Valor Econômico
Num país que bate continência para qualquer
fardado, Bolsonaro ainda flutua na ilusão da geopolítica da Guerra Fria, da
sujeição do Brasil aos interesses americanos contra a União Soviética
Posto de joelhos por um dos filhos de
Bolsonaro, vassalo de Trump, o Brasil começa a surpreender-se com a humilhação
de ser minimizado diante de um país de que não somos colônia. Somos ingênuos,
mas não tanto. Mesmo as pessoas mais manipuláveis têm a dignidade do limite
para o tratamento que as degrada e humilha.
Apesar do modo como Bolsonaro, seus parentes,
cúmplices e seguidores nos tratam, o país vem manifestando crescente
impaciência com seu empenho de nos impor a todos o tratamento próprio da
cultura da senzala.
Se as manifestações bolsonaristas na avenida Paulista, em São Paulo, nos últimos tempos, forem tomadas como medidor de legitimidade, o declínio de comparecimentos indica o cansaço popular com a manipulação e os abusos e as ilegalidades da política disfarçada em suposta religião, marca do bolsonarismo.
Bolsonaro deixa-se usar por um pastor
evangélico, a quem por sua vez usa, na mobilização do rebanho para a fingida
popularidade. Um sacrilégio. Deus é tratado como panfletário e subalterno de um
ato que coincide com outros em que o ex-presidente é apresentado pela esposa
como enviado de Deus para ocupar a cadeira presidencial, a ele destinada.
Religiões tornaram-se coautoras do golpe de Estado.
A ação organizada do filho de Bolsonaro junto
ao presidente americano para incluir na sua alucinada política tarifária, em
relação ao Brasil, os interesses políticos de seu pai e de sua família,
conseguiu exportar para os EUA o crime político, que está sendo julgado pela
Justiça brasileira, para ser encampado pelo governante de lá. Mostra que a
família Bolsonaro acha que manda em Trump e que aquele país está sem governo.
Nas mãos do homem que tem o poder de disparar
armas nucleares contra qualquer alvo no mundo, é ele manipulado por um sujeito
e uma família que não sabem que o Brasil tem suas próprias leis e instituições.
Outro filho do dito cujo ameaçou nosso país
com a bomba, como aconteceu com o Japão nas explosões atômicas de Hiroshima e
Nagasaki. Sua manifestação nervosa nestes dias sugere que temos que ter medo de
Trump.
Bolsonaro e o próprio Trump não demonstram
ter consciência de que somos uma nação independente, reconhecida pelos EUA
desde 1824. Subserviente, não se constrangeu, em 2019, de declarar a Trump na
ONU um descabido “I love you”. Ouviu de volta um constrangido “Bom te ver de
novo”.
Ele, que nunca mostrou competência para
governar, omitindo-se em relação a questões graves, como a da pandemia,
renunciando tacitamente ao mandato, não compreende que o próprio processo
histórico o descartou. Mas é necessário reconhecer que ele sabe se beneficiar
dos vários recursos, lícitos ou não, para manipular os dóceis e vulneráveis e
nutrir assim sua imensa vontade de poder.
Seus parentes não disfarçam que ficam tensos
quando sua vulnerabilidade fica exposta e fora de controle. O mesmo ocorre com
o pastor que o conduz e conduz sua esposa nas veredas do poder na marra.
O populismo brasileiro sempre dependeu de
puxa-saquismo, cuja eficácia, porém, como este caso demonstra, é sempre curta e
passageira. É inútil bajular quem já está fora do poder e faz desesperadas
manobras e encenações para fingir que o poder lhe é inerente.
Essa presunção tem dependido da falsa
suposição de que Bolsonaro é um homem que representa as Forças Armadas. Num
país que bate continência para qualquer fardado, até porteiro de hotel, ele
ainda flutua na ilusão da geopolítica da Guerra Fria, da sujeição do Brasil aos
interesses americanos contra a União Soviética.
Ele e os seus, provavelmente, não acompanham
o noticiário. A URSS foi extinta há quase 25 anos. O pensamento de esquerda
passou por grandes transformações, atualizou-se cientificamente em decorrência
do desdobramento da práxis em poiésis, isto é, da luta pela emancipação dos
seres humanos em poesia.
O processo histórico de humanização do homem,
para as esquerdas, já não é uma questão econômica. O capitalismo não precisa
das esquerdas para ter contradições e entrar em crise. A economia de Trump é a
melhor prova disso.
Olavo de Carvalho, inspirador e condutor
ideológico do bolsonarismo, tinha pavor da obra e do pensamento do filósofo
Antonio Gramsci, prisioneiro de Mussolini e do fascismo italiano. Para quem a
superação do capitalismo se expressaria no romantismo dos conteúdos
transformadores da tradição e da poesia do mundo possível com o processo de
humanização dos seres humanos, libertos das carências e manipulações que os
coisificam.
Sua obra referencial, “Cadernos do cárcere”,
foi escrita na cadeia. Ela é a prova de que as grades e as técnicas de
manipulação das mentes não encarceram a consciência nem a criatividade
política.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre
a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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