A
rigidez atrofia a democracia e ocorre simultaneamente ao aumento de incentivos
fiscais
No
país a que chamamos de Brasil, muitas vezes a explicação de um conflito entre
atores políticos não está no fato em si, mas, sim, nas estruturas que, ao longo
do tempo, a sociedade cria para lidar com seus problemas. Em outras palavras, é
possível afirmar que, nesta Ilha de Vera Cruz, a maioria dos problemas é
enfrentada por meio de subterfúgios e soluções incompletas. Para não tratar da
verdadeira causa de nossos desequilíbrios, forjamos acordos que, no fundo,
apenas evitam o "confronto" imediato.
O futuro é sempre adiado porque vivemos numa sociedade que não pensa em seus descendentes. Prevalece, também, nas relações sociais, talvez justificável em alguns aspectos da vida nacional, um sentimento permanente de desconfiança em relação aos propósitos do vizinho, do colega de trabalho, do empresário que lhe dá emprego, do político eleito pela maioria de nós, do estrangeiro que se dispõe a vir aqui, entre outros lugares, para investir seu capital, no lucro de quem consegue lucrar, no sucesso de outrem, enfim, entre nós não há reconhecimento mútuo, mas, acima de tudo, suspeição.
A
escravidão que nunca nos abandonou explica a maior parte desse grande
desencontro que nos impede, não somente de sermos uma nação, mas de almejarmos
um dia chegar lá. Nesse ambiente tenso, confuso, violento (só um país que não é
nação "aceita" que 60 mil de seus cidadãos sejam assassinados todos
os anos, a maioria, jovem e negra, nossa maior etnia), o Estado não exerce seu
papel primordial, inscrito na Constituição, de combater diuturnamente as
diferenças e dedicar-se inteiramente à oferta de igualdade de oportunidades.
Mas,
se não cumpre sua missão, o que faz o Estado? Ora, é no Estado, isto é, na sua
organização, nas leis que o sustentam e regem o contrato social em que estamos
inseridos, onde os setores da sociedade se encontram para decidir o que somos e
o que seremos. Sendo assim, numa sociedade marcada por uma desigualdade
vertiginosa desde a sua fundação, há 521 anos, decide quem tem mais poder em
Brasília. Sabemos, portanto, que, no centro da República, estão representados
todos os grupos sociais, menos a maioria _ em resumo, os negros (56% da
população), os miseráveis e os pobres.
Na
Constituição, determinou-se que a União aplique, anualmente, nunca menos de
18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, menos de 25%, da receita
resultante do recolhimento de impostos, incluída a proveniente de
transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo
os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado,
e o teto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou
isso.
Considerando
que a despesa com a Previdência Social (INSS) e com as aposentadorias do
funcionalismo público federal e dos militares consome hoje mais de 50% das
receitas da União, o que sobra para investir em qualquer outra área é quase
nada. Intitulado “Vínculo Obrigacional e Grau de Rigidez das Despesas
Orçamentárias”, estudo realizado por três consultores de orçamento da Câmara _
Eugênio Greggianin, Graciano Rocha Mendes e Ricardo Alberto Volpe _ mostra que,
neste ano, a participação das despesas obrigatórias no total da despesa
primária (excluído o gasto com juros da dívida) da União pode chegar a 98%.
Isto significa que governo e Congresso, justamente os poderes eleitos pelo voto
popular, têm ingerência sobre apenas 2% dos gastos da União.
Os
dados do gráfico, presente no estudo dos três consultores da Câmara, mostram a
evolução da rigidez orçamentária nos ultimos 15 anos. A vinculação foi criada
para forçar os governantes a investirem nas áreas onde, sim, desde sempre
tivemos carência de recursos que explica muito da nossa enorme desigualdade
social. Mas, ora, depois de 33 anos de vinculação, que quadro temos?
O
SUS (Sistema Único de Saúde) foi viabilizado pela vinculação, tem se mostrado
bastante útil nesta pandemia, mas não nos enganemos, está muito longe de
cumprir sua missão constitucional. No caso da educação, o dado positivo foi a
universalização do acesso das crianças ao ensino básico. E só. O que se vê além
disso é uma tragédia que nos impede de formar cidadãos em condições de ascender
socialmente.
Quem
perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem
representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da
democracia.
A
rigidez atrofia a democracia e ocorre simultaneamente ao aumento de incentivos
fiscais porque os setores organizados, percebendo que a conta não fecha, estão
correndo a Brasília para assegurar "privilégios" adquiridos. Não
estaria aí o dilema de nossa democracia? Governo e Congresso, eleitos, não têm
como atender a demandas de seus eleitores?
Reformar a Previdência, além de tratar-se de uma questão aritmética e de justiça social, também envolve a necessidade de o país ter mais recursos para investir no futuro de sua sociedade, isto é, na formação educacional de suas crianças, adolescentes e jovens, do contrário, jamais teremos uma economia em condições de competir no mercado mundial, um ambiente cada vez mais competitiva _ lembremo-nos que, nos últimos 35 anos, emergiram na Ásia países que, com exceção do Japão, nem se comparavam com o tamanho e a diversidade de nossa economia, e hoje estão muito à nossa frente, principalmente, em tecnologia e produtividade.
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