Folha de S. Paulo
Acossado por crônica sangrenta e descontrole,
governador vai tentar abafar efeitos, não combater as causas
"Sinceramente, nós temos muita
tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU
[Organização das Nações Unidas], pode ir na Liga da Justiça, no raio que o
parta, que eu não tô nem aí."
As famosas palavras do governador Tarcísio de
Freitas foram
pronunciadas no início de março, em resposta às denúncias de abusos policiais em
operações no litoral, que chegaram às Nações Unidas.
Levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz mostrou que, nos primeiros oito meses deste ano, 441 pessoas foram mortas no estado por agentes de segurança em serviço, contra 247 no mesmo intervalo no ano passado. É uma alta de 78%.
Agora, dois episódios repugnantes alimentam a
crônica da barbárie oficial. Um homem de 26 anos, negro, foi morto à
frente de um supermercado com 11 disparos pelas costas
efetuados por um policial militar que se encontrava de folga. Pouco antes de
ser atingido, o rapaz havia furtado alguns produtos de limpeza de uma das
gôndolas do estabelecimento, no Jardim Prudência, zona sul da capital.
O vídeo das câmeras de segurança mostra o que
ocorreu. O atirador, porém, teve o desplante de afirmar que agiu em legítima
defesa. Não fossem as imagens, saberíamos do ocorrido? Ou seria mais uma
alegação falsa de legítima defesa que não viria à luz?
No outro caso, um policial
militar jogou um cidadão do alto de uma ponte, no bairro Cidade
Ademar, na mesma região sul. A ação estarrecedora de abuso de força foi
igualmente registrada em vídeo.
Diante dos dois espetáculos de selvageria,
Tarcísio declarou que a Polícia Militar é uma instituição que "preza,
acima de tudo, pelo seu profissionalismo na hora de proteger as pessoas".
Valeria o mandatário consultar moradores de favelas e bairros carentes para
saber se suas palavras correspondem ao sentimento da população negra e pobre.
Já o secretário de Segurança, o sinistro
Guilherme Derrite, afirmou que "ações isoladas como essa não podem
denegrir a imagem de uma instituição que tem quase 200 anos de bons serviços
prestados para a nossa população". Diante da terminologia, é de se
perguntar o perfil dessa "nossa" população.
A hipocrisia de Tarcísio e Derrite, dois
personagens do bolsonarismo, não disfarça o que já se aponta como perda de
controle sobre a tropa. Falemos do assassinato
de um denunciador do PCC no aeroporto de Guarulhos, que escancarou a
promiscuidade entre policiais e a facção.
Sim, policiais fazem um trabalho duro e
sofrem ataques criminosos. Mas vingar na mesma moeda não é uma prerrogativa
legal. Não pagamos impostos para atirarem pelas costas e jogarem gente de uma
ponte. O ouvidor das polícias de São Paulo, Claudio Silva, realçou que as
providências protocolares não têm sido eficazes "para o estancamento desse
derramamento de sangue em nosso estado, fruto de uma política de morte e
vingança".
A linha dura está saindo pela culatra.
Tarcísio sentiu que pegou mal. Declarou-se arrependido de ter sido contra as
câmeras corporais. Veremos. A tendência é atuar mais para abafar os efeitos do
que combater as causas.
Aumento da letalidade,
violência contra pobres e negros, violação das leis e direitos. É sobre isso
que o governador paulista e seu fiel escudeiro Derrite precisam prestar contas.
2 comentários:
''Onze tiros fizeram a avaria,e o morto já tava conformado''... ''Onze Fitas'',música de Fátima Guedes gravada pela soberana Elis Regina,mais atual do que nunca.
Excelente coluna! A arrogância de Tarcísio é a mesma arrogância de Jair Bolsonaro!
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