Valor Econômico
A questão não é liberar o trabalhador apenas
para a família e para a religião, mas para as atividades que saciem nossa fome
secular de saber e nos libertem da ignorância que nos barateia e nos oprime
O projeto de emenda constitucional que reduz
a semana de trabalho de seis para quatro dias, apresentado pela deputada
federal Erika Hilton, em vez de um debate sobre o que é de fato a questão
social do trabalho na economia moderna e na perspectiva das carências
extraeconômicas dos trabalhadores, gerou uma celeuma unilateral sobre os
prejuízos dos empregadores.
O Brasil adotou a jornada de oito horas de trabalho em 1908, há 116 anos portanto, para atalhar os imensos abusos que havia em nossa indústria nascente: sete dias de trabalho por semana, 12 horas por dia, sem distinção entre homens e mulheres nem entre adultos e crianças. Os mestres de seção de fábrica ainda se achavam no direito de bater nas crianças operárias para discipliná-las.
Na verdade, no campo e na cidade, o trabalho
livre proclamado em 13 de maio de 1889 chegara até nós impregnado de
sobrevivências da escravidão apenas lentamente abolida. Regulada por uma
sucessão de etapas, como a do Ventre Livre e a dos Sexagenários.
Mesmo na formação do proletariado industrial,
o capitalismo brasileiro tem recorrido a técnicas sociais do que é de fato
extensão disfarçada da jornada de trabalho.
No golpe de 1964, a jornada de trabalho foi
um dos alvos não confessados. Isso foi ficando evidente lentamente. A economia
voltada para dentro foi sendo substituída pela orientação liberal e a economia
voltada para fora. Para o crescimento econômico sem desenvolvimento social.
O nacional-desenvolvimentismo anterior ao
golpe pressupunha a ampliação do mercado interno, o desenvolvimento econômico
com desenvolvimento social. Uma figura referencial dessa política foi Celso
Furtado, que fez o doutorado em Cambridge com Joan Robinson, que fora
assistente de John Maynard Keynes, pai da teoria da renda e do emprego.
De certo modo, Furtado dava sentido à
ideologia econômica de um fundador da Fiesp, Roberto Simonsen, professor de
história econômica na Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Com a ditadura e o liberalismo de Roberto
Campos, implantou-se aqui uma economia que reduzisse a relevância do salário,
mas não, no mesmo ritmo, a relevância do trabalho na produção. Que reduzisse o
risco político de uma classe operária organizada. O objetivo foi o de baratear
o trabalho e amansar o trabalhador por meio da repressão política.
Essa fase da história do trabalho no Brasil
foi conhecida como a do “arrocho salarial”. O arrocho não foi apenas o da
redução dos reajustes salariais em níveis inferiores ao do crescimento da
inflação e dos preços. Os trabalhadores de regiões como a do ABC, por essa
época, diziam da situação adversa: “cada vez mais sobra mês no fim do salário”.
Importante e respeitada instituição de
pesquisa e estudos sobre as relações de trabalho, o Dieese, de São Paulo,
constatou então que em relação à situação salarial do regime anterior, quando
um operário sustentava uma família, agora eram necessárias duas pessoas de uma
mesma família para sustentá-la.
A proporção do salário no capital caíra, as
empresas comprando duas jornadas de trabalho por pouco mais do que o preço de
uma. Disfarçadamente a jornada dobrou. A proporção do dispêndio com força de
trabalho tornou-se menor do que a do dispêndio com equipamentos, edifícios e
matéria-prima. O capitalismo brasileiro passou a funcionar como se fosse
moderno, ao se tornar de fato atrasado.
Quando comecei a trabalhar em fábrica, em
1950, a jornada era de oito horas, seis dias por semana. Quando passei para uma
fábrica maior e mais moderna, a jornada era de cinco dias e meio de oito horas
por dia. Quando ingressei na USP, trabalhava numa empresa de jornada de oito
horas, cinco dias por semana. Nenhuma das empresas ficou pobre por isso.
Somos um país em que ainda há trabalho
escravo na formação de capital originário de empresas ou que asseguram lucro
extraordinário para grandes empresas. Portanto, um capitalismo atrasado que só
por imitação e fingimento se parece com o capitalismo dos países ricos. Um
capitalismo irracional e mal administrado que enxuga o mercado e mata sua
própria prosperidade.
A questão não é liberar o trabalhador apenas
para a família e para a religião, como alguém argumentou. A redução da jornada
não tem sentido sem uma política de administração do tempo livre obtido com
essa inovação. A novidade seria, como aconteceu nos países cultos e
desenvolvidos, liberar os trabalhadores para si mesmos.
A questão é ocupar o tempo livre da nova
jornada resultante com atividades culturais, como a música, o teatro, a
literatura, a arte, o cinema. As atividades que saciem nossa fome secular de
saber e nos libertem da ignorância que nos barateia e nos oprime.
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