Dois fatos relevantes da
diplomacia brasileira — a viagem do presidente Lula a Moscou e o sucesso
político e econômico das negociações em Beijing — foram reduzidos a “fetiches
ideológicos” (O Estado de S. Paulo, 15/5/25). A imprensa joga às traças
a relevância da diplomacia para um país que, a duras penas, tenta pensar com a
própria cabeça e caminhar com seus pés, no contrapelo do complexo de vira-lata
que intoxica a classe dominante.
O périplo de Lula, principalmente seu encontro com Putin, despertou, na chamada
grande imprensa brasileira, um insuspeitado fervor democrático que não poupa de
críticas acerbas nosso presidente por haver estado presente nas festividades
russas comemorativas da vitória contra o nazifascismo — comemorações as quais,
entendem os editorialistas, devem ser patrimônio exclusivo dos EUA.
O comprometimento ideológico ignora que Brasil e Rússia são importantes
parceiros comerciais e políticos no BRICS, cujo banco (Novo Banco de
Desenvolvimento-NBD), presidido pelo Brasil. Ignora que Lula não deixou de dar
o recado de que somos contra invasão de territórios estrangeiros (princípio
inscrito em nossa Constituição) e levou o pedido ucraniano (somos parceiros dos
dois beligerantes) por um cessar-fogo. Ignora sua reiterada defesa da paz —
coluna de nossa política externa — e a defesa dos interesses sociais e do
multilateralismo, talvez, neste caso, porque isso não agrade aos EUA de hoje.
A iniciativa de Lula pela paz na Europa — que não interessa aos que desprezam
os riscos estratégicos em nome dos lucros da indústria bélica em alta —
encontrou eco na parceria diplomática com Deng Xiaoping, que se associa no
esforço por uma trégua seguida de paz duradoura. A isso se dá o nome de
diplomacia — arte que não foi inventada por Lula e que é cultivada por qualquer
nação que se preze, grande ou pequena — e que a competência do Itamaraty vem
sustentando com arte e perícia, surdo aos apelos da subalternidade. Mas não
pode ser pensada por quem só pensa pequeno.
Esta é a questão central: o sistema, estruturado para reproduzir a
ideologia mainstream, se irrita com essa teimosia brasileira de
traçar seu próprio espaço — o que, afinal, pode pôr em risco interesses do
grande capital, mais próximos de Wall Street. Todas as tentativas anteriores de
abrir espaço para uma política própria (no sentido de simplesmente privilegiar
os interesses do país) foram combatidas com furor. Assim a política de Vargas;
os tímidos ensaios de JK; a política externa de Jânio–Afonso Arinos e de
Jango–Santiago Dantas. E, nos nossos tempos, a política ativa e altiva de Celso
Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia, presidida por Lula.
A resistência haveria de ser ainda maior hoje, quando a disputa hegemônica se
acirra e a guerra — desde sempre instalada no “mundo que não conta” — atinge em
cheio a Europa.
O Estadão não gosta de nossa política externa desde quando ela
começou a levantar a cabeça. Não lhe agradam as críticas de Lula aos
responsáveis pelo genocídio palestino. Deveríamos, segundo ele, simplesmente
lamentá-lo. Nossa política, no geral, é acusada de antiocidental — de um
Ocidente que sucumbe sem grandeza — e faz cara feia para as relações
com a China, principal parceiro econômico do Brasil, que, ademais, não impõe
taxas adicionais aos nossos produtos e acaba de anunciar investimentos de R$ 27
bilhões (Valor, 13/5/25), além de acordos nas áreas de semicondutores,
energia e infraestrutura, e da abertura do mercado chinês para produtos do agro
brasileiro.
É o que se lê no próprio Estadão (1º/05/25), no editorial que
desanca o presidente Lula. Faltou dizer que, entre os entendimentos logrados,
está nosso acesso direto ao grande mercado do Pacífico, via o porto peruano de
Chancay, construído pela China.
