Avanço contra pobreza e miséria merece celebração
O Globo
Para que queda de ambas se consolide, porém,
governo precisará fazer bem mais do que tem feito
O Brasil registrou avanço significativo no
combate à pobreza e à miséria, segundo dados divulgados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2023, ambas caíram aos menores
índices da série histórica iniciada em 2012. A proporção de pobres na população
foi de 36,7% no ápice — período da pandemia — para 27,4%. A pobreza extrema, de
9% para 4,4%. Estimativas da FGV Social sugerem que a fatia de pobres e
miseráveis na população nunca foi tão pequena. Como, apesar da queda, os
contingentes ainda são enormes, o combate às duas chagas históricas não pode
esmorecer. Para que a tendência se consolide, o governo precisará fazer bem
mais do que tem feito.
Dois fatores foram responsáveis pelos resultados positivos. O primeiro foi a redução do desemprego. A desocupação caiu de 8,8% no primeiro trimestre de 2023 para 7,9% um ano depois. A massa salarial, descontada a inflação, cresceu 6,6%, e o rendimento médio subiu 4%. Para a população vulnerável, mais dinheiro no bolso é a diferença entre a pobreza e uma vida mais digna. Mas a previsão é que o crescimento econômico que embalou a geração de emprego e renda arrefeça.
O segundo fator responsável pela queda da
pobreza e da miséria foram os programas sociais. Às vésperas da eleição de
2022, Jair Bolsonaro aumentou o valor do Bolsa Família (na
época Auxílio Brasil) para R$ 600. Eleito presidente, Luiz Inácio Lula da
Silva manteve o valor. Em 2019, os beneficiários do programa receberam R$ 44
bilhões (em valores corrigidos). Quatro anos depois, R$ 174 bilhões. Também
houve crescimento de dois dígitos no benefício para idosos e deficientes de
baixa renda, o BPC. A crise fiscal, porém, impõe limites à ampliação do
orçamento dos programas sociais.
As projeções de crescimento da economia são
declinantes justamente porque o governo se mostra incapaz de gastar apenas o
que arrecada, sem contrair dívidas. A gastança sem lastro se manifesta em
várias frentes, inclusive nos programas sociais. A ampliação permanente do
Bolsa Família representou um impacto de R$ 598 bilhões em dez anos. Não houve
compensação por meio de redução de outras despesas nem aumento de receita. Não
há como incrementar de forma sustentável a transferência de renda sem cuidar do
equilíbrio fiscal.
O Brasil já gasta bastante em programas
sociais. Somando Bolsa Família, abono salarial, seguro-desemprego e BPC, 3,2%
do PIB. Numa comparação de investimento em proteção social feita pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI), que leva em conta também a Previdência, o Brasil
se destaca. Isso já era verdade em 2010, quando destinava 10,55% do PIB. No ano
passado, foram 13,28% — o dobro do gasto russo, sete vezes o argentino e 78
vezes o chinês. Como investe muito em proteção social, o Brasil deveria garantir
a sustentabilidade dessa rede de proteção. Regras pouco realistas e injustas de
reajuste precisam ser mudadas. Nos programas de transferência, o foco deve
estar nos realmente pobres e miseráveis, para garantir sua eficácia. Por fim, é
preciso assegurar educação de qualidade para todos, de modo a romper o ciclo de
transmissão da miséria de uma geração a outra.
Com o tanto que o Brasil gasta, a queda na
pobreza e na miséria deveria ser bem maior. Se adotar políticas adequadas, o
país deixará os registros de pobreza e miséria nos livros de História.
Perdão de Biden ao filho contribui para
degradar democracia americana
O Globo
Com clemência inédita, presidente dos Estados
Unidos faz exatamente aquilo que disse que Trump faria
Ao perdoar o próprio filho de forma plena e
abrangente, por crimes que cometeu no passado e até pelos que possa vir a
cometer, o presidente americano, Joe Biden,
contribui para agravar a crise deflagrada em seu partido pela derrota de Kamala
Harris para Donald Trump nas
eleições presidenciais — e para degradar ainda mais a democracia nos Estados
Unidos.
