Como
seguir à risca leis impessoais sem olhar rostos, mestiçagens e laços de
família, se as relações são fundamentais?
Quem,
no Brasil, segue tudo à risca?
Quem
tem certeza de cumprir com todo o oceano de leis, portarias, decretos, normas e
regimentos (uma pesquisa do ministro Ives Gandra revela que são 34 mil regras,
mas é preciso admitir que esse número aumentou) que compõem a escrita legal no
Brasil?
Vale
notar que cinco séculos de escravidão negra formam a nossa base sociocultural e
a nossa índole coletiva. Nos Estados Unidos, a escravidão foi regional. Sua
abolição causou uma guerra civil e o regime mistificador do “iguais, mas
separados” segregava. Aqui, depois da abolição, mas mesmo antes dela, tivemos
um racismo contextual e negacionista; lá, há racismo manifesto e sociedades
como a KKK. No Rio, a princesa Isabel acolhia escravos fugidos no seu palácio e
uma flor (a camélia) era o símbolo discreto e aristocrático dos
antiescravistas.
Quem seguia alguma coisa à risca?
Vale
notar que a única instituição na qual vivemos sem ouvir explicitamente falar em
“lei” ou em “seguir à risca” alguma coisa é a família que funciona sem o
incômodo de regras escritas. Daí, dizem alguns amigos, o seu autoritarismo até
hoje é indiscutível porque, conforme prova o antijurídico, “em briga de marido
e mulher, ninguém mete a colher”, lema que a democracia e o feminismo
felizmente questionam –, a polícia deveria ficar de fora de laços conjugais
que, obviamente, têm suas regras falocráticas. Normas implícitas, embora
enterradas nos nossos corações.
Você,
como eu, jamais ouviu o pai ou a mãe invocar o Código Penal porque chegou em
casa bêbado e de madrugada. Seria também insólito imaginar um “golpe” ou um
“impedimento” da autoridade materna ou paterna. Em casa, aplicam-se “castigos”,
“sermões” ou “pitos” e os desvios mais graves dos seus membros são percebidos
como conflitos emocionais, jamais como ilegalidades. No espaço da morada, a lei
só entra quando é chamada numa demonstração patente da oposição entre a lógica
da casa (patriarcal) e a da rua (republicana), conforme sugeri num outro livro
não lido.
Em
casa, seguimos as regras do costume que, curiosamente, não teria peso
político-social. Exceto em casos extremos, quando um ministério da Justiça e as
Procuradorias são mexidos por Bolsonaro em defesa do filho...
Num
resumo cabível numa crônica, é obvio que o legalismo deveria ser usado fora (ou
nas fronteiras) da rede de parentesco e amizade, embora ele seja, como muitos
historiadores têm apontado, um viés do sistema contrarreformista do mundo
ibérico.
Se
as comunidades reformistas criavam autodeterminação e autonomia, tendo uma
índole igualitária e anticentralizadoras – o maior ataque da Reforma foi
obviamente desferido contra as hierarquias terrenas e divinas centralizadas
pela Santa Igreja Católico Romana –, a reação contrarreformista ibérica foi a de
concentrar o poder real e colocar cada coisa em seu lugar e ter um lugar para
cada coisa.
Mas
– eis o dilema – como seguir à risca leis impessoais sem olhar rostos,
mestiçagens e laços de família, se as relações são fundamentais? Como
estabelecer um sistema legal-igualitário-meritocrático com base num sistema
hierarquizado, escravocrata e aristocrático como o “ibérico”? Um sistema no
qual o igualitarismo ofende, como faz prova o “você sabe com quem está
falando?”
Não
há dúvida de que o “legal” é legal, mas é muito difícil de ser seguido à risca.
Primeiro, porque legislar é um atributo de quem tem poder e não do povo, como
prova a lei da ficha limpa prestes a se transformar no seu oposto; segundo,
porque o oceano jurídico requer interpretações barrocas. Uma dogmática na qual
o cálculo político promove uma óbvia macumba legalística. Macumba justificada
pelos tribunais superiores que julgam também procedimentos extinguindo crimes;
terceiro, a impessoalidade gera reações selvagemente parciais, revestidas de uma
linguagem que imoralmente esconde interesses e laços pessoais; quarto, tal
sistema legalístico opera ao inverso dos princípios democráticos que implicam
em menos erudição malandra e mais imparcialidade. Algo difícil de obter num
sistema no qual pessoas englobam leis e os crimes por elas apreciados.
O
que é uma sociedade razoável, senão um sistema no qual seus cidadãos seguem
suas regras e suas regras, consonantes com seus hábitos e costumes, requerem um
mínimo de especialistas em falar difícil porque todos sabem os limites do certo
e do errado?
Não
se pode ser fiel a leis impessoais sem limitar infinitas dívidas pessoais. Não
se pode ser fiel ao “legal” e, ao mesmo tempo, seguir inflexivelmente as normas
do familismo. O preço da ambiguidade é essa paralisação do sistema, agravada
por um presidente cuja irascibilidade o torna incapaz não apenas de governar,
mas de instalar um governo.
*É
Antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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