A direita brasileira, pela qual fala a grande imprensa, nos quer engajados numa
disputa hegemônica de blocos econômicos que não nos diz respeito. E já tem
lado. Pode ser que a União Europeia tenha alguma razão para temer e odiar a
Rússia — mas nós não temos. E parece que nem mesmo Trump as cultiva, embora
continue interessado em vender armas para tentar salvar um parque industrial
obsoleto (sua viagem à Arábia Saudita parece ter-se constituído em um
sucesso comercial).
A disputa pela hegemonia se circunscreve à polarização com a China, que nada
tem a ver conosco — nada obstante a tragédia geopolítica que nos instala no que
antigas e atuais autoridades dos EUA, fiéis à sempre viva Doutrina Monroe,
consideram “seu quintal”.
Vivemos a grande vitória ideológica do neoliberalismo, assimilado pelas
chamadas elites pensantes, que são as elites dominantes. Assim se explica a
alienação dessa imprensa — e da política — em face da questão nacional. E seu
real desapreço pela democracia.
No Brasil, a chamada “grande imprensa” — com destaque para O Globo, O
Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo — não apenas
defendeu o golpe de 1º de abril de 1964 como logo abraçou a ditadura
militar, ao ponto de esconder seus crimes, e, nestes termos, tornar-se
cúmplice. Porque o regime deposto, segundo a visão do Departamento de Estado
dos EUA (que supervisionou o golpe), prometia a ascensão das massas em um país
que representava algo como metade do continente sul-americano, em plena Guerra
Fria e após o acidente sem volta que foi a Revolução Cubana, a tão poucos
passos da Flórida.
O ativismo antidemocrático e antipopular, porém, vem de longe. Nos meados do
século passado, os jornalões, suas emissoras de rádio e de TV foram decisivos
na preparação da crise que levou ao golpe militar e ao suicídio de Getúlio
Vargas (1954), frustrando o projeto de governo trabalhista-democrático.
Participaram, com a direita militar, da tentativa de impedir a posse de
Juscelino Kubitschek (1956) e jamais aceitaram as teses do desenvolvimentismo.
Combateram a construção de Brasília, os ensaios de política independente de
Jânio Quadros e foram ativos na conspiração que visava impedir a posse de João
Goulart (1961).
Não podem, sequer, falar em liberdade de imprensa. Estiveram de mãos dadas na
tentativa de calar a voz da Última Hora, o único dos grandes
jornais então aliado ao governo Vargas, e buscaram o monopólio dos meios —
depois de assegurado o monopólio do discurso.
A grande imprensa brasileira, repito, tem sua história ligada à ditadura
instalada em 1º de abril de 1964 e muito contribuiu para a longeva trajetória
de 21 anos dos governos da caserna, assim fazendo jus aos dividendos com que
foi premiada.
O sistema Globo — jornais, rádios, revistas e televisão — apoiou com entusiasmo
o golpe e sustentou o mandarinato militar, até quando se anunciaram os
primeiros sinais de seu esgotamento. Ainda no auge da festa, o general Emílio
Garrastazu Médici, ditador nos anos 1969–1974 — certamente a fase mais
sangrenta do mando da caserna — encheria de açúcar os ouvidos de Roberto Marinho:
“Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal
[Nacional]. Enquanto as notícias [internacionais] dão conta de greves,
agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em
paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um
dia de
trabalho.”
A gratidão da caserna, porém, não ficaria apenas nas palavras.
O primeiro canal da hoje poderosíssima Rede Globo iniciou suas operações em
abril de 1965, a pouco mais de um ano da instalação do regime militar. Passados
vinte anos de apoio incondicional à ditadura — apoio consistente no
encobrimento de crimes e na louvação de supostos êxitos — a empresa da família
Marinho, tendo eliminado suas principais concorrentes, ocupava o posto de maior
rede de televisão do país, com 46 afiliadas e uma audiência que variava entre
60% e 90% dos telespectadores. O jornal impresso, no Rio, como um Moloch
insaciável, consumia seus concorrentes e liderava as tiragens. Hoje, o “Grupo
Globo” é o maior conglomerado de mídia da América Latina e um dos maiores e
mais diversificados do mundo.