Há longa tradição de o chefe do Executivo
distribuir clemência no país, mas Biden extrapolou. Concedeu ao filho Hunter um
perdão inédito por todos os crimes que cometeu ou de que tenha participado
entre 1º de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2024. Antes, não apenas
declarara que não interferiria nos problemas do filho — e, para provar, manteve
no cargo o procurador David Weiss, responsável por acusações a Hunter—, como
não cansava de acusar Trump de não saber separar a atuação pública de questões
privadas.
O perdão a Hunter é um dos mais amplos já
concedidos pela Casa Branca. Só comparável ao de Gerald Ford a Richard Nixon
depois do caso Watergate, mesmo assim mais abrangente. A clemência não cita
crime específico, apenas passa uma borracha em qualquer delito federal cometido
por Hunter durante 11 anos, período em que esteve envolvido em várias
suspeitas.
Em junho, um tribunal federal de Delaware o
condenou por ter mentido ao comprar uma arma em 2018 sem dizer que era usuário
de drogas. Hunter passou 11 dias com o revólver de forma ilegal. Em setembro,
sofreu condenação em nove acusações envolvendo impostos federais. O perdão dado
pelo pai veio pouco antes das duas sentenças.
As suspeitas mais graves contra Hunter vêm do
tempo em que foi executivo na Burisma, empresa ucraniana de energia.
Adversários de Biden acusam o filho de usar a influência do pai, então
vice-presidente de Barack Obama, para fazer lobby a favor da Burisma em
Washington. Parte das suspeitas foi comprovada pelo conteúdo de um notebook de
que Hunter se desfez, vazado para a imprensa.
Biden não é o primeiro presidente a conceder
clemência a parente nos Estados Unidos. Bill Clinton perdoou o meio-irmão Roger
Clinton, condenado em 1985 por tráfico de cocaína. O próprio Trump, depois de
ter perdido a reeleição para Biden, revogou condenações do sogro da filha,
Charles Kushner, por falso testemunho e evasão tributária. Também perdoou seus
ex-assessores envolvidos na investigação sobre a interferência russa na
campanha eleitoral de 2016. Nesses casos, porém, quando não havia condenação, havia
ao menos processo ou julgamento em curso. Biden inovou com um perdão
preventivo.
Ele alega que Hunter é perseguido pela
Justiça por ser seu filho. É verdade que não comete ilegalidade ao usar a
caneta de presidente para livrá-lo dos tribunais. Mas é evidente que não
deveria, no cargo, agir como pai. Ao fazer isso, oferece a Trump — que já
revelou não ter o menor pudor em usar todos os mecanismos do Estado em
benefício próprio — um álibi para perdoar quem quer que seja uma vez no poder.
Volta do crescimento mostra caminho para
reduzir a miséria
Valor Econômico
A combinação de expansão econômica pós-pandemia com programas sociais mostrou ser, como já se sabia, uma fórmula poderosa para melhorar as condições sociais
Há menos pobres e miseráveis no Brasil que há
uma década, revelaram os Indicadores Sociais do IBGE, com base no novo Censo.
De 2022 a 2023, 3,1 milhões de pessoas deixaram a extrema pobreza (renda de R$
209 por mês), reduzindo sua porcentagem no total da população de 5,9% para
4,4%, a menor da série iniciada em 2012. Da mesma forma, 8,7 milhões de
brasileiros deixaram a linha de pobreza (R$ 665 por mês) e pela primeira vez
esse contingente ficou abaixo dos 30% da população (27,4%). No primeiro caso, o
Bolsa Família explica quase tudo: seu valor triplicou de antes da pandemia (R$
218 em média) para depois. O aumento principal veio no governo Bolsonaro, com o
Auxílio Brasil de R$ 600, que deveria recuar em 2023, mas o governo Lula tornou
permanente esse valor e acrescentou mais recursos para crianças, por exemplo.
Para o IBGE, os programas sociais explicam
praticamente toda a queda do número de miseráveis no país. O aumento do emprego
e dos salários, só possível com a volta do crescimento econômico, foi a
alavanca principal. A combinação de expansão econômica pós-pandemia - com
avanço de 3% ou mais nos últimos quatro anos - com programas sociais mostrou
ser, como já se sabia, uma fórmula poderosa para melhorar as condições sociais.
