letra e ao antieufemismo.
Onde jabá corporativo e dinheiro público
alimentam a corrupção supramagistocrática. Onde a fome por lobby se junta à
vontade de jantar. De jantar muitos jantares com empresários, políticos,
magistrados e ministros de governo. De entreter conversas anódinas, de risadas
amigas e programadas.
Onde presidente da Câmara, o do Senado e o anfitrião devem pedir pacificação: supersalários e subsídios não se discutem; tributação equânime entre ricos e pobres, entre professor de escola pública, policial militar, médico do SUS e CEOs não se discute; cortar recursos da saúde e de políticas de redução da pobreza se discute. Em mais uma vitoriosa conciliação nacional.
Machado de Assis e Lima Barreto não viveram
para contar. Mas já conheciam os personagens.
Para o Fórum de Lisboa, além da fome, foram
convidadas a cumplicidade e a resignação. Senhoras que não resistem a uma festa
indecorosa. Ingenuidade e responsabilidade ficaram de fora. Senhoras
inconvenientes, moralistas, mal informadas. De um tempo que já passou.
No programa
oficial divulgado, salvo engano da contagem, o primeiro dia tem 165
expositores: 123 homens brancos, 42 mulheres brancas; um homem negro, duas
mulheres negras; 154 brasileiros, dez portugueses, um argentino. Nível
exagerado de diversidade para discutir o Brasil Colônia na metrópole. Não deu
tempo de contar os dias 2 e 3.
O programa extraoficial, a rolar pelos
corredores, salões e coberturas da cidade, não está divulgado. Salvo uma nota
jornalística ou fotos inadvertidas em rede social, saberemos pouco.
Como disse o ministro anfitrião, o fórum
pratica o diálogo do Brasil com o mundo e é muito transparente. Sabemos
tudo, menos
o programa extraoficial e quem pagou quanto pelo quê. E quanto se gastou em
dinheiro público.
E, se ficarmos bisbilhotando apenas isso,
essas checagens empíricas ainda vão perder o principal. Uma armadilha
diversionista. Mesmo que fosse transparente e que cada participante gastasse do
próprio bolso, o evento não se descontamina. Nessa aula prática de
promiscuidade, promove-se conflito de interesses multinível. E apoteótico.
Não é que o público se corrompe com o
privado. Ali já não se sabe quem é quem. Na fusão magistocrática, as distinções
desaparecem, as indiscrições se iluminam.
Quando profissões jurídicas se rendem ao
lobby rentista e ao familismo, sabem que estão caindo em profunda contradição
com os princípios que tentam lhes dar alguma dignidade.
'Gilmarpalooza' em números
400 palestrantes e 2.500 inscritos
Ministros, secretários ou assessores do
governo Lula
(ao menos 45 integrantes da gestão federal)
5 ministros do STF
18 ministros do STJ
5 ministros do TCU
20 a 50 parlamentares
R$ 800 por ingresso
(parlamentares e outras autoridades foram
isentos, diz organização)
Independência judicial, prerrogativas da
advocacia, acesso à Justiça, garantismo, devido processo legal, contraditório e
ampla defesa, não são apenas armas retóricas pairando no ar. Dependem de certas
pré-condições que se traduzem em condutas de juízes de um lado e da advocacia
de outro.
A decência almejada supõe certo decoro e
autorrespeito profissional. O fórum opta pela farsa.
Advocacia que luta contra o lawfare precisa
promover independência judicial, não incentivar seu contrário. Na próxima vez
que o caldo magistocrático entornar, lembremos desses muitos fóruns da amizade
rentável.
Por falar em cumplicidade, observemos quem não foi. Porque todos, pagos ou não, foram convidados.
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