O Globo
A assimilação apressada entre o fascismo e a
direita contemporânea empobrece nossa compreensão
Na última quarta-feira, três professores da
Universidade Yale, especialistas em autoritarismo, gravaram um vídeo de opinião
no New York Times anunciando que deixarão os Estados Unidos para
assumir posições acadêmicas na Universidade de Toronto, no Canadá. Publicaram o
vídeo como uma espécie de alerta sobre os rumos sombrios que os Estados Unidos
têm tomado em direção ao autoritarismo.
Jason Stanley, autor do celebrado “Como funciona o fascismo” (publicado no Brasil pela L&PM), disse que deixava os Estados Unidos porque “quer poder fazer seu trabalho sem medo de ser punido por suas palavras”. Marci Shore, historiadora especializada no Leste Europeu, disse que “a lição de 1933 [ano da ascensão do nazismo] é que se deve sair [do país] antes que seja tarde demais”. O historiador Timothy Snyder, autor de “Sobre a tirania” (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), esclareceu que não se mudou para o Canadá para fugir de Trump — ele trocou de universidade quando Biden ainda era presidente —, mas que sair do país neste momento político seria algo “razoável”.
O vídeo foi bastante criticado por leitores
do jornal, que viram nele uma atitude egoísta e irresponsável. Um leitor
afirmou: “Compreendo os motivos e sei que as razões são complexas, mas preferia
que o Sr. Snyder explicasse por que a mudança não é, essencialmente, uma
capitulação. Se queremos ter alguma esperança de salvar a democracia neste
país, temos de ficar e lutar por ela”. Outro leitor acrescentou: “É desanimador
ver professores de escolas de elite apresentarem a saída dos Estados Unidos
como forma de protesto contra o retrocesso democrático. Se realmente acreditam
que o país enfrenta uma emergência democrática, por que optaram por partir e
não lutar?”.
Para além da covardia, irresponsabilidade e
comodismo privilegiado desse tipo de autoexílio, há certo fatalismo na
interpretação política que lhe é subjacente. Tudo parte de certa equivalência
que vem se estabelecendo entre o fascismo histórico e certas correntes da
direita contemporânea. Encontram-se paralelos entre trumpismo ou bolsonarismo
com o fascismo dos anos 1930 e supõe-se que as diferenças desaparecerão quando
o fenômeno desabrochar no futuro.
Há bons motivos para traçar paralelos e
conexões entre a direita dos anos 2010, de Trump, Orbán e Bolsonaro, e o
fascismo histórico dos anos 1930. Em ambos os casos vemos desprezo pelas
instituições liberais, culto ao líder, nacionalismo ressentido (embora, no caso
de Bolsonaro, esse traço esteja ausente) e uma retórica violenta do tipo “nós
contra eles”. Mas há também diferenças decisivas: o apoio em milícias, o
expansionismo territorial e a crença numa força regeneradora que destruirá a
ordem liberal decadente —traços centrais do fascismo ausentes nos fenômenos
atuais.
Porém, mais que pensar na utilidade teórica
da comparação histórica, devemos pensar em suas implicações políticas. A
assimilação apressada entre o fascismo e a direita contemporânea empobrece
nossa compreensão, porque desde a vitória na Segunda Guerra atribuímos uma
pesada carga moral ao fascismo. Ele é o mal essencial na política. Ao
entendermos a direita atual como fascista, ela se torna essencialmente maligna,
fora do campo da política legítima. Abrimos mão, assim, de entender por que
ganha adesão, que anseios mobiliza e que falhas nossas ajudam a alimentá-la. Se
é fascismo, não se negocia, não se compreende, apenas se combate. É um
diagnóstico que desmobiliza e nos desresponsabiliza.
Essa leitura nos tira da posição de agentes
políticos implicados e nos torna meros espectadores morais do teatro da
História. Se tudo já está determinado —se todo populismo de direita carrega em
si o germe inevitável do fascismo —, então não há mais política, apenas embate
ou fuga. Tomamos o presente como destino fechado, onde nada resta senão
escolher entre uma improvável trincheira militar ou um covarde exílio no
Canadá.
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