A volta do crescimento é recente e se ele for sustentável - o que não tem sido
- é possível, ao longo de anos, eliminar ou reduzir ao mínimo a pobreza e a
insegurança alimentar.
Apesar da redução em 2023, ainda há 59
milhões de brasileiros pobres e 9,5 milhões de miseráveis no país. Crescer é na
prática a única opção. Os programas sociais atingiram um pico a partir do qual
será difícil aumentá-los significativamente. Só o Bolsa Família consome R$ 170
bilhões e atende mais famílias do que quando foi criado, em 2003 (3 milhões) ou
2021 (13 milhões), e o Benefício de Prestação Continuada traz gastos de outros
R$ 100 bilhões.
Os indicadores sociais trazem boas novas.
Entre 2016 e 2023, o número de brasileiros com acesso à internet saltou de
68,6% para 92,9% - mais de 90% das pessoas em extrema pobreza possuem celular.
A frequência escolar de crianças de 0 a 3 anos aumentou de 2019 a 2023 para
38,7% e está mais próxima da meta oficial de conseguir com que pelo menos 50%
delas tenham acesso a creches e ensino. Já a frequência escolar de crianças de
4 e 5 anos atingiu o bom índice de 92,9%, um dos efeitos claros do Bolsa Família,
que exige sua participação escolar.
Mas há deficiências graves que não
desapareceram, nem desaparecerão tão cedo. A desigualdade de renda do Brasil é
uma das maiores do mundo e, na América Latina, só é inferior à da Colômbia. O
índice de Gini, que mede o grau de desigualdade (quanto mais próximo de 0 mais
igual é uma sociedade), manteve-se entre 2022 e 2023 em 0,518. O IBGE calculou
que, sem os programas sociais, o índice pioraria para 0,555, ou 7,2%. A renda
total dos 10% com maior rendimento foi 3,6 vezes maior do que a dos 40% com
menor rendimento. A melhoria no mercado de trabalho, para o IBGE, foi
primordialmente apropriada pelos trabalhadores qualificados.
Os indicadores mostram o desafio da
qualificação para se obter aumento da produtividade, o fator mais relevante
para o crescimento sustentável. Apenas 19,7% dos brasileiros acima de 25 anos
completaram o ensino superior, ante 47,2% da média dos países da OCDE.
Terminaram o ensino médio 34,7%, ante 40% da média da OCDE. Pior: um terço
(33,1%) não tem instrução ou sequer o ensino fundamental. Outros 12,5% passaram
pelo fundamental, mas não chegaram ao fim do ensino médio. Isto é, quase metade
da população nessa faixa etária tem nível precário de aprendizado escolar.
Prevalecem como chagas sociais a disparidade
salarial entre homens brancos em relação a todas as mulheres, especialmente
negras e pardas. Na comparação, a maior diferença a favor de homens brancos
ocorreu no salário-hora recebido por quem possui título superior - ele é 41,9%
superior ao das mulheres.
Preocupante também é a redução da fatia dos
rendimentos obtidos com o trabalho em relação aos recebidos por benefícios
sociais entre os 20 milhões de pessoas que ganham até um quarto do salário
mínimo. Era de 62,8% e caiu para 34,6% em 2023, enquanto a parcela do dinheiro
dos benefícios sociais subiu de 23,5% para 57,1%. A fração mais pobre da
população está sendo expulsa do mercado de trabalho e pode estar a caminho de
tornar-se permanentemente dependente de auxílios sociais.
Ao quase dobrar em termos reais os benefícios
sociais, os resultados obtidos estão possivelmente no limite dos que podem ser
obtidos - e ainda assim restam 78,5 milhões de pessoas que ganham até meio
salário mínimo, insuficiente para o mínimo sustento. Há esforços no caminho
certo, inescapável, da educação, que precisam ser aprimorados e intensificados.
O equilíbrio macroeconômico é condição essencial para a alocação dos escassos
recursos onde mais importam. Colocar as contas fiscais em ordem, para evitar desperdícios
e enormes despesas com juros, deveria ser uma das tarefa essenciais dos
governos, não importa sua inclinação política.
