Alegar
que preconceito racial é menor hoje do que no passado não ajuda a enfrentar tão
grave questão moral
O
racismo nunca foi um tema central nas conversas de minha família em Olinda
durante minha adolescência nos anos 80 e 90. Na verdade, lembro de pouquíssimas
vezes ter discutido sobre preconceito racial com meus parentes. A leitura que
faço é que muito provavelmente acreditávamos na democracia racial, na
inexistência do preconceito racial no Brasil.
Talvez
por ter aspecto físico de uma pessoa típica do nosso litoral nordestino, a
minha aparência de cor parda nunca foi questão a ser discutida, não só entre
familiares, mas também com amigos.
Na adolescência, recebi o apelido de “mago”, dado pelos colegas do futebol de salão, refletindo baixo índice de massa corporal, que agora luto para manter em nível razoável, mas nunca imaginei se poderia ser discriminado pela cor da pele. Fato que demonstra também certa indiferença que tinha em relação aos problemas que meus amigos negros enfrentavam na época.
Em
contraste, o tema do racismo sempre faz parte das conversas que temos
atualmente com nossos filhos, que tem pele mais clara que a minha, talvez herança
da aparência menos escura de Juliana, minha esposa. Vejo dois fatores
principais para explicar tal diferença em relação aos meus anos de
adolescência: o racismo está sendo discutido com muito mais abertura hoje do
que no passado; e moramos na Inglaterra, onde não temos a aparência de um
cidadão típico daqui. Portanto, no imaginário dos meus filhos, a questão racial
é mais importante para eles do que foi para mim quando jovem.
Para
se ter uma ideia de como o racismo é um tópico central atualmente, nos jogos da
Premier League, a primeira divisão do futebol inglês, que é o campeonato
nacional de futebol mais visto no mundo, a maioria dos jogadores, antes do
início dos jogos, se ajoelham em protesto contra o racismo. O ato está de certa
forma ficando tão comum que alguns jogadores negros agora questionam tal
comportamento. Os abusos raciais nas redes sociais continuam persistentes e o
ato de se ajoelhar apenas passa a impressão que a sociedade reconhece o
problema, mas não faz nada efetivo para resolvê-lo.
Por
exemplo, quando o Manchester United perde, bandidos covardes e de forma anônima
invadem o Instagram dos jogadores negros ou mestiços e deixam insultos contra
seus próprios “ídolos”; na maioria das vezes, abusos verbais com referência à
aparência física dos jogadores. O mesmo acontece com a derrota de outros times
ingleses. Ainda não testemunhei o mesmo comportamento entre os torcedores do
Liverpool, time que adotamos aqui. Afinal de contas, o principal canto do time,
“You Will Never Walk Alone”, sugere que isso não deve ser tolerado.
Alguns
torcedores do Manchester United cometem insultos raciais inclusive contra seu
melhor jogador, Marcus Rashford, que não só é excelente atleta, mas também um
jovem ativista contra a pobreza infantil e outras questões sociais importantes
no Reino Unido.
Depois
da forte campanha de Rashford em relação à baixa qualidade das merendas que
estavam sendo distribuídas durante o lockdown para as crianças mais pobres,
Boris Johnson chegou a afirmar que este jogador era uma oposição mais efetiva
ao seu governo do que o atual líder do partido dos trabalhadores.
Imagino
o desgaste mental e psicológico que deve gerar esses abusos raciais no Rashford
e demais jogadores de pele escura. Ou em qualquer outra pessoa que é forçada a
enfrentar cotidianamente o preconceito racial, mesmo de forma sutil.
Quando
converso com meus amigos aqui, a maioria sempre argumenta que 30 anos atrás o
preconceito racial era muito pior no Reino Unido do que atualmente. Ou falam
que em alguns países da Europa continental a questão racial é bem mais grave.
No Brasil, há ainda, entre muitos, o senso de não existir divisão de raças no
país e que o nosso problema é apenas social. Ou seja, uma pessoa de cor preta
com condições semelhantes à de cor branca tem as mesmas oportunidades no
mercado de trabalho e de aceitação na sociedade.
Não
tenho dúvidas que houve avanços no problema de discriminação racial na
Inglaterra, Brasil, Estados Unidos e outros países. Em trabalho recente,
Brouillette, Jones e Klenow, pesquisadores do departamento de Economia da
Universidade de Stanford, considerando diversos fatores como consumo, lazer,
desigualdade e expectativa de vida, calcularam que o bem-estar de um americano
negro em relação a um típico americano branco pulou de 49% na década de 80 para
67% atualmente. Uma melhora significativa, mas ainda uma diferença brutal.
No
Brasil, contudo, Guilherme Hirata e Rodrigo Soares, em artigo no Journal of
Development Economics, mostram diferenças persistentes de renda entre brancos e
negros, mesmo considerando fatores observáveis como educação e experiência.
Edson Severnini com co-autores, em trabalho a sair na American Economic Review,
usando dados do universo de empresas formais no Brasil, demonstram que a
diferença de salários no país entre brancos e negros é também devida à baixa
representatividade dos negros em algumas ocupações de remuneração mais
elevadas. E que isso não é apenas explicado por características observáveis dos
indivíduos e parte significativa pode ser discriminação de cor.
Alegar
que o preconceito racial é menor hoje do que no passado, ou pior em outros
lugares, não ajuda a enfrentarmos tão grave questão moral e mesmo de
irracionalidade econômica-social. Claro que há questões importantes do desenho
de políticas públicas para o enfrentamento da questão do preconceito racial no
mercado de trabalho e acesso à educação, que requerem ser pensadas de forma
cuidadosa. Tema que deixo para artigo futuro.
No
entanto, viés de policiais e professores, abusos verbais e físicos, quando provados,
não podem ser tolerados e devem receber punição de forma exemplar, para alterar
as normas sociais, mesmo que tais condenações pouco modifiquem o racismo
implícito em algumas pessoas. Recentemente, a Justiça britânica deu um péssimo
exemplo, ao inocentar Patrick O’Brien, alegando imaturidade do jovem, que
confessou ter abusado verbalmente diversas vezes o ex-jogador inglês Ian
Wright, refletindo assim o preconceito racial inerente da sociedade britânica e
sua pouca disposição para enfrentar o problema.
*Tiago Cavalcanti é professor de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.
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