O Estadão e a Folha de S. Paulo foram ainda
mais longe, embora mais modestos nos ganhos. O jornal dos Mesquitas não só
apoiou o golpe como participou ativamente da conspiração antidemocrática,
quando Júlio de Mesquita Filho e Adhemar de Barros fizeram dobradinha. É o que
revela o depoimento do general Cordeiro de Farias, conspirador-chefe em São
Paulo:
“As fontes principais de arrecadação eram duas: o governador Ademar de Barros e
o jornal O Estado de São Paulo, através de Júlio de Mesquita [seu
diretor e chefe do clã]. O dinheiro não me era entregue diretamente, e sim a
pessoas que eu autorizava.” (Diálogo com Cordeiro de Farias, Aspásia
Camargo & Walder de Góes, p. 553).
É este o jornal que, hoje, critica Lula e o acusa de fazer o jogo
antidemocrático ao dialogar com os que denomina de “dirigentes autocratas”.
A Folha de S. Paulo, todavia, conseguiu passar a perna no Estadão,
numa corrida carente de dignidade. Envolveu-se diretamente na repressão. Cedeu
veículos para ações da Operação Bandeirante (Oban) e do DOI-Codi, que
resultaram em prisões, torturas e assassinatos de democratas que lutavam contra
a ditadura. Deu ainda aos agentes da repressão acesso livre aos seus arquivos.
Essa imprensa não gosta de nossa política externa, que bate de frente com a
subordinação ideológica. Não entende o Mercosul e muito menos os esforços de
integração regional. Desprezando a coerência, reclama sem cessar do encontro de
Lula com Putin (voltamos a ele), porque o presidente da Rússia, além de
“autocrata”, invadiu a Ucrânia. Trata-se, segundo ela, de um “criminoso de
guerra”.
Mas essa é a mesma condição do primeiro-ministro sionista de Israel,
recentemente recebido com pompa e circunstância na Casa Branca, sem provocar
urticária nas almas democráticas de nossos editorialistas. Em 2003, não se
ouviram — nem se leram — restrições à visita de Lula a George W. Bush, que,
depois do Afeganistão, acabara de invadir o Iraque sob o consabidamente falso
argumento de que Saddam Hussein detinha armas atômicas.
Aliás, mantido o critério de considerar réprobo o presidente de todo país que
invade outro Estado soberano, estaremos enredados em sérias dificuldades com os
EUA, pois “criminosos de guerra” poderiam ser considerados quase todos os seus
presidentes. Ou, por cautela, devem ser ignoradas — exemplos tirados de extenso
inventário — as invasões da Coreia, do Vietnã, de Granada, da República
Dominicana, do Panamá, do Afeganistão, da Somália, da Síria, da Líbia...?
A grande imprensa brasileira é a voz da classe dominante. Essa de hoje é filha
daquela que combateu o monopólio estatal do petróleo, que, de manhã, de tarde e
de noite lutou contra a criação da Petrobras, a participação dos empregados nos
lucros das empresas, a recuperação do poder de compra do salário-mínimo, e
combateu a criação do 13º salário.
É exemplar a manchete (em letras garrafais) de primeira página de O
Globo, de 26 de abril de 1962: “Considerado desastroso para o país
um 13º salário.” E ainda hoje é contra a reforma agrária. Desempenha o
papel de agente ideológico da contrarrevolução. É-lhe estranho qualquer projeto
de soberania e progresso social. Nosso destino de província sem projeto de ser
é, para ela, irrevogável — traçado por um passado que interfere no presente,
afastando de nosso horizonte as promessas de futuro.
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