Pobreza cai, mas gasto social ainda pode ser
mais eficiente
Folha de S. Paulo
Proporção de brasileiros de baixa renda se
reduz com mais trabalho e ampliação nem tão bem planejada do Bolsa Família
A proporção de pessoas que vivem com renda inferior
às de situação de pobreza e de extrema pobreza no país caiu ao
menor nível desde 2012, a partir de quando há dados comparáveis nas
estatísticas do IBGE —27,4%
e 5,9%, respectivamente.
O aumento do
valor dos benefícios do Bolsa Família deu
grande contribuição para a redução do que se chama de pobreza monetária, em
especial nos estratos com rendimento muito baixo. Já o avanço da remuneração do
trabalho contribuiu para que os menos pobres entre os mais pobres vissem
avanços em sua situação.
Questão essencial é saber como manter tais
progressos. Outra é o aumento da eficiência de programas sociais.
A despesa com o Bolsa Família cresceu
espantosos 80,4% de 2022 para 2023, acima da inflação, incremento de R$ 78,3
bilhões no primeiro ano do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT), que deu continuidade ao reajuste promovido por Jair
Bolsonaro (PL) mais perto da eleição.
Outros benefícios tiveram também alta
relevante, mas em escala bem inferior, distribuindo recursos que não chegam aos
mais pobres dos mais pobres.
O impacto do Bolsa Família pode ser observado
no aumento da participação de benefícios sociais no rendimento total. Entre
famílias com renda domiciliar per capita inferior a um quarto de salário
mínimo, tal participação foi a 57,1%, ante 42,2% em 2022 e 26,3% em 2013, no
pico de gastos dos primeiros anos petistas.
Dado que a vexatória desigualdade permaneceu
estagnada no período, sem o programa social haveria não apenas mais pobreza
como mais iniquidade.
Apesar de tal sucesso, a transferência direta
de renda apresenta fragilidades, muitas delas agravadas sob Bolsonaro. Houve
alta fraudulenta de famílias unipessoais; a qualidade do cadastro e a
fiscalização foram degradadas.
Em um ano, o governo retirou 1,7 milhão de
famílias unipessoais da lista de beneficiários. Há planos de recadastramento e
controle, que podem ser incrementados por medidas embutidas no pacote fiscal.
Em relação ao final de 2023, a despesa anual com o programa caiu cerca de 2,4%.
Dada a situação das contas públicas, é
improvável que sobrevenham melhoras adicionais significativas por meio de
transferências de renda. Apesar dos ótimos resultados no emprego e na renda do
trabalho, parece difícil sustentar tal ritmo sem aumentos relevantes da
produtividade na economia.
Note-se que, na média nacional, 74,2% dos rendimentos advêm do trabalho.
Ainda há muita desigualdade a combater. Entre
as crianças de até 14 anos, a taxa de pobreza é de 44,8%. Os nem-nem, jovens de
15 a 29 anos que não estudam nem trabalham, somam 21,2%, e 45,2% desse
contingente são mulheres pardas ou pretas.
Eficiência
continua a ser palavra-chave: sem maior efetividade no gasto social
e produtividade na economia, a situação social ainda deprimente persistirá.
Mais médicos, mesma desigualdade regional
Folha de S. Paulo
IBGE mostra alta no número de profissionais;
é preciso articular programas para melhorar situação no Norte e Nordeste
O número de médicos em atuação no Brasil
aumentou entre 2019, ano anterior à pandemia, e 2023. Essa é a boa notícia. A
má é que ainda há profunda disparidade regional na oferta de profissionais.
De fato, países com dimensões continentais e
vastas áreas remotas de natureza selvagem enfrentam desafios para ofertar
serviços públicos de modo mais igualitário —até os ricos Canadá e Austrália,
por exemplo. Mesmo assim, o esforço para diminuir diferenças deve ser contínuo.
Segundo o relatório Síntese de Indicadores
Sociais, divulgado pelo IBGE na
quarta-feira (4), o número total de médicos no período subiu
de 406,7 mil para 502,6 mil —alta de 23,6%.
A taxa dos que atuavam no SUS em
2023 caiu levemente ante 2019, de 72,8% para 71,4%; já a dos que estavam na
rede privada cresceu 1,4 ponto percentual, chegando a 28,6%. O número de
médicos por 10 mil habitantes aumentou de 19,6 para 23,7.
