O julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) suscita uma
unanimidade perturbadora quanto ao alcance histórico das decisões tomadas até
aqui. O que se entende por alcance histórico, porém, varia muito, o que não
surpreende. Os aspectos a explorar são muitos e dependem do foco do analista.
Conforme se privilegiem as dimensões político-eleitoral ou institucional, a
legal-constitucional, ou se adote uma perspectiva histórica fundamentalista do
tipo "nunca antes neste país", ter-se-ão apostas distintas sobre o
impacto das decisões do STF. Por certo, há muito em comum entre os que
compartilhamos a percepção de que elas marcam um daqueles pontos de virada que
geram um impulso transformador dos mores políticos e, sobretudo, das
expectativas em que se baseiam os cálculos políticos. Um de seus efeitos
subversivos é a reversão das expectativas gêmeas que poluíram as discussões
anteriores: a da impunidade e a do ceticismo entre os indignados.
Isto posto, qual o foco privilegiado aqui? Como situar o Rubicão que
atravessamos pela mão dos membros do STF e com apoio nas análises que a mídia
propicia? Atenho-me a um par de aspectos em registro de médio e de longo
prazos. Descarto o foco político-eleitoral pelo repúdio ao que a campanha em
São Paulo conteve de cinismo de ambos os lados: de um, o argumento de que a voz
das urnas equivale a uma absolvição, com o que se deslegitima o ordenamento
jurídico; de outro, a tentativa de estender a um partido como o PT - cujos
representatividade e compromisso com avanços sociais é inquestionável - uma
condenação que todos os atores do sistema de Justiça circunscrevem a alguns de
seus membros.
O alcance histórico das decisões do STF é também "geográfico",
pela relevância geopolítica. Valho-me do olhar de um cientista político americano,
Douglas Chalmers, que ainda nos anos de chumbo se empenhou em entender como
nossa formação histórica afetava o modo de fazer política na região. Atenho-me
exclusivamente à relação com a lei. Numa intuição profética, destacava
"uma característica estrutural dominante" no século 20, que
consistiria na instabilidade inerente tanto aos regimes autoritários quanto
democráticos. Diz ele: "A razão está na percepção generalizada de que as
instituições são um meio instrumental e tentativo para resolver conflitos".
É a percepção de que "os conflitos se resolvem pelo choque de forças, quer
dizer, politicamente, e não por referência a um conjunto fixo e estabelecido de
procedimentos". Trocando em miúdos, a força da lei, quando se exerce, é
sempre passível de contestação nesse tipo de Estado que Chalmers caracterizava
como "o Estado politizado", por contraposição ao Estado
institucionalizado.
É fácil explorar outras especificidades derivadas dessa. Por um lado, a
falta de credibilidade do Estado enquanto lei, ou seja, o ceticismo quanto à
sua capacidade de fazer valer o ordenamento jurídico previamente acordado. Por
outro, a tendência a redefinir a lei ao sabor das resultantes dos embates
políticos. Isso explica, a meu ver, seja a dificuldade de aceitar como final a
intermediação do sistema de Justiça pelas partes em conflito, seja a tentação
de redefinir continuamente o ordenamento jurídico. Basta lembrar as crises de
sucessão durante nosso regime autoritário, ou a contínua redefinição do sistema
partidário em resposta à eleições tuteladas, para situar a nossa versão de
Estado politizado. Pouco que ver com o Estado autoritário institucionalizado da
Espanha ou do Chile. Nos anos de chumbo, porém, a constatação dessa
instabilidade congênita soava como música aos ouvidos de uma democrata.
Mas até que ponto o insight de Chalmers vale para os dias de hoje? Cabe como
luva à Venezuela de Chávez, à Argentina dos Kirchners, ao Equador de Correa.
Mas não se aplica ao Brasil, ao menos não nos mesmos termos (apesar da
"insegurança jurídica" detectada pelos economistas). Nosso avanço se
deve a um processo cumulativo de institucionalização, cuja peça central foi a
Constituição de 1988 e o consequente apoderamento dos atores do sistema de
Justiça, notadamente os do Ministério Público. Se é verdade que culmina hoje
com a reafirmação do Estado como lei pelos membros do STF, vale lembrar que
foram subsidiados pelos juízes de instrução e pelos dois procuradores-gerais
que analisaram as denúncias pertinentes. As decisões do STF, portanto, aproximam-nos
mais do Chile e nos distanciam dos outros vizinhos. Seu alcance potencial, no
entanto, deverá ser testado, em dois registros. Um: o Estado de Direito é uma
construção política coletiva e, como toda construção, pode ser fragilizado.
Entre nós, está exposto à vocação restauradora que busca sobrepor legitimidade
política, êxito econômico e popularidade ao império da lei. Dois: valendo para
todos, depende da reiteração desse princípio, na prática, e quando cabível pelo
sistema de Justiça.
É possível detectar outros desdobramentos desse impulso transformador. Minha
aposta é que nos próximos anos os profissionais da Justiça deverão
(re)conquistar um espaço privilegiado enquanto atores políticos. Similar ao dos
economistas, na esteira das democratizações marcadas pela crise econômica e por
megainflações. O espaço reservado na mídia ao debate político centrado na
economia foi e é uma das características distintivas da nossa democratização,
pela quantidade e pelo vigor. Entra em cena agora o debate político centrado na
Justiça e o aprendizado que isso exige de nós, leigos. E dos próprios
especialistas obrigados a renunciar ao aconchego de seu dialeto. A exposição
pública é essencial: pela exemplaridade da argumentação cerrada, da tolerância
pelo contraditório, pela contestação da defesa e pelas tensões entre os
ministros relator e revisor. Contribui para a redução de um dos hiatos que
caracterizam a nossa (e toda) democracia: entre o acesso instantâneo às
informações e a capacidade dos cidadãos leigos de elaborá-las.
Cientista política, professora aposentada da USP,
ex-presidente da Associação Internacional de Ciência Política, membro de Academia
Brasileira de Ciêncais, é autora de 'Democracia, mercado e estado' (fgv, 2011),
seu livro mais recente
Fonte: O Estado de S. Paulo
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