O Estado de S. Paulo
O primarismo político de supor que a truculência externa pode resolver questões no interior da democracia brasileira é algo suicida
Desde a semana passada, o Brasil vive uma
singularidade planetária. Neste ano, o déficit comercial com os Estados Unidos
alcançou US$ 1,7 bilhão e fomos punidos com uma tarifa de 50%, a maior do
mundo.
Superado o impacto inicial, é possível fazer algumas projeções, baseadas na experiência. Na maioria dos casos em que países são punidos com sanções, o objetivo é atingir o governo. Mas como as sanções atingem todos, a tendência é fortalecer as autoridades que querem punir e contribuir com o empobrecimento do país. O resultado é este: o governo se eterniza junto com a pobreza.
No caso das sanções ao Brasil, o resultado é
o fortalecimento do governo, mas não necessariamente o empobrecimento do País,
cuja economia diversa e sofisticada tem condições de se recuperar de um golpe.
Recuperar-se significa diversificar
exportações, encontrar novos mercados. Mas não suprime a possibilidade de
negociar. O problema é que, de um ponto de vista econômico, há pouco o que
negociar. As condições impostas por Trump são políticas e inegociáveis,
inclusive uma anulação de processo no Supremo Tribunal Federal (STF).
São muito grandes as possibilidades de uma
unidade nacional. Poucos conseguem concordar com a punição de empresários e
trabalhadores. Mesmo entre aqueles que apoiam Bolsonaro e o consideram
inocente, é possível estabelecer uma divisão, atraindo os que acham que isso
deva ser demonstrado no curso do processo legal, e não por meio da intervenção
truculenta de um presidente norteamericano.
É difícil prever o futuro de nossas relações
com os Estados Unidos. Bolsonaro deve ser condenado, assim como o núcleo
próximo a ele, acusado de golpe de Estado. A intervenção de Trump não alterou o
quadro e ele deve reagir em caso de condenação. Quanto a isso, nada pode ser
feito.
Existem muitas declarações segundo as quais a
política externa de Lula seria um dos motivos para o tarifaço.
Tenho criticado a política externa do
governo, argumentando que não expressa a riqueza de uma frente democrática, mas
sim a posição do presidente e de seu partido. Mas essa é uma questão que se
resolve num debate civilizado, nunca por meio das ameaças de Trump.
Mesmo a esperança de superar o dólar como
moeda padrão nas negociações internacionais não deveria ser dramatizada.
Isso não se resolve com discurso. A China,
que é bastante discreta, lançou um sistema de pagamento internacional, o China
Interbank Payment System. O uso global do yuan ainda não supera os 4% das
transações internacionais.
O dólar é o que é por causa do tamanho da
economia americana, estabilidade política, liquidez dos ativos e confiança
internacional. Há um fator histórico: em Bretton Wodds, em 1944, as principais
moedas foram atreladas ao dólar, que foi lastrado ao ouro, até 1971.
Se é verdade que a superação do dólar não se
fará por simples ato voluntarista, também é verdade que sua manutenção não pode
ser baseada em repressão tarifária, pois é algo que depende de fatores muito
mais amplos do que a vontade de um governante. Isso mostra claramente como é
absurda a decisão tarifária de Trump, que dificilmente resistirá ao tempo.
Desde o princípio, apostei numa estratégia
que usasse as forças internas americanas para questionar essa agressão
econômica ao Brasil. Muitos, inclusive de dentro dos Estados Unidos, eram
céticos porque a conjuntura é de resignação diante da política errática de
Trump. Figuras como o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman já manifestaram sua
oposição, assim como Hillary Clinton. Empresas americanas que negociam com o
Brasil por meio da Câmara de Comércio pedem negociação.
Não seria nada espantoso que a decisão de
Trump fosse levada às cortes, pois existem condições legais condicionando a
decretação de tarifas. No caso brasileiro, estavam ausentes. A decisão do
governo americano, além de absurda, é ilegal.
É possível que essa maré passe sem causar
grandes danos econômicos ao Brasil. No entanto, ela teve o poder de alterar a
correlação de forças políticas, jogando o bolsonarismo para a margem e abrindo
uma forte possibilidade de o governo se prolongar até 2030.
Muitas coisas acontecem por aqui, mas há
situações que se tornam inesquecíveis. O primarismo político de supor que a
truculência externa pode resolver questões no interior da democracia brasileira
é algo suicida.
Os sobressaltos econômicos passam, mas as
consequências políticas continuarão ecoando não só na decadência do
bolsonarismo como também no desgaste daqueles que hesitaram em condenar o
tarifaço pensando no apoio de Bolsonaro em 2026.
Tudo parece, pelo menos nesse momento, ser
arrastado pelo equívoco de não reconhecer o interesse nacional e lutar por ele,
no momento em que Trump o negou.
É uma avaliação tão corrosiva como aquela que
comparou a epidemia de Covid-19 a uma simples gripe.
Em dois grandes momentos, a fragilidade
política do bolsonarismo mostra que não tem condições de ocupar cargos
majoritários. E é preciso considerar que o mundo se torna cada vez mais
complexo, exigindo decisões cada vez mais elaboradas, jogando para a margem os
aprendizes de feiticeiro que pensam em punir o País para salvarem a própria
pele.
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