Numa comparação internacional a partir de
números de 2022, ano dos dados mais recentes de outros países, o Brasil (22,5)
estava próximo do Canadá (25), mas distante do Reino Unido (31,7)
e muito mais de vizinhos como Uruguai (46,2)
e Argentina (40,8).
No âmbito doméstico, o IBGE mostra a
diferença regional histórica verificada em
várias pesquisas de outras instituições.
A média nacional em 2023 é superada no
Sudeste (29,2), no Sul (27,1) e no Centro-Oeste (25,3), enquanto Nordeste e
Norte estão muito abaixo dela, com 16,5 e 13, respectivamente. Ademais, a
região Norte é a única onde há mais enfermeiros do que médicos por 10 mil
habitantes.
Para diminuir disparidades, o governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT)
reativou o Mais Médicos no
início do mandato. A iniciativa é bem-vinda, mas ainda precisa ser associada a
outras ações.
Levantamento da Folha de 2023
revelou que, mesmo com as 1.869 vagas destinadas à Amazônia Legal
no edital do programa, seriam necessários mais de 21
mil médicos na região para eliminar a discrepância —de acordo
com o Ministério da
Saúde, neste fim de 2024 há mais de 25 mil profissionais no Mais
Médicos.
A telemedicina pode ser uma aliada na
supervisão de profissionais jovens —geralmente mais dispostos a passar um
período de sua formação em áreas remotas— e no acesso a atendimento para casos
mais complexos.
Não há bala de prata. É preciso se valer dos indicadores, investir em infraestrutura e criar políticas articuladas nas três esferas para que o direto à saúde chegue de forma plena a todo o país.
O STF flerta com a censura prévia
O Estado de S. Paulo
Constrangedor voto de Dias Toffoli indica que
Supremo vai invadir competência do Congresso para regular as redes sociais, o
que decerto levará a uma retração na liberdade de expressão
A pretensão do Supremo Tribunal Federal (STF)
de esbulhar a competência do Congresso para legislar sobre a regulação das
redes sociais é conhecida pela loquacidade de alguns ministros, que parecem ter
perdido o pudor de falar em público aquilo que não deveriam ou, quando muito,
deveriam falar apenas nos autos. De modo que não surpreende o mau começo da
leitura de votos acerca da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da
Internet. Ao que tudo indica, o STF caminha a passos largos para, sem ter mandato
para isso, criar regras tão draconianas para a manifestação do pensamento nas
redes sociais que, na prática, reinstalará a censura prévia no Brasil.
O referido dispositivo, convém recordar,
determina claramente a condição para responsabilização das empresas de
tecnologia pelos conteúdos publicados por terceiros em suas plataformas, em
particular nas redes sociais. As chamadas big techs só podem ser
responsabilizadas civilmente se, após uma decisão judicial, deixarem de tomar
as providências que lhes foram determinadas. A única exceção a essa regra
também está escrita em português cristalino no artigo 21 do mesmo Marco Civil
da Internet, que diz, resumidamente, que as empresas serão responsáveis por
conteúdos produzidos por terceiros que violem a intimidade sexual de outrem
quando não retirarem esses conteúdos do ar após notificação das vítimas.
O primeiro e único a votar até o momento foi
o ministro Dias Toffoli, relator do processo no STF. Com um voto confuso e uma
peroração constrangedora sobre o que ele entende ser o limite da liberdade de
expressão, Toffoli defendeu em seu relatório não só a punição das
chamadas big techs em caso de “publicações criminosas”, como também,
pasme o leitor, a criação de regras para a oferta de seus serviços no Brasil.
Ocioso dizer que essa regulação das redes sociais, na visão luzidia de Toffoli,
deverá ser feita pelo STF, e não pelo povo por meio de seus representantes
eleitos, se e quando achar oportuno.
