O Estado de S. Paulo
A ameaça feita ao Brasil é parte da
exacerbação generalizada do ímpeto imperial americano
Trump emprega contra outros países a mesma
técnica que utiliza contra seus adversários internos (qualquer instituição ou
indivíduo que ouse se interpor à realização de sua vontade). A chantagem é uma
constante em sua trajetória empresarial e política.
Dentro dos Estados Unidos, Trump está levando ao extremo a teoria do caráter unitário do Poder Executivo (Unitary Executive Theory), segundo a qual todas as agências e funcionários do governo estão submetidos ao presidente. Segue-se que, nesse âmbito, ele pode admitir e demitir pessoas, fechar e criar órgãos e agências, interferir no modo de execução das leis e desembolso do orçamento, independentemente da autorização do Legislativo ou do Judiciário. Não contente com isso, Trump busca subtrair poder dos outros ramos do governo.
Invocando uma lei do final do século 18,
criada para combater a espionagem estrangeira nos primórdios da nação,
arroga-se poderes extraordinários para deportar imigrantes. Na
instrumentalização de tarifas de importação para chantagear outros países, faz uso
abusivo da Lei de Emergência Econômica Internacional ( International Emergency
Economic Powers Act), de 1977, que dá poderes excepcionais ao presidente para
agir diante de grave ameaça à economia e/ou à segurança nacional.
Com o respaldo da Suprema Corte, controlada
por folgada maioria conservadora, vem derrubando obstáculos erguidos por juízes
e instâncias inferiores do judiciário americano que tentam conter a enxurrada
de ações arbitrárias da Casa Branca. Embora por pequena margem, os republicanos
controlam também ambas as casas do Congresso. Fiéis por convicção ou por medo,
pois também são objeto de chantagem, deputados e senadores do partido de Trump
não ousam exercer o poder de contrapeso que a letra e o espírito da Constituição
asseguram ao Legislativo. Nesse passo, os Estados Unidos deslizam velozmente em
direção a um regime não democrático. A esperança é que a descendente seja
interrompida nas eleições de meio de mandato, se os democratas retomarem o
controle da Câmara.
O autoritarismo interno é inseparável do
ímpeto imperial em relação ao mundo. Para Trump, se as leis do seu próprio país
valem pouco frente às suas vontades, imagine o direito internacional. Nesse
âmbito, a prepotência e o arbítrio não encontram limites.
A ameaça feita ao Brasil é parte da
exacerbação generalizada do ímpeto imperial americano, com a singularidade
agravante de que invade a soberania política e jurídica do País. Busca coagir o
Brasil a se dobrar aos caprichos de um presidente estrangeiro interessado em
ver um subserviente apoiador seu perdoado pela Justiça brasileira. Procura
também forçar o País a ceder aos interesses das grandes empresas americanas de
tecnologia.
A esse respeito, a carta de Trump deve ser
lida em conjunto com a nota da Casa Branca ameaçando investigar o Brasil por
supostas práticas prejudiciais às empresas americanas. Segundo a lógica
imperial trumpista, regular o principal meio de comunicação social hoje
existente, as plataformas de mídias sociais, só é aceitável se a regulação
convier aos interesses das big techs. A inclusão desse tema nas ameaças do
governo americano é mais uma prova da nada santa aliança entre essas empresas,
o governo americano e, por último, mas não menos importante, a extrema direita
internacional, da qual Trump é o líder e o clã Bolsonaro, militante de
carteirinha.
A alegação contra o Pix beira o delírio.
Supõe que o Brasil possa ser punido por ter desenvolvido uma infraestrutura de
acesso livre e gratuito que permite a toda sua população fazer transações
financeiras com rapidez e confiabilidade. A razão? Prejuízos a empresas
americanas que operam meios eletrônicos de pagamento. Era o que faltava: punir
um país por oferecer serviços públicos sob o argumento de que assim roubam
oportunidades de negócios de companhias dos Estados Unidos!
Não se entende a ameaça de Trump pela ótica
tradicional das relações comerciais, em que todo eventual conflito de interesse
é passível de solução pela arte da diplomacia. Estamos diante de um ataque à
soberania e às instituições do País, desferido pela maior potência mundial,
hoje governada pelo líder da extrema direita em todo o planeta. Em última
instância, está em jogo o direito de decidirmos democraticamente sobre o nosso
destino.
Negociar é preciso, com sobriedade e firmeza.
Mas não menos necessário é ter clareza sobre a ameaça que ronda o Brasil e o
mundo. Ela não irá dissipar-se, ainda que saibamos lidar bem com a crise atual.
É preciso nos preparar para uma batalha mais longa.
A primeira coisa a fazer é restabelecer um
mínimo de unidade nacional. Instigar potência estrangeira a causar dano ao
Brasil deveria merecer repúdio unânime, independentemente da inclinação
política. Se Lula erra quando exagera em arroubos retóricos contraproducentes,
erra mais quem defende a conduta do clã Bolsonaro ou omite-se em condená-lo. É
inaceitável colocar em risco o País, empresas e trabalhadores para livrar a
própria pele.
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