A qualquer um dos ministros do STF bastaria
dizer, com fundamentos factuais e jurídicos, se entende que o artigo 19 do
Marco Civil da Internet é constitucional ou não. É evidente que é, pois os
legisladores tomaram o cuidado de redigi-lo, após um longo e profícuo debate
envolvendo a sociedade civil, “com o intuito de assegurar a liberdade de
expressão e impedir a censura”, como diz o caput do artigo, em pleno
acordo com a Constituição. Se o artigo deixou de proteger direitos fundamentais
dos brasileiros passados dez anos de sua vigência, o que não parece ser o caso,
cabe ao Congresso revisitá-lo, não ao Supremo, evidentemente. Uma lei
anacrônica não é necessariamente uma lei inconstitucional. E este nem é o caso
dos artigos 19 e 21, válidos como estão escritos.
O STF, contudo, parece ter tomado gosto pelo
autoatribuído papel de zelador do Estado Democrático de Direito, além de se ver
na posição de “recivilizar o País”, nada menos. Imbuída desse espírito
purgador, a Corte não se constrange em virar as costas para a mesmíssima
Constituição que deveria defender, traindo-a, é forçoso dizer, em favor da
visão absolutamente particular que seus ministros têm sobre o que pode ou não
pode circular como discurso na esfera pública.
Nesse sentido, o voto de Toffoli, haja vista
a sua condição de relator do processo, é sintomático do modo exótico como um
tema de fundamental importância para a democracia no Brasil e no mundo, a
liberdade de expressão, tem sido tratado pela mais alta Corte de Justiça do
País. É bem verdade que se está tratando de um ministro que não foi capaz
sequer de ser aprovado em concurso para juiz de primeira instância, mas a
indigência intelectual expressa no voto de Toffoli – que chegou a confundir a
expressão discursiva com a prática de crimes tipificados no Código Penal – só
não é mais chocante do que o ânimo do STF de, ao custo de uma degradação ainda
maior de sua legitimidade, rasgar a Lei Maior e cassar a palavra dos
cidadãos ex ante – pois é isso o que vai acontecer – em nome de um
suposto combate à “desinformação”, aos “discursos de ódio” e aos “ataques à
democracia”.
A França se choca contra a realidade
O Estado de S. Paulo
Convulsões políticas refletem um mal-estar
econômico que os europeus se recusam a encarar. A conta só fechará com remédios
amargos, e ceder às tentações populistas agravará a doença
Em setembro passado, Michel Barnier assumiu o
cargo de primeiro-ministro na França prometendo “ruptura e mudanças”. Não
conseguiu nem uma coisa nem outra. Por trás dessas promessas grandiloquentes, o
objetivo, na prática, era mais modesto. Com um governo minoritário, as reformas
ambiciosas do presidente Emmanuel Macron ficaram no passado. Restava manter uma
administração funcional e disciplinar minimamente as contas públicas. Barnier,
um veterano de centro-direita que, como comissário europeu, geriu o acordo do
Brexit, parecia uma escolha sensata. O problema é que não era a escolha dos
eleitores.
A votação expressiva dos radicais de direita
da Reunião Nacional para o Parlamento Europeu em junho foi um protesto contra
as políticas de Macron. Ao convocar temerariamente eleições na sequência, ele
alegou dar aos franceses uma “segunda chance”. Mas eles dobraram a aposta nos
radicais de direita e de esquerda, resultando num Parlamento com dois blocos
opostos e os centristas de Macron espremidos no meio. Ao escolher Barnier, ele
ignorou de novo a vontade do eleitorado.
Em comum, os dois blocos têm três coisas:
irritação com Macron, hostilidade um ao outro e a recusa a cortar gastos. Em
três meses, ambos se uniram para derrubar Barnier. Foi o terceiro premiê em um
ano e o mais breve da Quinta República. Novas eleições só podem ser convocadas
em julho e a França terá de se arranjar com um presidente desmoralizado, um
Parlamento fragmentado e as contas públicas em decomposição. O Orçamento deste
ano pode ser provisoriamente replicado no ano que vem. Mas isso deixará intacta
a febre fiscal que inflama a instabilidade política.
Na raiz do mal-estar está o baixo
crescimento. Há décadas a produtividade europeia se distancia da dos EUA.
Macron sabe disso: “A União Europeia como conhecemos pode acabar; é regulada
demais e investe de menos. Se não mudarmos nossa forma de pensar, estaremos
fora do mercado”. Mas no seu próprio quintal ele é impotente. Os dois extremos
não têm ideia de como revitalizar a economia e podem piorar as coisas se
reverterem as reformas trabalhistas e previdenciárias de Macron.
O espectro de uma nova crise fiscal similar à
de 2010 assombra a Europa. Mas a volatilidade agora não vem de países
periféricos, como Grécia, Irlanda, Portugal ou Espanha, mas do centro. O
governo alemão também colapsou por pressões fiscais e baixo crescimento.
O momento não poderia ser pior. Enquanto a
Rússia intensifica a agressão à Ucrânia e flexiona seus músculos em antigos
satélites soviéticos, como a Georgia, o futuro presidente dos EUA, Donald
Trump, ameaça abandonar as defesas europeias à própria sorte e detonar uma
guerra comercial. Internamente, a combinação de fragmentação política com
economias enfermas cria uma volatilidade perigosa. Governos minoritários (como
em Paris) ou coalizões incongruentes (como em Berlim) têm dificuldades de
sobreviver, quanto mais de fazer reformas, e, sem a liderança de França e
Alemanha, Bruxelas tateia às cegas.
Os governos centrais da União Europeia
poderiam aprender algo com os periféricos sobre como reviver a economia. Mas
ainda terão o desafio, particularmente na França, de despertar os eleitores
para uma realidade que eles parecem se recusar a encarar: a sua economia não
consegue sustentar suas demandas. Uma agenda pró-crescimento precisaria
combinar um tanto de austeridade, para sanear as contas públicas, e um tanto de
desregulação, para estimular o empreendedorismo. Mas isso significa, de
imediato, mais riscos nos negócios e menos benefícios sociais. É a velha
receita: o bolo precisará crescer para ser dividido. Mas os populistas nos
extremos seguem prometendo o impossível – ter o bolo e comê-lo, como dizem os
britânicos – e os moderados no centro não estão conseguindo desconjurar esse
encanto.
Em junho, Macron justificou a dissolução do
Parlamento alegando que “essa decisão é a única que permitirá ao país se mover
e se unir”. Ele não conseguiu nem uma coisa nem outra, e a letargia e a
fragmentação estão infectando a Europa.
Nova investida contra as agências
O Estado de S. Paulo
Por meio de decreto presidencial, governo
Lula da Silva decide tomar para si atribuições da Anatel
Em nova investida contra as agências
reguladoras, o governo Lula da Silva decidiu tomar para si o controle dos
projetos e compromissos assumidos por empresas de telecomunicação que
participam de leilões de radiofrequência. Antes nas mãos da Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel), a atribuição foi repassada ao Ministério das
Comunicações por meio de decreto presidencial publicado nesta semana, e terá,
inclusive, efeitos retroativos.
Com o decreto, a pasta quer ter o poder de
decidir onde, como e de que forma serão realizados os investimentos para
conectar escolas públicas à internet de alta velocidade, uma das contrapartidas
impostas às teles que arremataram frequências no leilão do 5G. Realizada em
2021, a disputa, à época, movimentou R$ 47,2 bilhões, dos quais R$ 3,1 bilhões
foram reservados para a educação.
Atualmente, esses recursos têm sido geridos
pela Entidade Administradora da Conectividade de Escolas (Eace), instituição
criada especificamente para esse fim após o leilão. Tudo indica que o governo
não esteja satisfeito com o ritmo do programa de conectividade das escolas,
mas, até aí, bastaria cobrar mais agilidade na condução dos trabalhos.
O Executivo, no entanto, achou por bem passar
por cima dos termos do edital, como se ele não representasse um ato jurídico
perfeito e não tivesse sido submetido ao Tribunal de Contas da União. E foi
além: por meio do Artigo 5.º, deixou claro que suas disposições do Decreto
12.282, de 2 de dezembro deste ano, “aplicam-se inclusive aos leilões de
autorização para o uso de radiofrequências já realizados”.
Não se trata de uma posição contrária à
criação de uma entidade para a realização de uma política pública. O mesmo
modelo já foi adotado no leilão do 4G, realizado durante o governo Dilma
Rousseff, e garantiu a transição da TV analógica para o sinal digital –
processo, por sinal, muito bem-sucedido.
Com o decreto, o Executivo prova a máxima
atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, segundo a qual no Brasil até o
passado é incerto. Não cabe alterar, sobretudo por meio de um decreto, os
dispositivos do edital de um leilão já realizado e da Lei Geral de
Telecomunicações, que definiu claramente as atribuições da Anatel em 1997.
Atrair o setor privado para investimentos em
infraestrutura requer, necessariamente, o fortalecimento das agências
reguladoras, instituições cuja autonomia Lula da Silva ataca com recorrência.
É surreal que o governo insista nessa saga,
considerando que o retorno desse tipo de investimento dificilmente supere a
taxa básica de juros, já elevada e com tendência de alta nos próximos meses.
Para o Executivo, segurança jurídica parece ser algo opcional. É de perguntar se é assim que o governo pretende ampliar a infraestrutura e elevar a taxa de investimento, hoje em apenas 17,6% do PIB, longe dos 25% necessários para garantir um crescimento econômico sustentável. Fincado no passado, talvez o governo acredite que poderá contar apenas com empresas estatais para atingir seus objetivos.
Maior enfoque na alimentação sustentável
Correio Braziliense
Mais da metade dos brasileiros se diz
engajada com a alimentação que traz melhorias à saúde, reduz impactos no meio
ambiente e diminui o desperdício
Para a surpresa de muitos brasileiros,
pesquisa mostra que 91% das pessoas têm uma percepção positiva em relação à
alimentação sustentável. Das cinco nações e quase 7,3 mil entrevistados que
participaram do levantamento — Brasil, Índia, Estados Unidos, França e Reino
Unido —, o país lidera as estatísticas. A Pesquisa Internacional de
Sustentabilidade Food Barometer 2024, realizada pela Sodexo, que está em sua
segunda edição, revela que 51% dos entrevistados brasileiros se declararam
engajados com a alimentação sustentável, ultrapassando os 42% do resultado
global.
Em um país com índices inflacionários que
impactam também na alimentação e no poder de compra e que, nos últimos 10 anos,
apresentou um aumento médio de 5,5% no consumo de alimentos ultraprocessados,
de acordo com estudo sobre o perfil de consumidores divulgado pela Revista de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), é de causar espanto perceber
pelo menos a preocupação com o que se come rotineiramente.
Quando falamos em ultraprocessados,
incluem-se formulações industriais prontas para o consumo, como açúcares,
xaropes, gorduras, compostos proteicos, e pouca ou nenhuma quantidade de fibras
e micronutrientes. E a lista é grande: refrigerantes, doces, balas, biscoitos
de pacote, salgados, macarrão instantâneo, frituras, alimentos prontos para
aquecimento, chocolates, embutidos, como presunto e mortadela, entre tantos
outros.
Embora as pessoas sejam conscientes sobre a
relevância da alimentação saudável, o Brasil ainda caminha lentamente nessa
direção. Há um distanciamento entre teoria e prática, entre o que se propõe e o
que se faz. E isso não é um fenômeno restrito aos brasileiros.
Segundo a pesquisa Food Barometer, o
preço e o sabor se mantêm como elementos principais nos itens de escolha dos
consumidores em escala global. Para 73% dos respondentes, o preço é o principal
critério, seguido pelo sabor: 61%, muito em decorrência da crise
econômica no mundo, segundo analistas. Em seguida, há critérios como valor
nutricional (50%), composição/ingredientes (48%), marca (37%), conveniência do
produto (35%) e aparência/acondicionamento (32%).
A pesquisa também ressaltou que a maior parte
dos entrevistados reconhece os benefícios da alimentação sustentável, com
destaque para a redução do impacto para o meio ambiente (51%), redução do
desperdício (50%), melhora da saúde (47%) e proteção da biodiversidade (43%),
seguido, pelo apoio a produtores/economias locais (38%) e respeito ao bem-estar
animal (36%).
O levantamento serve como um chamamento para que tanto os governos e as instituições de saúde pública quanto a indústria alimentícia e a sociedade se unam em uma tentativa de liderar uma transição do mundo de ultraprocessados para uma população que consuma dietas mais equilibradas, com práticas agrícolas sustentáveis, campanhas de educação alimentar e introdução de um maior número de ingredientes saudáveis aos processos industriais. Ganha a saúde do brasileiro. Ganha a economia. E ganha o meio ambiente.
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